Depois de quase 18 anos de exílio e desterro, sob uma garoa persistente, aterrissava no aeroporto de Ezeiza o vôo charter que trazia Juan Domingo Perón de volta à Argentina.
Era 17 de novembro de 1972. Um dia que se converteu em símbolo da resistência e da luta de uma militância ferrenha, histórica e renovada pelas novas gerações, que pintaram nas paredes ‘Lute e Volte’ / manchando de esperanças e de cantos / os caminhos… que devolveram a fé na nova primavera, como imortalizou Serrat em “La Montonera”.
Lá está, outra vez. Lá vai, novamente, caindo e voltando a levantar: a militância. Uma palavra maldita para as classes dominantes, porque remete às lutas populares, à insurgência social, ao povo que avança em busca de transformações, de justiça e de igualdade. Os militantes populares, que foram – e seguem sendo – alvo da fúria repressiva de todos os governos conservadores e reacionários.
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A história de “La Montonera” está envolta em uma aura de clandestinidade e mistério.
Em 1978, o Conselho Superior do Movimento Peronista Montonero, estabelecido no México, lançou um disco para difusão na Argentina.
No lado A, após dez minutos de análise dos acontecimentos desde o dia 24 de março de 1976, vinham as instruções da direção dos Montoneros na Europa para que a militância enfrentasse o Mundial de 1978 durante a sua realização na Argentina. Acreditavam que era possível transformar o sentido do evento em uma manifestação da resistência popular. O slogan que propunham era “Argentina campeã, Videla ao paredão”. Além disso, foram incluídos endereços e telefones da organização revolucionária no exterior e um organograma da cúpula do movimento guerrilheiro, com todos os seus responsáveis.
No lado B ouvia-se “La Montonera”, uma canção que nunca foi gravada comercialmente pelo cantor e compositor catalão Joan Manuel Serrat. No entanto, a canção, que entrou clandestinamente na Argentina um ou dois meses antes do Mundial de futebol de 1978, circulou entre fãs e militantes.
Aparentemente, a letra está inspirada em uma história real. De acordo com um artigo publicado na revista La Maga, “durante muitos anos Joan Manuel Serrat pensou que Alicia, uma amiga sua, havia sido assassinada pelas gangues da Triple A (Aliança Anticomunista Argentina). Ele a conheceu em 1969, quando dava os seus primeiros passos por estas terras. Inspirado nela, escreveu uma canção: ‘La Montonera’. ‘Era uma garota cheia de sonhos e ideais, como quase todos os jovens da sua geração’, relembrou Serrat nos idos de 1993.
Alicia andava, furtiva, nas noites de resistência setentista, antes da chegada de Perón, pintando “Lute e volte” nas paredes de Buenos Aires; o catalão costumava vê-la regressando, tendo superado o risco, vencido o medo, e com as mãos cheias de tinta.
Existe outra versão sobre quem é a montonera que inspirou a música. O jornalista francês Phillipe Broussard assegura que a misteriosa musa de Serrat era Marie Anne Erize Tisseau, uma militante desaparecida em 1976, em San Juan. Isto é o que conta em seu livro La desaparecida de San Juan (Planeta, 2012), embora Serrat negue que tenha sido Anne.
Marie Anne, argentina e de pais franceses, viajou à Europa em 1969. Conheceu Serrat, Georges Moustaki e Paco de Lucía. Foi modelo – Miss Siete Días e capa da revista Gente – e estudou antropologia. Em Buenos Aires, conheceu o padre Carlos Mugica e em pouco tempo converteu-se em militante de base nas favelas. “Só quero ser pobre entre os pobres”, disse à sua mãe, cinco meses antes de ser sequestrada por três militares em uma loja de bicicletas.
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“La Montonera” voltou a aparecer no documentário Caçadores de utopias (1995), de David Blaustein. A partir de uma cassete de Serrat gravada ao vivo, Litto Nebbia adicionou um arranjo à canção. Serrat proibiu a edição e a tiragem foi destruída.
Porém, de alguma forma, ela sempre acaba voltando à vida, mesmo que o seu autor tente esquecê-la. Que a militância tenha recriado a música porque não havia um registro é o melhor que poderia ter acontecido à montonera. Sair ao vento, expandir-se no tempo. Seguir vagando no espírito militante do povo.