Ao longo de sua campanha, Joe Biden insurgiu-se contra a política externa “America First” de Donald Trump, alegando que ela enfraqueceu os Estados Unidos e deixou o mundo em desarranjo.
Ele prometeu reverter esse declínio e recuperar o dano que Trump causou à reputação dos EUA. Enquanto Donald Trump bradou em tornar o país grande novamente, Biden busca tornar o império estadunidense grande novamente.
Entre as promessas do presidente eleito está o fim das chamadas guerras eternas – os projetos imperiais de décadas no Afeganistão e no Iraque que começaram sob o governo Bush.
No entanto, Biden – um defensor fervoroso dessas guerras – dará a tarefa de terminá-las aos elementos mais neoconservadores do Partido Democrata e aos ideólogos da guerra permanente.
Michele Flournoy e Tony Blinken encontram-se no topo da equipe de milhares de especialistas em política externa de Biden e desempenharam papéis centrais em todas as guerras dos EUA, desde a administração Clinton.
Na era Trump, eles ganharam muito, fundando a WestExec Advisors – uma empresa de consultoria corporativa que se tornou o lar de funcionários do governo Obama que aguardam um retorno ao governo.
Flournoy é a principal escolha de Biden para Secretária de Defesa, e Blinken deve ser Conselheiro de Segurança Nacional.
Raposas de Biden protegem o galinheiro
Desde a década de 1990, Flournoy e Blinken têm crescido constantemente na hierarquia do complexo industrial-militar, indo e vindo entre o Pentágono, os think-tanks belicistas financiados pelo governo dos EUA, empresas de armas e gigantes do petróleo.
Sob Bill Clinton, Flournoy foi a principal autora da Quadrinellial Defense Review de 1996, o documento que delineou a doutrina militar dos EUA de guerra permanente – a qual chamou de “dominância de espectro total”.
Flournoy apelou para o “uso unilateral do poder militar” para garantir “acesso irrestrito aos principais mercados, suprimentos de energia e recursos estratégicos”.
Enquanto os funcionários do governo Bush mentiam para o mundo sobre as supostas armas de destruição em massa de Saddam Hussein, Flournoy observou que “em alguns casos, ataques preventivos contra as capacidades [armas de destruição em massa] de um adversário podem ser a melhor ou a única opção que temos para evitar um ataque catastrófico contra os Estados Unidos”.
Tony Blinken foi um dos principais assessores do então presidente do Comitê de Relações Exteriores do Senado, Joe Biden, que desempenhou um papel fundamental na obtenção de apoio no Senado, controlado pelos democratas, para a invasão ilegal de Bush no Iraque.
Enquanto o Iraque mergulhava no caos e no derramamento de sangue, Flournoy estava entre os autores de um artigo intitulado “Internacionalismo Progressista” que pedia por um estilo “melhor e mais inteligente” de guerra permanente. O jornal castigou a esquerda anti-guerra e declarou que “os democratas manterão as forças armadas mais capazes e tecnologicamente avançados do mundo, e não hesitaremos em usá-las para defender nossos interesses em qualquer parte do mundo.”
Com a vitória de Bush para um segundo mandato, Flournoy defendeu mais posicionamentos de tropas nos bastidores.
Em 2005, Flournoy assinou uma carta do think tank neoconservador Project For a New American Century, pedindo ao Congresso para que aumentasse “substancialmente o tamanho do Exército e do Corpo de Fuzileiros Navais em serviço ativo (em) pelo menos 25.000 soldados a cada ano durante os próximos anos”.
Em 2007, ela aproveitou sua experiência e contatos no Pentágono para fundar o que se tornaria um dos principais think tanks de Washington, defendendo uma guerra sem fim ao redor do globo: o Center for a New American Security (CNAS).
O CNAS é financiado pelo governo dos EUA, fabricantes de armas, gigantes do petróleo, gigantes da tecnologia do Vale do Silício, fundações financiadas por bilionários e grandes bancos.
Flournoy ingressou no governo Obama e foi nomeada Subsecretária da Política de Defesa, posição considerada o “cérebro” do Pentágono.
Ela estava bem ciente de que o público desconfiava de mais embaraços. Na Revisão Quadrienal de Defesa de 2010, ela elaborou um novo conceito de guerra que expandiria o estado de guerra permanente, ao mesmo tempo que dava a aparência de redução.
Flournoy escreveu que “sistemas não tripulados são uma grande promessa” – uma referência ao programa da CIA de assassinato por drones.
Essa era a doutrina militar da guerra híbrida da era Obama. Exigia que os EUA fossem capazes de travar guerra simultaneamente em várias frentes por meio de guerra secreta, transferência de armas clandestinas para terceiros, ataques de drones e ciberataques – todos apoiados por campanhas de propaganda direcionadas ao público estadunidense por meio da internet e da mídia corporativa.
Arquitetos das guerras híbridas dos Estados Unidos
Flournoy continuou a defender as guerras sem fim que começaram na era Bush e foi uma das principais arquitetas do desastroso aumento de tropas de Obama no Afeganistão. Enquanto os soldados estadunidenses regressavam em sacos para cadáveres e os ataques de insurgentes e atentados suicidas aumentavam cerca de 65% entre 2009 e 2010, ela enganou o Comitê de Serviços Armados do Senado, alegando que os EUA estavam começando a virar a maré contra o Talibã.
Mesmo com a mentira de que os governos dos EUA e do Afeganistão estavam começando a ganhar do Talibã, Flournoy garantiu ao Senado que os EUA teriam que permanecer no Afeganistão por muito tempo no futuro.
Dez anos depois – com o número de mortos no Afeganistão passando de 150.000 – Flournoy continuou a argumentar contra a retirada dos EUA.
Essa é a pessoa que Joe Biden incumbiu de acabar com a guerra eterna no Afeganistão. Mas nas próprias palavras de Biden, ela “trará para casa a grande maioria de nossas tropas do Afeganistão”, o que implica que algum número de soldados estadunidenses permanecerá, e a guerra eterna será exatamente isso. Michele Flournoy explicou que mesmo se um acordo político fosse alcançado, os EUA manteriam alguma presença.
Em 2011, a doutrina de guerra inteligente e sofisticada da era Obama foi revelada na guerra de mudança de regime perpetrada pela OTAN na Líbia.
Muammar Gaddafi – o ex-adversário que buscava relações mais próximas com os EUA e desistiu de seu programa de armas nucleares – foi deposto e sodomizado com uma baioneta.
Flournoy, o Departamento de Estado de Hillary Clinton e a mídia corporativa estavam em sincronia enquanto promoviam uma extensa campanha de propaganda para enganar o público dos EUA, afirmando que os soldados de Gadaffi estavam em uma onda de estupros e assassinatos à base de Viagra, o que demandava uma intervenção por parte dos Estados Unidos.
Tudo isso foi baseado em uma reportagem da Al Jazeera – meio de comunicação de propriedade da monarquia do Catar, que estava armando milícias extremistas para derrubar o governo.
No entanto, uma investigação das Nações Unidas chamou as alegações de estupro de “histeria”. A Anistia Internacional e a Human Rights Watch não encontraram provas credíveis de sequer um único estupro.
Mesmo depois que a Líbia mergulhou em disputa e o engodo de que as forças de Gadaffi estavam cometendo estupros foi desmascarado, Michele Flournoy manteve seu apoio à guerra.
Tony Blinken, então Conselheiro Adjunto de Segurança Nacional de Obama, também pressionou por uma mudança de regime na Líbia. Ele se tornou o pivô de Obama na Síria, pressionou para armar os chamados “rebeldes moderados” que lutaram ao lado da Al-Qaeda e do ISIS e projetou uma estratégia de “linha vermelha” para desencadear uma intervenção total dos EUA. A Síria, disse ele ao público, não era nada parecida com as outras guerras que os EUA travaram por mais de uma década.
Apesar das promessas de Blinken de que esse seria um caso breve, a guerra na Síria está agora no seu nono ano. Como resultado, estima-se que meio milhão de pessoas morreram e o país está enfrentando a fome, em grande parte graças à política de usar “trigo para pressionar” – uma recomendação do think tank de Flournoy e Blinken, o CNAS.
Quando a administração Trump lançou ataques aéreos contra a Síria com base em simples acusações de ataque químico, Tony Blinken elogiou o bombardeio, alegando que Assad havia usado a arma de destruição em massa sarin. No entanto, não havia nenhuma evidência para esta afirmação, algo que até o então Secretário de Defesa, James Mattis, admitiu.
Enquanto mercenários jihadistas munidos de armas fornecidas pelos EUA dominavam grandes áreas da Síria, Tony Blinken desempenhou um papel central em um golpe de Estado na Ucrânia que viu um governo pró-Rússia ser derrubado em uma revolução colorida orquestrada pelos EUA, com elementos neofascistas sublevando-se no país.
Na época, ele era ambivalente sobre o envio de armamento letal para a Ucrânia, em vez de optar pela pressão econômica.
Desde então, milícias fascistas foram incorporadas às forças armadas da Ucrânia. E Tony Blinken pediu a Trump que enviasse armamento letal – algo que Obama se recusou a fazer.
Trump obedeceu.
A Estratégia Third Offset
Enquanto os EUA alimentavam as guerras na Síria e na Ucrânia, o Pentágono anunciou uma grande mudança: a estratégia Third Offset – uma referência às estratégias da era da Guerra Fria que os EUA usaram para manter sua supremacia militar sobre a União Soviética.
A estratégia Third Offset mudou o foco de contra-insurgência e de guerra ao terror para a competição de grandes potências contra a China e a Rússia, buscando garantir que os EUA pudessem vencer uma guerra contra a China na Ásia. Exigia uma revolução tecnológica nas capacidades de combate, desenvolvimento de armas futuristas e autônomas, enxames de drones submarinos e aéreos, armas hipersônicas, guerra cibernética, soldados aprimorados por máquinas e inteligência artificial tomando decisões inimaginavelmente complexas em campos de batalha, a velocidades incompreensíveis para a mente humana. Tudo isso se basearia no aprofundamento das relações do Pentágono com os gigantes do Vale do Silício que nasceram décadas antes: Google e Facebook.
O autor da Third Offset, ex-subsecretário de defesa Robert Work, é sócio de Flournoy e Blinken na WestExec Advisors. E Flournoy tem sido uma dos principais defensoras dessa nova escalada perigosa.
Em junho, Flournoy publicou um longo comentário expondo sua estratégia, chamado “Aprimorando a vantagem militar dos EUA: passos críticos para a próxima administração”.
Ela alertou que os Estados Unidos estão perdendo sua vantagem tecnológica militar e revertê-la deve ser a prioridade do Pentágono. Sem ela, Flournoy alertou que os EUA podem não ser capazes de derrotar a China na Ásia.
Enquanto Flournoy requisitou um aumento da presença militar dos EUA e exercícios com as forças aliadas na região, ela chegou a pedir que os EUA aumentassem tanto suas capacidades destrutivas ao ponto de lançar uma guerra de tipo blitzkrieg (guerra relâmpago) para acabar com toda a marinha chinesa e todos os navios mercantes civis no Mar da China Meridional. Não apenas um crime de guerra flagrante, mas um ataque direto a uma potência nuclear que significaria uma terceira guerra mundial.
Ao mesmo tempo, Biden anunciou que assumirá uma postura ainda mais agressiva e afrontosa contra a Rússia, posição que Flournoy compartilha.
Quanto ao fim das guerras eternas, Tony Blinken diz que não será tão rápido.
O fim das guerras eternas?
Biden acabará com as guerras eternas, mas não realmente acabará com elas. Guerras secretas – sobre as quais o público nem sabe do envolvimento dos EUA – vieram para ficar.
Na verdade, deixar equipes de forças especiais preparadas em todo o Oriente Médio é parte integrante dessa mudança do Pentágono da contra-insurgência para a competição entre grandes potências.
A Estratégia de Defesa Nacional de 2018 explica que “as competições estratégicas de longo prazo com a China e a Rússia são as principais prioridades” e os EUA “consolidará os ganhos no Iraque e no Afeganistão enquanto busca uma abordagem mais sustentável de recursos”.
Quanto à guerra catastrófica no Iêmen, Biden disse que finalizará o apoio dos EUA, mas em 2019 Michele Flournoy se posicionou contra o fim das vendas de armas para a Arábia Saudita.
Biden prometeu voltar ao acordo com o Irã como ponto de partida para novas negociações. No entanto, a retirada do acordo promovida por Trump desacreditou os reformistas iranianos que buscam o engajamento com o Ocidente e deu poder aos principialistas que veem o JCPOA (Plano de Ação Conjunta Global, em português) como um acordo com o diabo.
Na América Latina, Biden vai reviver as chamadas campanhas anticorrupção, que serviram de disfarce para derrubar o popular presidente social-democrata Lula da Silva.
Sua política na Venezuela será quase idêntica à de Trump – sanções e mudança de regime.
Na América Central, Biden propôs um pacote de 4 bilhões de dólares para apoiar governos corruptos de direita e projetos de privatização neoliberais que criam ainda mais desestabilização e enviam massas vulneráveis que rumam ao norte para os Estados Unidos.
Por trás de sua retórica, Biden, Flournoy e Blinken buscarão nada menos do que a supremacia global, aumentando uma nova e ainda mais perigosa corrida armamentista que arrisca destruir a humanidade. É isso o que Joe Biden chama de “decência” e “normalidade”.