A África entrou na discussão global sobre a COVID-19 de maneira típica – envolta em um discurso de lamento e crise. Em abril de 2020, enquanto a cidade de Nova Iorque mantinha firmemente o título de “epicentro da COVID” (depois que a Itália o cedeu), estudos e artigos de opinião proliferaram, prevendo que o fim da África estava no horizonte. Um especialista em saúde pública, escrevendo para o Fórum Econômico Mundial (FEM), advertiu que a África tinha uma “bomba-relógio para desarmar“. Enquanto os países ricos lutavam com seus próprios sistemas de saúde colapsados, mais africanos morreriam porque o Ocidente não teria condições de ajudar. Em maio, a Escola de Medicina de Yale previu que até o final de junho 16,3 milhões de africanos poderiam contrair o vírus – um aumento de 135% no número de casos de abril a maio, e de 39% de maio a junho. A falta de infraestrutura de saúde, altas taxas para o uso do serviço, grandes populações de refugiados, altas taxas nos indicadores de comorbidade, governança deficiente, corrupção e falta de saneamento foram apenas alguns dos fatores que explicavam o antecipado número de mortes relacionadas à COVID na África.
Estudos como esse surgiram aos montes nos primeiros meses da pandemia. A realidade, contudo, afastou-se da ciência e da opinião dos especialistas. Em agosto, o número de casos de COVID no continente permaneceu baixo tanto em termos absolutos quanto proporcionais. Naquela época, especialistas começaram a postular o porquê de os africanos não estarem morrendo como eles haviam previsto. Nas repercussões destas conjecturas errôneas, manchetes como “Cientistas não conseguem explicar a intrigante falta de surto de coronavírus na África” apareceram na mídia. Mais uma vez, especialistas da saúde pública retornaram ao que haviam esboçado anteriormente ao expor o continente a altos casos de COVID 19 — pobreza, densidade populacional, estruturas demográficas, fatores de comorbidade. Alguns até mesmo sugeriram que estes números eram resultado da baixa testagem, o que desde então tem sido refutado. O que as previsões não levaram em conta foi a agilidade na ação da maioria dos países africanos. Gana foi um dos primeiros países a fechar todas suas fronteiras terrestres e marítimas. Para nações afetadas pelo Ebola, ainda havia infraestrutura para responder à COVID, minimizando assim a propagação. Senegal e Ruanda também tiveram respostas dignas de nota, caracterizadas por soluções inovadoras de tratamento e rastreamento de contatos. A União Africana coordenou com parceiros regionais o lançamento da Plataforma de Suprimentos Médicos da África — um mercado virtual onde governos e funcionários da saúde podem comprar diretamente suprimentos médicos essenciais.
O que essas previsões fracassadas mostram é como a indústria global da saúde pública é cúmplice com a reprodução do que Malinda Smith chama de “a tragédia africana” — uma indústria epistêmica acrítica que tem produzido conhecimento sobre o desenvolvimento africano como uma tragédia monolítica e primordial. Este espaço intelectual é geralmente habitado por economistas do desenvolvimento que dão crédito apenas para fatores internos como “boa” governança e instituições econômicas. A tragédia africana se mantém por meio de uma valência de ciência objetiva e quantificável que oblitera discursos racistas e não-reflexivos sobre o continente. A saúde global, assim como economistas do desenvolvimento, inicia suas pesquisas e previsões para a disseminação do COVID-19 na África com um conjunto de premissas que dependem de um continente indiferenciado, sem possíveis atributos positivos que possam conter a propagação do vírus. Nós vimos evidências disto quando dois médicos franceses expressaram como os testes de vacinas deveriam ocorrer na África pois “não há máscaras, nem tratamentos, nem UTIs” e “eles estão altamente expostos e não protegem a si mesmos”.
Estes comentários desencadearam indignação, com o chefe da Organização Mundial da Saúde chamando-os de “ressaca da mentalidade colonial”. No entanto, quão diferentes são esses comentários dos motivos subjacentes que justificaram previsões prematuras de que a África seria devastada pela COVID? Quando alguns países africanos superaram em muito as expectativas, as manchetes prenunciaram que o pior ainda estaria por vir. O New York Times recentemente propôs que o “tempo extra” obtido pela lenta disseminação do vírus não era suficiente para reforçar os fracos sistemas de saúde, o que logo traria o número de casos originalmente previstos para o continente. Mais recentemente, a ascensão de casos e mortes relacionadas à COVID na África foi associada à variante sul-africana altamente transmissível do vírus. Aqui, novamente, autoridades de saúde pública não previram que o fator primário do crescimento dos casos de COVID-19 na África seria uma versão mais contagiosa do vírus, mais uma vez mudando nossa atenção da dilapidada infraestrutura de saúde para questões de saúde pública que transcendem o desastre esperado. Os dados desagregados por país mostram que a maior parte das nações africanas continuam a controlar a propagação do vírus e as taxas de mortalidade — e ainda se saindo melhor que muitas nações mais ricas.
Um apelo à tragédia africana nunca é sobre as causas fundamentais da pobreza, da falta de infraestrutura ou da corrupção. Esses fatores não podem ser tratados por mais intervenções de ajuda e desenvolvimento. As soluções para estes problemas de saúde pública demandam uma reestruturação fundamental da ordem política e econômica. Nós vemos os primeiros passos nesse sentido com a Aliança para Uma Vacina Popular – uma coalizão de governos e atores do Sul Global exigindo que a vacina contra a COVID-19 com financiamento público seja um bem público. Estas demandas surgem à medida que os países ricos, compreendendo apenas 14% da população global, compraram 53% da vacina mais promissora contra a COVID-19. Os países do Sul Global recorreram à OMC para exigir a suspensão do Acordo TRIPS [sigla em inglês para o Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio] para garantir que todos os países tenham acesso aos recursos de saúde necessários para controlar o vírus.
V.Y Mudimbe expressa como a alteridade da África é uma característica inexorável na invenção da África. Ela sustenta a capacidade do Ocidente de se imaginar como intelectual e moralmente superior. Estas ilusões de grandeza são mantidas através de empreendimentos como a saúde pública global, que reforça discursivamente as condições que sugerem a necessidade da África permanecer financeira e epistemicamente dependente dos países ocidentais. A previsão de mortes relacionadas à COVID foi acompanhada pelo chamado mundial para “salvar a África”. Fuga de cérebros, espoliação de terras para extração de recursos naturais, ganância sobre os direitos de propriedade intelectual e histórias de racismo médico contribuíram para as condições que teriam levado especialistas de saúde pública a prever que a COVID arrasaria o continente.
Muitos países da África Ocidental ainda estão se recuperando dos efeitos que o Banco Mundial e a Iniciativa Bamako, apoiada pelo FMI, causaram em seus sistemas de saúde. Tornar essas questões salientes, no entanto, é compartilhar a responsabilidade da tragédia africana com a comunidade internacional.