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A campanha da Uber e da Lyft contra os direitos trabalhistas de motoristas de aplicativos

Na Califórnia, empresas como Uber e Lyft gastaram 200 milhões de dólares para influenciar um referendo sobre seus trabalhadores.
Na Califórnia, empresas como Uber e Lyft gastaram 200 milhões de dólares para influenciar um referendo sobre seus trabalhadores. Por Gabriel Deslandes | Revista Opera – Revisão de Rebeca Ávila
(Imagem: Estúdio Gauche com base em foto de Wistula)

200 milhões de dólares. Essa foi a cifra gasta por empresas de aplicativos associadas à gig economy (“economia colaborativa”) com uma campanha publicitária para influenciar um referendo na Califórnia em novembro de 2020. O que estava em jogo nas urnas era o reconhecimento de motoristas e entregadores de aplicativos como empregados contratados e não como autônomos ou freelancers. Contra a medida que garantiria benefícios trabalhistas e proteções legais a essa categoria, a Uber, a Lyft e outras plataformas do Vale do Silício atuaram energicamente para convencer o eleitorado californiano a votar para manter o modelo de serviços atual, que nega vínculos empregatícios a esses trabalhadores.

A quantia milionária investida na campanha parece ter dado resultado: o mesmo estado norte-americano que optou massivamente por Joe Biden contra Donald Trump na eleição presidencial – 63,5% a 34,5% – também aprovou no referendo com 58,63% dos votos a Proposta 22, projeto de lei que desobriga os aplicativos de transporte e entrega de seguirem a legislação trabalhista estadual. Na prática, a Proposta 22 garante a essas empresas o poder de retirar os direitos de seus motoristas oferecendo contrapartidas mínimas.

Essa é a opinião da jornalista e integrante do conselho editorial da revista Dissent, Michelle Chen. Ela cobre reivindicações por melhores condições de trabalho nos EUA e fez uma reflexão sobre os caminhos que levaram a essa derrota para os motoristas e entregadores na Califórnia com repercussão e possíveis consequências a nível global.

Segundo Chen, os advogados trabalhistas veem na Proposta 22 um duro golpe contra os benefícios sociais, como a limitação da jornada de trabalho, pagamento de horas extras e afastamento remunerado por doença, consolidados na histórica lei estadual Assembly Bill nº 5 (AB-5), que tornou mais rigoroso o enquadramento jurídico de trabalhadores como empregados ou como autônomos. A decisão afeta não só motoristas, mas também outros tipos de freelancers, como escritores e músicos, e é especialmente danosa durante a pandemia da Covid-19, em que a atividade econômica se reduziu.

AB-5, a lei que balançou os EUA

O lobby promovido pelas plataformas de aplicativo contra direitos trabalhistas não começou com a campanha em favor da Proposta 22. Na verdade, esse é apenas mais um capítulo de uma longa guerra política iniciada com a aprovação provisória da AB-5 pela Câmara e o Senado da Califórnia em setembro de 2019. Essa legislação, por sua vez, também faz parte dos esforços de anos na tentativa de regular os negócios das empresas de aplicativos e estabelecer novas regras para as relações de trabalho na gig economy.

Símbolo maior da transformação que acompanha a revolução tecnológica e também conhecida como “economia de bicos”, a gig economy é definida por um mercado de trabalho dominado pela prestação de serviços temporários ou de curto prazo. Sob esse regime, trabalhadores realizam tarefas pontuais sem vínculos empregatícios com as empresas, como é comum em plataformas como Airbnb e a própria Uber. Não por acaso esse processo de flexibilização das relações trabalhistas e precarização da mão de obra foi classificado por estudiosos, como o sociólogo Ricardo Antunes e a historiadora Virgínia Fontes, como “uberização”.

Nessa fração empresarial de desregulação desenfreada, o medo da intervenção do Estado passou a se manifestar com mais veemência depois de abril de 2018, quando a Suprema Corte da Califórnia julgou uma ação coletiva (caso Dynamex) e interpretou o direito estadual para estender a condição de “empregados” aos motoristas de aplicativos. Na decisão, ficou estabelecido um teste de três fatores – o ABC Test – para determinar se um trabalhador pode ser enquadrado como empregado (employee) ou como autônomo (independent contractor). Segundo a análise do mestrando em Direito pela UERJ, João Renda Leal Fernandes, pelo ABC Test, o trabalhador só pode ser considerado um independent contractor se cumulativamente a) estiver livre do controle e direção do tomador de serviços; b) prestar serviços que estejam fora do escopo usual dos negócios do tomador; c) possuir um negócio independente no setor em que os serviços são prestados (ou seja, se for, de fato, um microempreendedor).

Após a decisão da Suprema Corte, os legisladores da Califórnia foram além e, um ano mais tarde, aprovaram o ato normativo – AB-5 – positivando o ABC Test e o incorporando à legislação trabalhista estadual. A nova lei, redigida pela deputada democrata de San Diego, Lorena Gonzalez, e sancionada pelo governador Gavin Newsom em setembro de 2019, impôs um freio não só ao obrigar as plataformas a tratarem seus condutores como empregados. Ela também estipula que as companhias garantam adicional de horas extras, salário mínimo por hora, limite para jornada de trabalho, afastamento remunerado em caso de doença, intervalos intrajornadas, aviso-prévio de 60 dias e o seguro-desemprego previsto nas leis californianas.

A medida sancionada atingiu em cheio a Uber, a Lyft e a empresa de entrega de refeições DoorDash. As três companhias lançaram um grupo chamado Protect App-Based Drivers and Services (Proteja Motoristas de Aplicativos e Serviços, em tradução livre) e prometeram gastar mais de 90 milhões de dólares para reverter a AB-5. Elas chegaram a apresentar uma contraproposta oferecendo a concessão de alguns benefícios, como o pagamento de uma remuneração cerca de 20% superior ao salário mínimo estadual por hora de trabalho, seguro contra acidentes e reembolso de despesas relacionadas à manutenção e abastecimento dos veículos. Essa pressão, todavia, foi em vão, e a legislação entrou em vigor em janeiro de 2019.

Em pânico, as plataformas de aplicativos passaram a promover um conjunto de iniciativas para substituir ou revogar a lei. Uma das cartadas foi a proposição do referendo para aprovar a projeto de lei Protect App-Based Drivers and Services Act – a chamada Proposta 22 – eximindo as empresas dos efeitos da AB-5. As empresas precisariam coletar em torno de 623 mil assinaturas entre os eleitores registrados da Califórnia para submeter o projeto ao escrutínio popular.

Na Proposta 22, o retorno da “flexibilidade”

Segundo Michelle Chen, o argumento principal das companhias em favor da Proposta 22 girou em torno da noção de “flexibilidade”, ou seja, a suposta liberdade dos trabalhadores de escolher onde e quando trabalhar. A jornalista, porém, acrescenta que essa visão corporativa ignora o quadro real de motoristas submetidos a longas jornadas de trabalho sem benefícios e mal conseguindo sobreviver com uma renda diária cada vez menor.

É o caso dos funcionários da DoorDash, que ganham apenas um dólar por entrega e, muitas vezes, não recebem a gorjeta dos clientes em seu valor integral, ficando retida pelo aplicativo. Já os motoristas da Uber e Lyft relatam queda significativa na renda, redução das horas na estrada e falta de fontes alternativas de remuneração durante a pandemia. De acordo com a Bloomberg, esses trabalhadores também têm reclamado da ausência de suporte das empresas para os profissionais que tiveram que suspender as atividades diárias após o diagnóstico positivo para o coronavírus.

Com a Proposta 22 aprovada, pouca coisa muda em suas condições de trabalho. Os motoristas e entregadores continuam com o status de autônomos, com a promessa de concessão de algumas garantias, como um salário por hora de, pelo menos, 120% do mínimo local e um seguro-saúde calculado pelo número de horas trabalhadas. Contudo, esses benefícios estão condicionados ao “tempo ocupado” do motorista, quando há um passageiro no carro, o que corresponde a 28-33% dos turnos, ou seja, o tempo que leva para pegar e transportar um pessoa ou concluir uma entrega. Assim, seria deixado de fora o tempo gasto com tarefas básicas, como abastecer o automóvel ou limpar sujeira sobre o estofado. Estudos financiados pelas próprias empresas indicaram que os motoristas gastam até 37% do seu tempo no carro logados no aplicativo de transporte, mas sem um passageiro.

Leia também – ‘Breque dos apps’: a greve de entregadores e o direito à saúde

Essa é a realidade cotidiana confidenciada a Michelle Chen pela motorista Nicole Moore, que também é ativista da Rideshare Drivers United (RDU), associação de defesa dos direitos trabalhistas dessa categoria. “Os motoristas estão vivendo no limite, tendo que atrasar o pagamento do aluguel e economizar a comida que têm para alimentar sua família. Não estamos recebendo os passageiros de que precisamos, não estamos recebendo o dinheiro de que precisamos. Nem mesmo um salário mínimo após pagarmos nossas despesas”, afirmou Moore.

Um estudo financiado pelo grupo favorável à aprovação da Proposta 22 estimou que os trabalhadores passariam a ganhar entre 25 e 27 dólares por hora. Entretanto, outro estudo do Centro de Trabalho da Universidade da Califórnia (UC Berkeley) garante que os ganhos podem ser ainda bem abaixo do salário mínimo de 5,64 dólares por hora. Isso representa menos da metade do salário mínimo de 14 dólares da Califórnia instituído a partir de 2021. A RDU prevê ainda que os motoristas continuarão a arcar com despesas como custos de manutenção do veículo por conta própria. “O que a Uber e a Lyft estabeleceram é realmente pior do que aquilo que estão nos pagando hoje e certamente pior do que a lei trabalhista básica”, alertou Moore.

Poder do lobby e da cooptação

O modelo de negócios das empresas de aplicativos por trás da Proposta 22 tem acumulado recordes de lucros bilionários. Quando a Lyft abriu seu capital nas bolsas de valores dos EUA em março de 2019, ela foi avaliada em 22 bilhões de dólares com suas ações disparando em 21% poucos minutos após a abertura do pregão, terminando o dia com uma valorização mais modesta de 8,7%. A Lyft, que já contava à época com 1,9 milhão de motoristas trabalhando por seu aplicativo, se tornou o típico exemplo de startup unicórnio, isto é, firma com avaliação de preço de mercado superior a 1 bilhão de dólares. Por sua vez, a Uber estava avaliada em 82,4 bilhões de dólares antes de sua oferta pública inicial em maio de 2019 e conta com 3,9 milhões de condutores.

Graças a esse modelo empregatício, em que as empresas classificam sua força de trabalho como empreiteiros privados, a Uber e a Lyft pretendem potencializar sua lucratividade expandindo a exploração de seus funcionários. Prova disso é a recusa das duas plataformas em pagar para o fundo de seguro-desemprego da Califórnia, economizando juntas 413 milhões de dólares desde 2014.

Por outro lado, as mesmas companhias investiram mais de 200 milhões de dólares na campanha pelo “Sim” no referendo da Proposta 22, o que fez dela a consulta pública mais cara da história dos EUA. Esse gasto inclui a contratação de firmas de relações públicas, como a MB Public Affairs, que constituiu sua reputação trabalhando para a indústria do cigarro. De fato, o modus operandi durante a campanha do referendo recorreu a práticas já usadas pelo lobby tabagista: as plataformas de aplicativo pressionam legisladores locais, financiam seus próprios estudos acadêmicos favoráveis, criam movimentos de base falsos (processo chamado de astroturfing) e perseguem e assediam críticos.

A campanha chegou a tentar se aproveitar do movimento Black Lives Matter para limpar sua imagem por meio de estratégias de marketing evocando questões de justiça racial. Assim, as companhias propuseram reformular a lei para eliminar o piso salarial de uma mão de obra majoritariamente composta por minorias e imigrantes. A campanha buscou se apropriar da linguagem do ativismo de minorias para tentar persuadir o eleitorado a crer que a aprovação da Proposta 22 seria uma conquista para as comunidades não-brancas.

Algumas lideranças de grupos afro-americanos e latinos, de fato, declararam formalmente apoio ao projeto, como a Associação Nacional para o Progresso de Pessoas de Cor (NAACP) da Califórnia. A Lyft chegou a oferecer viagens gratuitas para os membros dessa organização até o mês de abril. A presidente do NAACP da Califórnia, Alice Huffman, recebeu 85 mil dólares como consultora de relações públicas da campanha pela Proposta 22. Ela participou de anúncios pedindo votos para o “Sim” no referendo e apareceu em um e-mail enviado pela Uber aos seus clientes intitulado “Por que as comunidades não-brancas apoiam a Proposta 22”.

Entretanto, houve também o rechaço explícito por parte de trabalhadores afro-americanos à aprovação da medida. Em carta aberta para os California Black Media Partners, a motorista da Lyft e ativista por justiça racial, Cherri Murphy, condenou duramente o marketing das companhias: “Não somos enganados. Seu discurso de apoio ao Black Lives Matter é vazio, criado por equipes de relações públicas bem-pagas e ausente de qualquer promessa de mudança real”. Segundo pesquisa da Universidade da Califórnia em Santa Cruz citada na carta, 78% dos motoristas de aplicativos nos EUA são afro-americanos e outras pessoas de cor, e 56% são imigrantes. “Justiça racial é justiça econômica. As condições que tornam possível e inevitável o assassinato de negros pela polícia são as mesmas que tornam possível e inevitável a exploração de trabalhadores negros e pardos”, acrescentou a ativista.

Resistência contra a uberização

Para triunfar nas urnas, a campanha pelo “Sim” promoveu uma verdadeira blitzkrieg publicitária que envolveu um gasto recorde de mais de 6,5 milhões de dólares em anúncios no Facebook entre 29 de julho e 27 de outubro. A cifra é maior que toda a campanha digital na Califórnia dos dois candidatos presidenciais no mesmo período de 90 dias – Biden e Trump gastaram no estado, respectivamente, 4,6 milhões e 3,6 milhões de dólares.

Os motoristas também foram bombardeados com anúncios em suas próprias plataformas. Segundo Michelle Chen, essas mensagens prometiam proteger a “flexibilidade” e a “independência” dos trabalhadores. O próprio CEO da Uber, Dara Khosrowshahi, mandou uma mensagem a eles na noite da vitória: “O futuro do trabalho independente está mais bem assegurado agora, graças a muitos motoristas como vocês que se fizeram entender e aos eleitores de todo estado que ouviram”. Na manhã seguinte ao resultado, as ações da Lyft subiam 15,66%, enquanto as da Uber avançavam 11% na Bolsa de Nova York.

Na outra frente, a campanha de oposição à Proposta 22 reuniu coalizão de sindicatos, organizações comunitárias e deputados federais e estaduais da Califórnia. Os opositores, porém, não contaram com 1/10 do orçamento de seus oponentes, e suas mensagens nas redes sociais e serviços bancários por telefone acabaram não tendo a mesma visibilidade, mesmo contando com o apoio formal do presidente eleito Joe Biden, da vice-presidente Kamala Harris e dos senadores Bernie Sanders e Elizabeth Warren.

A ligação de políticos democratas com as companhias de aplicativos explica a falta de engajamento dessas lideranças, como o ex-procurador-geral adjunto do Departamento de Justiça dos EUA no governo Obama e cunhado de Kamala Harris, Tony West, que hoje é diretor jurídico da Uber, e a ex-assessora principal de Obama, Valerie Jarrett, que hoje está no conselho da Lyft. Além disso, o conselheiro-geral do Conselho Nacional de Relações Trabalhistas, Peter B. Robbe, e o próprio Departamento do Trabalho do governo Trump ficaram do lado das empresas.

A vitória no referendo representa um estímulo para as plataformas de aplicativos levarem o modelo de legislação da Proposta 22 para o restante dos EUA, promovendo lobbies contra as regulações trabalhistas estaduais. Esse promete ser um desafio para essas companhias, já que por todo o país têm crescido as cobranças por salários justos, proteções legais para os trabalhadores e pagamento de impostos, movimento reforçado com a pandemia da Covid-19. Sindicatos e associações trabalhistas têm entrado com processos judiciais contra abusos das empresas. A cidade de Nova York já conta, desde 2018, com uma legislação fixando patamares mínimos de remuneração para os motoristas. Em setembro de 2020, Seattle passou uma lei semelhante, classificando os condutores como empregados.

Apesar da derrota na Califórnia, a ativista da RDU, Nicole Moore, confia na permanência da pressão sobre o Uber, a Lyft e as demais plataformas de aplicativos para a regulamentação dos direitos trabalhistas. “Estamos certos de que os motoristas não podem ser trabalhadores de segunda classe. Nosso sucesso no futuro do trabalho significa que, como país, fomos bem-sucedidos em estabelecer os padrões trabalhistas básicos”, disse Moore na revista Dissent. A ativista garante que a mobilização na Califórnia e por todos os EUA não terminou: “Lutaremos de forma absoluta. Lutaremos nos tribunais. Lutaremos com novas leis. Lutaremos contra isso da forma como os motoristas têm obtido mais sucesso, que é com botas de couro e cartazes. Continuaremos nossa luta corpo a corpo”.

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