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Encontro de gerações mantém viva a tradição das grandes duplas da MPB

Na contramão do senso comum, compositores consagrados e jovens talentos estão trocando informações, firmando parcerias e gravando discos.
Na contramão do senso comum, compositores consagrados e jovens talentos estão trocando informações, firmando parcerias e gravando discos. Por Bruno Ribeiro | Revista Opera
Lucas Bueno e Paulo César Feital. (Foto: Divulgação)

Não é de hoje que saudosistas de todas as idades repetem a velha máxima de que “não se faz mais música como antigamente.” E por por “antigamente” entenda-se qualquer coisa: desde as modinhas do início do século passado até o bate-estaca eletrônico que se ouvia há dez anos. No Brasil, “antigo” é um conceito relativo. Só o conservadorismo e a desinformação parecem sempre atuais neste país. 

No entanto, na contramão do senso comum, compositores consagrados e jovens talentos (ainda desconhecidos) estão trocando informações, firmando parcerias, gravando discos e produzindo a todo vapor. Exatamente como sempre aconteceu na história da música brasileira, apesar da opinião contrária dos comentaristas de YouTube.

A Revista Opera destaca três duplas formadas por parceiros de gerações distintas que têm apresentado composições de alto nível: Paulo César Feital e Lucas Bueno; Carlinhos Vergueiro e Arthur Tirone; e Paulo César Pinheiro e Miguel Rabello. São parcerias recentes, mas que podem ser vistas como a continuidade natural de uma tradição jamais interrompida: a história das grandes duplas da MPB. 

“A canção brasileira nunca morreu. O problema é que a mídia não dá espaço para os independentes e as plataformas digitais, tidas como saídas revolucionárias à ditadura do mercado, diluem num oceano de informações toda música que não se enquadra nos padrões das gravadoras multinacionais”, avalia Feital, compositor com quase 50 anos de carreira e autor de músicas que fazem parte do inconsciente coletivo do povo brasileiro, entre elas Saigon, imortalizada na voz de Emilio Santiago.

Segundo ele, a invisibilidade é um dos motivos pelos quais a maioria das pessoas acredita que “não há mais ninguém fazendo boa música no Brasil”, tendo como referência de “boa música” a intensa produção das décadas de 1960 e 1970 — que revelou artistas como Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Paulinho da Viola, João Bosco e o próprio Feital. “Estamos mais vivos do que nunca”, afirma.

Aos 69 anos, Paulo César Feital tem se dedicado a compor com o violonista Lucas Bueno, de 32, que conheceu jogando pelada no campo do Politheama, time de Chico Buarque. “Antes de ser um grande compositor, Lucas é um exímio lateral-esquerdo”, brinca. 

Ele diz ainda que se sente “à vontade” para compor com um parceiro quase 40 anos mais moço. “Quando comecei a compor tive a sorte de ter parceiros mais velhos, como Claudionor Cruz e Nelson Cavaquinho, que me pegaram pelas mãos e me deram espaço. É um prazer poder retribuir. Tem muita gente nova pensando o Brasil e criando coisas lindas e importantes”, afirma. 

Foi também o futebol que aproximou Carlinhos Vergueiro de Douglas Germano, Cadu Ribeiro, Gregory Andreas e Arthur Tirone, todos músicos e “atletas” do Madrugada Futebol e Samba, time de várzea de São Paulo em que Carlinhos marcava presença toda semana, antes da pandemia. 

Parceiro de Adoniran Barbosa em Torresmo à Milanesa, ele diz que não se vê “passando o bastão” à nova geração, pelo fato de que ainda está em plena atividade. “Eu nunca parei de compor e de cantar. Estou inteiraço e com ânimo redobrado para seguir na estrada com novos parceiros”, diz. 

Apesar de compor com os quatro nomes citados acima, é com Arthur Tirone, conhecido como “Favela” no meio do samba, que Carlinhos Vergueiro tem construído de modo mais sistemático uma obra (em pouco tempo de amizade, a dupla fez quase vinte músicas, incluindo Tô Aí, que dá nome ao disco mais recente do artista, lançado pela Biscoito Fino).

No caso de Paulo César Pinheiro, letrista mais importante do País — com centenas de parceiros espalhados pelo Brasil e cerca de 1,5 mil músicas gravadas por mais de 500 intérpretes —, o parceiro mais jovem com o qual trabalhou até hoje é aquele com quem vem compondo na atualidade: Miguel Rabello, de 25 anos, filho do pianista Cristóvão Bastos e da cantora Amélia Rabello. “Miguel é um excelente violonista e sua melodia é um sopro de novidade na música brasileira, embora esteja vinculada à tradição em seu melhor sentido”, disse em entrevista à Revista Opera em abril deste ano, um dia antes de completar 71 anos de idade.

Paulo César Feital e Lucas Bueno

(Foto: Divulgação)

Em depoimento a Luiz Carlos Prestes Filho, de quem é amigo, Lucas Bueno falou sobre a relação entranhada entre sua música e as paisagens de sua cidade natal, Cachoeiras de Macacu, no interior do Rio de Janeiro: “Villa-Lobos saiu do Rio e visitou o Norte do país para se inspirar na Floresta Amazônica. Tom Jobim dedicou sua obra à Mata Atlântica e tinha como abrigo seu sítio em São José do Rio Preto. Eu tive a sorte de nascer praticamente dentro do Parque dos Três Picos e de conviver, nestes meus 32 aniversários, com um jequitibá de mil anos. Considero que a orquestra dos ventos que abraçam seus galhos me fizeram compositor.”

Tão forte a sua relação com Cachoeiras de Macacu que, quando não está compondo, tocando ou gravando em estúdio, Lucas pode ser encontrado servindo de guia turístico a grupos que chegam de todas as partes do Rio, e mesmo de outros estados, para conhecer as 120 cachoeiras do município. “Ele tem essa relação intrínseca com a sua terra, que é algo que admiro e valorizo muito num ser humano”, diz Paulo César Feital.  

O primeiro encontro se deu num jogo de futebol entre amigos de Chico Buarque. “Eu já achava surreal trocar passes com o saudoso Ruy Faria, do MPB4, Hyldon, Sombrinha, Feital, tomar uns dribles do Chico, do Carlinhos Vergueiro, enfim, estar no meio de tantas referências. Compor com qualquer personagem daquela trupe celestial até passava, num devaneio, pelo meu imaginário, mas com os pés no chão, ou nos gramados, pensava ser mera utopia”, conta Lucas.

O início da parceria musical entre Paulo César Feital e Lucas Bueno se daria alguns meses depois do primeiro contato, quando vieram a se reencontrar numa reunião do UNA — movimento musical independente que promove rodas de conversa e de música entre artistas consagrados e compositores da nova geração. Na ocasião, o convidado do “alto escalão” era Feital, que faria a audição das canções inéditas e depois teceria seus comentários aos jovens compositores ali presentes. Lucas era um deles. “Assim que Lucas Bueno começou a tocar e cantar, fiquei extasiado. Me chamou a atenção o valor harmônico do violão, as melodias tortas e de muito bom gosto. Pensei na hora: quero compor com esse cara”, diz.

A música em questão era Valsa Nordestina — e Feital ouviu nela “ecos de Guinga e Villa-Lobos”. Lucas afirma ter se surpreendido quando o compositor, veterano e parceiro de tantos artistas importantes, além de ter gostado de sua música, convidou-o a iniciar uma parceria. Da amizade surgida ali, nasceria o show lítero-musical Fragmentos de um país que Samba e Chora, embrião do CD Lágrimas, lançado em 2019. 

Lágrimas é formado por dez músicas de Feital e Lucas que falam do Brasil dos nossos dias. Apesar do tom de indignação e lamento que permeia boa parte deste trabalho, o conjunto da obra celebra a esperança na brasilidade enquanto força-motriz da superação do povo. “Sempre foi assim ao longo da história e não seria diferente agora”, acredita Paulo César Feital, para quem o disco é uma “obra sociopolítica”.

Lucas Bueno concorda. “Diante do esfacelamento da memória nacional, da aniquilação dos direitos conquistados, achamos que o momento era pertinente para produzir um grito de protesto.” A divulgação do álbum, porém, não foi nada fácil: o clipe da faixa É Foda, um samba contra o obscurantismo inaugurado pela chegada de Bolsonaro ao poder, foi “boicotado pela Internet”, segundo o violonista.

O vídeo foi retirado do Facebook e do Instagram e não foi possível impulsionar nada referente ao álbum nas redes sociais. “Também não pudemos colocar o CD na loja virtual da nossa página. Nas diversas vezes em que tentamos, em vão, recebemos uma mensagem alegando ter o nosso produto conteúdo impróprio, e que o mesmo feria as diretrizes da rede. Tivemos que trocar letras de algumas canções em programas de rádio. Sugeriram, certa vez, que mudássemos o repertório para participarmos de um programa de TV. A censura hoje vela uma falsa liberdade de expressão”, desabafa.

Além de É Foda, o álbum traz como destaque as faixas Pão com Goiabada (parceria póstuma da dupla com João Nogueira) e Samba pra Darcy Ribeiro, que homenageia um dos mais importantes pensadores brasileiros do século XX. Lágrimas conta ainda com participações especiais de Nina Wirtti, Moyseis Marques, Claudio Nucci, Soraya Ravenle e Vidal Assis. 

“Meu parceiro carrega no peito e na caneta o Brasil em que acredito”, diz Lucas Bueno sobre Paulo César Feital. “Ele e Ary Barroso, comprovadamente, são os dois compositores que mais cantaram o Brasil, os que mais colocaram Pindorama no seio de seus versos. Além disso, Feital preserva e reverbera algo que está se perdendo: o cronista brasileiro”, afirma. 

Feital retribui o elogio na mesma toada. “Lucas Bueno tem um coração socialista e quer o bem do povo. Esse é o sentimento mais nobre que um compositor popular brasileiro pode ter. Além disso, ele tem aquela pacificação de quem nasce em Cachoeiras do Macacu; uma paz que nos aproxima e nos torna irmãos de alma.” 

O plano imediato de Lucas e Feital, passada a pandemia, é voltar aos palcos para trabalhar o show de Lágrimas e entrar em estúdio para gravar o segundo álbum da dupla. Eles não se encontram pessoalmente desde março, por conta da grave crise sanitária que assola o País, mas continuam compondo à distância. Foram mais de vinte canções até o momento. “Não acredito em revoluções sangrentas, minha arma é a palavra. Enquanto viver colocarei minha canção a favor do povo brasileiro. E, quando eu partir, compositores como Lucas Bueno continuarão mantendo acesa a chama da utopia”, diz Feital.

 

Carlinhos Vergueiro e Arthur Tirone

Em Tô Aí, álbum que celebra seus 45 anos de carreira, Carlinhos Vergueiro apresenta cinco composições feitas com novos parceiros: Cantei Meu Samba, com os irmãos Cadu Ribeiro e Gregory Andreas (integrantes do Trio Gato com Fome), Flor do Meu Lugar, com Douglas Germano, e De Mais a Mais, Tô Aí e Valsa do Esquecimento, com Arthur Tirone. Lançado no meio deste ano, o disco celebra a renovação do repertório e as parcerias nascidas com o retorno do artista a São Paulo, em 2017, após uma temporada morando no Rio. 

(Foto: Acervo pessoal)

Conheceu os parceiros no campo do Madrugada Futebol e Samba — time formado por músicos que há cinco anos se encontram às terças-feiras no período noturno para jogar bola e, depois, emendar com churrasco e roda de samba. Com Arthur Tirone, que tem sido seu parceiro mais constante, Carlinhos fala quase todos os dias, por telefone. Devido ao distanciamento forçado, as peladas foram suspensas e as melodias passaram a ser enviadas via WhatsApp ao letrista (embora faça também melodia, Tirone é o responsável pela caneta na dupla com Vergueiro). “Eu nem tenho celular. Uso o da minha mulher, quando quero me comunicar com o Favela”, revela.

Arthur Tirone, nascido e criado na Barra Funda, em São Paulo, berço da tradicional escola de samba Camisa Verde e Branco, ganhou o apelido de Favela na infância. “Quando eu era garoto vivia atrás de roda de samba, ia nos botecos, gostava de jogar baralho. Os mais velhos falavam que eu era muito maloqueiro. Aí virei Maloca, mas muita gente confundia e me chamava Favela, e acabou ficando.”

Aos 38 anos, Tirone se autodefine como “pesquisador diletante dos personagens e histórias da Barra Funda”, sendo ele próprio um conhecido personagem do bairro que, no passado, originou o samba paulista e ainda hoje pode ser considerado um forte reduto de sambistas e malandros. Logo ao lado, no vizinho Bom Retiro, Favela exerce o cargo de diretor social do Clube Anhanguera, associação de várzea fundada em 1928, em cuja sede, durante sete anos, aconteceu o projeto “Anhanguera Dá Samba” — roda fundada e comandada por ele, que recebia artistas como Luiz Grande, Wilson Moreira, Nei Lopes e Moacyr Luz, entre muitos outros.  

Arthur Tirone é filho direto da ocupação, por parte de imigrantes de origem italiana, do território que a partir de 1875 começaria a se expandir para além da Estação Ferroviária Barra Funda, tornando-se um bairro de casas geminadas construídas à base de “ponta de chuva” — técnica dos capomastri (mestres de obras) que, com a ponta de seus guarda-chuvas, desenhavam a planta das casas diretamente no chão de terra. Mesmo com a reconfiguração do bairro, algumas dessas casinhas ainda podem ser avistadas. 

No começo do século XX, a Barra Funda recebe grande contingente de negros operários e o Largo da Banana, centro comercial da época, passa a ser o ponto de encontro. Era lá que o couro comia nas rodas de batuque e tiririca. Foi lá que, da mistura de ritmos africanos (como o jongo e a umbigada) com os instrumentos de corda do choro tocado pelos brancos, brotou o samba paulista — um samba “duro, forte, batucado, sem o lirismo e a cadência do samba do Rio de Janeiro, porém original”, conforme o escritor Plínio Marcos. 

Nenhum outro sambista sintetizou tão bem a história do bairro quanto Geraldo Filme, o “Geraldão da Barra Funda”, que Carlinhos Vergueiro chegou a conhecer. Em 1980, aliás, ele assina a produção do primeiro e único disco solo de Geraldo Filme, um clássico do gênero que deu visibilidade nacional à obra de um compositor até então restrito aos meandros da Barra Funda e seus arredores. 

“Eu era muito moço e andava com esse pessoal do samba. De Adoniran Barbosa tive o privilégio de ter sido amigo de botequim e parceiro. Vejo no Favela um astral muito parecido com o daquela gente da antiga”, diz Carlinhos Vergueiro. 

Arthur Tirone tem opinião parecida sobre o parceiro. “Carlinhos tem esse dom de se entrosar com as gerações mais novas sem parecer o cara mais velho da turma. É a generosidade em pessoa: sendo parceiro do Chico Buarque e do Paulo César Pinheiro, me aceitou como parceiro também. Para quem cresceu ouvindo os discos do Carlinhos Vergueiro, compor com ele é um luxo”, comenta. 

Na obra, ainda incipiente, o destaque é uma canção com potencial para sobreviver ao tempo: a Valsa do Esquecimento. O tema, inédito na MPB, aborda o drama de um filho que convive com a mãe portadora do Mal de Alzheimer. Tirone conta que vinha tentando fazer uma letra de amor para esta melodia, mas a ideia não estava funcionando. “A melodia pedia algo mais denso. E o tema veio de repente, numa conversa com a minha sogra. Ela me contava o caso de uma amiga que perdeu a memória e passou a dar em cima do próprio filho. Percebi na hora que ali estava um ótimo tema, até porque temos na família uma tia com Alzheimer e pude me inspirar na história dela.”

Carlinhos Vergueiro se emocionou quando recebeu a letra e cantou pela primeira vez a Valsa do Esquecimento. Mostrou-a em primeira mão a dois de seus parceiros mais antigos, J. Petrolino e Paulo César Feital. Ambos fizeram questão de ligar para Arthur Tirone e elogiar a beleza dos versos. Sem demora, Carlinhos decidiu incluir a canção no disco sobre o qual vinha trabalhando e a mesma ganhou clipe com a participação do músico cubano Yaniel Matos, que tocou cello. 

“Favela é um bom letrista porque tem ideias originais e com aquela pegada de crônica que eu tanto gosto. Isso é raro”, resume Carlinhos Vergueiro, que espera ansiosamente pela chegada da vacina contra o coronavírus para voltar aos palcos e realizar a turnê do álbum Tô Aí, adiada pela pandemia. Enquanto isso não acontece, ele e Arthur Tirone continuam compondo em silêncio, com a paciência de quem não busca o sucesso imediato. “Compor é que nem jogar bola: não pode parar senão enferruja”, define o bardo da Barra Funda. 

 

Paulo César Pinheiro e Miguel Rabello

(Foto: Georgia Branco)

Miguel Rabello tinha apenas 17 anos quando, num encontro familiar, tomou coragem de mostrar sua primeira música ao seu padrinho, o letrista Paulo César Pinheiro. Era o ano de 2012 e Miguel estava começando a estudar algumas ideias musicais. “Logo depois de ouvir algumas vezes, Paulinho respondeu com um trecho de letra, como que tendo a inspiração de imediato ao ouvir a melodia. Buscou o gravador, me pediu que eu cantasse de novo e, no dia seguinte, me mostrou a letra completa”, conta. A composição, um samba, ganhou o nome Lição de Vida e entrou no álbum Meia Volta, que Miguel Rabello gravou com a cantora Luísa Lacerda, em 2017. 

Hoje, aos 25 anos, Rabello contabiliza 76 músicas feitas e 31 gravadas em parceria com Pinheiro, além de um obra em constante movimento: há um disco novo, em fase de mixagem, para ser lançado nas plataformas de streaming no começo de 2021. O disco Na Caravana de Fazer Canções foi gravado no formato voz e violão. Das dez canções, cinco são da parceria com Paulo César Pinheiro e cinco com Roberto Didio. “Além desse disco, tenho outros projetos que não poderão ser realizados por agora, porque envolvem levar gente pro estúdio, mas para os quais estou estudando, me preparando para quando for possível, por mais distante que esse momento pareça por enquanto.”, conta.

Obviamente, os laços familiares entre Miguel Rabello e Paulo César Pinheiro facilitaram o início e a consolidação da parceria, mas é bem possível que o letrista teria se interessado de qualquer maneira pelas melodias e soluções harmônicas do jovem violonista, ao mesmo tempo modernas e vinculadas à tradição. Bastaria ao destino apresentá-los. 

Miguel é sobrinho de Raphael Rabello, um dos maiores expoentes do violão brasileiro em todos os tempos, mas não chegou a conviver com ele. Raphael morreu muito moço, em 1995, mesmo ano do nascimento de Miguel. Tinha apenas 32 anos, mas seu nome já estava consagrado na história, como costuma ocorrer aos gênios. É possível vislumbrar no violão de Miguel a mesma chispa intuitiva que havia no tio, por mais estudo que haja por trás da técnica. 

Em 2019, ao lado do pianista Breno Ruiz, Miguel Rabello gravou o disco Diferente, contendo 12 canções de ambos com Paulo César Pinheiro. Ao ouvi-lo pela primeira vez, disse Dori Caymmi: “Vejo muito de mim, da minha juventude, quando o ouço tocar”. Aquiles Reis, do MPB4, escreveu no Jornal do Brasil que “as melodias de Miguel são qualquer coisa próxima da genialidade.” 

Em entrevista deste ano, o poeta declarou considerar Miguel Rabello um dos melodistas mais talentosos da atual geração e revelou que, quando compõe com o afilhado, chega a se esquecer que a diferença de idade entre eles é de 45 anos. “Compus com Pixinguinha, o mais velho dentre todos os meus parceiros, e componho com Miguel, que é o mais jovem. E é como se fizessem parte da mesma família.”

Paulo César Pinheiro começou a compor com 14 anos e antes dos 18 já era parceiro de Baden Powell. Foi gravado por todas as grandes vozes da música brasileira e dentre seus muitos parceiros estão Tom Jobim, Francis Hime, Edu Lobo, Eduardo Gudin, Carlinhos Vergueiro, Cristóvão Bastos e Moacyr Luz. Para Miguel Rabello, fazer parte desse time é o que de melhor pode acontecer a um compositor iniciante. Se pudesse resumir a relação afetiva com o letrista, talvez escolhesse os versos da canção O Grande Artista, assinada pela dupla: “Quem vê na arte a beleza/ Tem compulsão de chorar/ É porque o grande artista/ Faz ficar bela a tristeza.”

“Ele (Paulo César Pinheiro) é uma das referências maiores da música que tenho a ambição de fazer — e a música que ouvi é mais importante do que a que eu faço”, afirma Miguel Rabello. “Mas ele é, antes de tudo, pra mim, uma pessoa real, meu padrinho de batismo. A relação de parceria musical como fruto de uma relação de vida torna essa produção muito especial. O gesto de buscar o gravador quando mostrei o primeiro samba é símbolo do incentivo que ele buscou trazer pra um compositor muito mais novo, que estava apresentando naquele momento as suas primeiras ideias. É difícil pensar em incentivo maior para fazer novas canções”, diz. 

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