A notícia passou despercebida, mas pode ser de enorme importância estratégica. Há duas semanas, o Parlamento Europeu decidiu confirmar o texto de sua resolução sobre Política Externa e Segurança para este ano, que inclui uma menção especial às negociações em relação ao acordo de livre comércio da União Europeia com o Mercosul.
Especificamente, o documento em seu parágrafo 47 “(…) salienta a importância de impulsionar e completar a revisão dos acordos globais com o Chile e o México, bem como do Acordo de Associação UE-Mercosul, e sublinha que se trata de importantes aliados e parceiros da UE”.
Esta formulação, aparentemente neutra e simpática, na verdade refletiu uma mudança substantiva do posicionamento europeu, cujo parlamento em outubro passado definia que “não se pode ratificar o acordo entre a UE e o Mercosul no estado atual”.
A última decisão europeia desfaz a ideia mantida por muitos movimentos sociais, formadores de opinião e políticos latino-americanos de que a União Europeia não iria avançar até a assinatura do acordo Mercosul-UE, já que comprometia questões ambientais e trabalhistas.
Não compreendiam – alguns talvez cinicamente – que a aparente intransigência europeia servia para impor maiores exigências aos países do Mercosul nas negociações, o que, aliás, conseguiram (menos abertura e mais discrição para limitar a entrada de produtos do Mercosul à Europa).
Não se quis entender que as negociações não se baseiam em princípios estritamente idealistas, mas sobretudo em interesses. O protecionista setor agrícola europeu, embora inicialmente contrário ao acordo com o Mercosul, é secundário dentro do capitalismo europeu, e pode ser neutralizado com maiores garantias de proteção e/ou mais subsídios.
Vamos ver o que acontece agora. Claro, os europeus estão atualmente pressionando para uma rápida confirmação do acordo Mercosul-UE. Exemplo disso, e presumivelmente não ocasional, são as declarações recentes do Comissário para Assuntos Exteriores da UE, o social-democrata espanhol Josep Borrell, que disse para “colocar toda a pressão sobre a América Latina”.
Além disso, houve também a publicação de um estudo de impacto, algo que os países do Mercosul no geral não fizeram em relação às suas próprias economias, nem para determinados setores, afirmando que o crescimento das exportações europeias ao Mercosul, caso o acordo seja firmado, seriam significativamente maiores do que as importações, mesmo para produtos tão sensíveis como os laticínios.
Lamentavelmente, aqui, ao contrário de 2018 e 2019, quando se havia construído um certo consenso de oposição diante do acordo assimétrico inicialmente firmado, o tema Mercosul-UE foi negligenciado em análises e discussões. A isso contribuem:
- As negociações que seguem em segredo, e não deram a conhecer significativas concessões oferecidas pelos negociadores do Mercosul (entre outras; discrição europeia para determinar limitações sanitárias, liberalidade na certificação de origem) em troca de muito pouco (algumas permissões para superar indicações geográficas);
- Embora as autoridades reconheçam que a experiência de outros acordos de livre comércio vigentes entre a União Europeia e países latino-americanos aumentaram o déficit nas balanças comerciais (Chile, México, Peru, Equador), afirmam sem nenhum fundamento que a posição europeia em organismos multilaterais (por exemplo, a atual negociação chave da Argentina com o FMI) será “muito compreensiva e benevolente” se o acordo for ratificado;
- Os setores econômicos e sociais dos países do Mercosul potencialmente afetados por um acordo desvantajoso (economias regionais, indústrias, serviços) não têm acompanhado o assunto, tanto por desconhecimento de suas possíveis consequências como por uma ilusão infundada de que “é o momento de se abrir ao mundo”, quando justamente o panorama internacional no contexto da pandemia e da crise das economias é muito delicado, pois crescem as tendências protecionistas e disputas geopolíticas entre economias centrais.
Valdis Dombrovskis, vice-presidente da Comissão Europeia, reconheceu com sinceridade e sem romantismo que “é necessário vencer a resistência a um acordo que garantiria à União Europeia o acesso privilegiado ao maior bloco comercial da América do Sul, à frente da China e dos EUA”.
Como afirma com lucidez o empresário pyme (pequenas e médias empresas) argentino Raúl Hutín, Secretário da Central de Entidades Empresariais Nacionais (CEEN): “Não nos fechamos ao mundo nem fugimos da concorrência. Mas, para que isso seja equitativo, é necessário que haja condições similares entre as partes, o que está muito longe de acontecer hoje. Se não forem considerados os diferentes graus de desenvolvimento, como acontece na vida, o maior simplesmente prevalece sobre o menor. O livre comércio, sem considerar as desigualdades no ponto de partida, gera maiores desequilíbrios”.
É preciso, de imediato, que sejam transparentes as negociações que se travam entre os negociadores do Mercosul e da União Europeia, nesta etapa que se denomina de “revisão legal”.
Não é possível aceitar, sem fundamento e de forma um tanto infantil, que o acordo seria automaticamente benéfico para ambos os blocos por se tratar da perspectiva de um mercado unificado de 800 milhões de pessoas. Se for mal feito, como todos os sinais indicam, os desequilíbrios se aprofundarão perigosamente, quando as sociedades demandam, pelo contrário, revertê-los ao estar vivenciando uma crise histórica.