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O Reino Unido e os refugiados: “você destruiu minha casa e ao mesmo tempo me impede de buscar segurança”

Antes dos acordos finais sobre o Brexit, o Reino Unido tenta deportar o máximo de refugiados possível. Saleh, um iemenita, é um deles.
Antes dos acordos finais sobre o Brexit, o Reino Unido tenta deportar o máximo de refugiados possível. Saleh, um iemenita, é um deles. Por Bethany Rielly | The Morning Star – Tradução de Pedro Marin para a Revista Opera
(Foto: Ggia)

Dezenas de pessoas procurando asilo devem ser removidas da Inglaterra na próxima semana em um momento em que o Ministério do Interior acelera seu brutal processo de deportação antes da saída do país da União Europeia.

Três voos charter para países europeus estão programados com destino à Alemanha, Bélgica, França e Espanha, a despeito de avisos de que as apressadas operações de remoção do Ministério do Interior arriscam serem enquadradas como deportações ilegais de pessoas vulneráveis.

Entre aquelas que enfrentam a deportação iminente está Saleh (nome fictício), um solicitante de asilo de origem iemenita. Saleh passou somente quatro meses na Inglaterra. Ele chegou nesse verão, fazendo a perigosa travessia do Canal da Mancha como milhares de outros, na esperança de garantir um futuro seguro para ele e sua família.

“Eu tinha esperança quando finalmente cheguei à Inglaterra, e esperava por uma vida melhor, mas o que eu enfrento agora é completamente diferente”, ele me diz durante uma chamada feita do centro de detenção Brook House. “Agora eu sinto que minha vida vai acabar, porque não sei para onde vou.”

O homem iemenita está listado em um voo charter para a Bélgica, onde ele passou quatro meses dormindo nas ruas no começo do ano. “Eu não sei se receberei asilo ou se me tornarei morador de rua de novo, não sei o que vai acontecer.”

Desde que chegou à Inglaterra, Saleh viveu em um constante estado de incerteza, jogado de uma terrível instalação para outra. Durante a maior parte do seu tempo aqui, o solicitante de asilo foi mantido no notório campo de Napier Barracks, um antigo acampamento militar em Kent, condado vizinho de Londres.

Eu conversei com ele em outubro, quando era um residente do campo. Ele descreveu as condições como similares às de uma prisão, e não deixou as instalações por duas semanas por conta da intimidação de militantes de extrema-direita que ficavam do lado de fora do campo.

O Ministério do Interior agora enfrenta uma série de desafios legais em relação às “inumanas” e “potencialmente ilegais” condições no campo, onde vivem cerca de 400 asilados em quatros com até 15 camas.

Depois de três meses no campo, Saleh foi informado pelo Ministério do Interior de que ele seria retirado de lá e movido para uma acomodação diferente. O que ele não sabia é que o Ministério do Interior planejava detê-lo e deportá-lo. Ele foi enviado para um hotel durante a noite, antes de oficiais de imigração baterem na sua porta às 6 da manhã do dia seguinte.

“É assim que o Ministério do Interior engana as pessoas, eles dizem que vão te levar para uma acomodação em outro lugar”. Saleh está no último grupo de requerentes de asilo visados pela campanha de deportação do Ministério do Interior.

Em agosto, a secretária do Interior, Priti Patel, prometeu deportar mil asilados como parte de sua campanha de relações públicas contra aqueles que cruzam o Canal em pequenos barcos. As deportações são feitas sob a lei da União Europeia – o Regulamento Dublim III – que permite que países enviem solicitantes de asilo para outros países-membros pelo qual passaram durante suas jornadas.

Ativistas acusaram o departamento de apressar os retornos antes do Brexit, quando a Grã-Bretanha não pode mais usar essas leis. Ao menos 17 voos charter para países-membros da União Europeia foram marcados desde agosto, em um ritmo de cerca de dois por semana. Diversos relatórios mostram que os solicitantes de asilo são frequentemente deixados ao léu depois da chegada, forçados a viver nas ruas ou até mesmo deportados de volta para seus países de origem.

O Ministério do Interior foi em frente mesmo assim, apesar de preocupações de que um processo tão acelerado impeça que os asilados tenham acesso adequado à justiça, arriscando constituírem remoções ilegais de vítimas de tráfico.

O diretor de política jurídica do Conselho Conjunto para o Bem-Estar da Imigração, Chai Patel, me disse: “Parece que o Ministério do Interior está fazendo o possível para apressar as remoções para a Europa antes de 2021, sem avaliar com calma e justiça as reivindicações das pessoas. O fato de que ainda estão deportando tantas pessoas vulneráveis durante uma pandemia global – deixando muitos em miséria e em risco – mostra que eles estão claramente priorizando a velocidade em vez da justiça e da saúde pública”.

Saleh acredita que há algo de muito errado no sistema britânico. “As pessoas do Ministério do Interior precisam nos escutar”, ele disse. “Nunca nos deram uma chance. Eu quero que me perguntem porque eu me arrisquei ao cruzar o canal, pondo minha vida em perigo. Eles acham que eu fiz isso para viver uma aventura? Eu quero que me perguntem porque eu vim para cá, não como eu cheguei aqui.”

Saleh fugiu do Iêmen com sua família depois de ele ter se recusado a lutar com as milícias na brutal guerra civil de seu país. Sua família agora está escondida em um país árabe no qual vivem ilegalmente após terem tido seus documentos negados. Por causa disso, seus cinco filhos não podem ir à escola. Saleh então foi sozinho para a Europa. Ele entrou primeiro na Espanha, mas apoio e assistência lhe foram negados, o que o forçou a viver nas ruas.

Ele então foi para a Bélgica, onde foi posto em um abrigo por um curto período antes das autoridades ameaçarem devolvê-lo à Espanha. A secretária do Interior Patel acusou os asilados de “saírem às compras” procurando asilo na Europa, mas a realidade é que muitos acabam sem escolha a não ser seguir em frente depois de serem forçados à miséria e frequentemente à exploração. Ser devolvido a um país-membro da UE também poderia acarretar na eventual deportação do solicitante de asilo para seu país de origem.

Nos últimos dias, Saleh conseguiu um advogado para seu caso. Isso ocorre depois de meses de tentativas em vão na busca de representação legal. Saleh conseguiu o advogado por meio de uma rede de apoio fundada por Ahmed (também um nome fictício), um iemenita que também está buscando asilo na Inglaterra.

No começo desse ano Ahmed criou um grupo de Whatsapp (que agora conta com 400 membros) para suprir a gigante lacuna deixada pelas autoridades no que se refere a apoiar os solicitantes de asilo. O propósito do grupo é identificar as necessidades das pessoas, ajudá-las a entender o sistema legal, dar acesso a aulas de inglês e, se possível, conectá-las a advogados. Mas isso se tornou cada vez mais difícil nas últimas semanas, devido à alta concentração de voos charter.

“Tantas pessoas recebem respostas negativas [de advogados], eles não têm capacidade porque agora o Ministério do Interior está insistindo em deportar o máximo que puder antes de dezembro”, me diz Ahmed.

A falta de acesso a aconselhamento jurídico tem sido uma preocupação chave entre ativistas e advogados. Essas preocupações se tornaram mais agudas à medida que intervenções de advogados identificaram inúmeras tentativas do Ministério do Interior para deportar ilegalmente solicitantes de asilo.

Uma decisão interina da Alta Corte no mês passado considerou que o Ministério do Interior potencialmente agiu ilegalmente ao realizar entrevistas resumidas de triagem de asilo que não conseguiram identificar as vítimas de tráfico e tortura. A decisão ordenava que o Ministério do Interior reincluísse questões no processo de triagem que ajudassem a corrigir isso. No entanto, Ahmed disse que tem notícias de ao menos cinco pessoas que enfrentam processo de deportação e foram vítimas de tráfico.

Na semana passada, quatro requerentes de asilo iemenitas que foram forçados a realizar trabalho não remunerado por contrabandistas em suas viagens foram libertados da detenção. 

O Ministério do Interior rejeitou acusações de que as remoções da próxima semana sejam ilegais. “É um princípio estabelecido que aqueles que necessitam proteção devem procurar asilo no primeiro país seguro no qual entrarem, e não realizar perigosas jornadas à frente”, disse um porta-voz. “Nós apenas devolvemos aqueles que nós e, quando aplicável, os tribunais, consideramos que não precisam de nossa proteção e não têm base legal para permanecer no Reino Unido, e não pedimos desculpas por isso”.

Saleh é um dos doze iemenitas enfrentando a remoção na próxima semana. Enquanto o Ministério do Interior diz que todos os detidos são instruídos sobre seu direito de representação legal dentro de 24 horas após entrar em um centro de detenção, alguns ainda não têm representação legal, disse Ahmed.

Todo dia ele recebe constantes ligações de amigos enfrentando deportação. A responsabilidade é um fardo pesado. “Eu fico muito feliz quando eu ajudo alguém e ele consegue escapar, fico realmente feliz e com vontade de dançar, mas ao mesmo tempo quando eu escuto no mesmo dia ou no próximo que alguém foi detido… Você sabe, quando você está lutando contra um inimigo e apanha de novo e de novo… Não há fim nesse jogo”, disse. “Eu gostaria de acordar algum dia e não haver detenções ou deportações. Eu gostaria que esse jogo acabasse. Ele não para, é contínuo.”

Para Saleh, a recusa da UE em dar refúgio, apesar de desempenhar um papel na destruição de seu país, é particularmente dolorosa. “Nós não somos bem-vindos aos países da UE mas ao mesmo tempo eles estão jogando gasolina na guerra com a Arábia Saudita”, ele disse. “É um conflito – não há lógica nisso. Você destruiu minha casa e ao mesmo tempo me impede de buscar segurança.”

Andrew Smith, da Campaign Against the Arms Trade, me conta que o governo britânico teve um “papel central” na criação da crise humanitária do Iêmen. O conflito levou à maior crise humanitária do mundo, com 80% da população  do Iêmen, de 24 milhões de pessoas, necessitando ajuda humanitária e proteção. Desde que a guerra começou em 2015, mais de 17,5 mil civis foram mortos, e centenas de milhares morreram de fome ou de doenças.

Apesar disso, a Inglaterra vendeu 4,7 bilhões de euros em armas para a Arábia Saudita desde o começo do conflito, em 2015. Patel, do Conselho Conjunto para o Bem-Estar da Imigração, disse que a Grã-Bretanha deveria ter uma “responsabilidade especial pelas vítimas inocentes desse negócio sangrento enquanto ela se beneficiar disso”, enquanto Smith disse que o tratamento do governo da questão dos refugiados é “consistentemente abominável”.

“Políticos no Reino Unido e em outros lugares precisam parar de culpar as vítimas dessas crises e considerar sua própria cumplicidade e papel na criação das circunstâncias que deixaram tantas pessoas refugiadas”, ele disse. Saleh está esperançoso de que seu advogado possa tirá-lo do voo. Mas com três voos charter no horizonte, é provável que ainda veremos incontáveis pessoas deportadas para a miséria no auge do inverno.

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