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Democracia e crise política: Paraguai em busca do seu destino

No Paraguai, mais um março marca ida do povo às ruas em busca de acerto de contas com sua própria “transição transada”.
No Paraguai, mais um março marca ida do povo às ruas em busca de acerto de contas com sua própria “transição transada”. Por Marcos Perez Talia | CELAG – Tradução de Fernanda Rosa para a Revista Opera, com revisão de Rebeca Ávila
(Foto: Daniela Riquelme)

Março costuma ser um mês de crise política no Paraguai, traduzido em protestos da população frente aos desvarios do poder. Em 1999 aconteceu o que ficou conhecido como “Março paraguaio”, resultado de uma série de manifestações que começaram com o assassinato do vice-presidente Luis María Argaña e de uma dezena de jovens na praça, além de significar o fim do governo de Raúl Cubas e a ruptura do pacto colorado-militar. Em 2017 ocorreu o “segundo março paraguaio”, quando Horacio Cartes buscou de maneira ávida sua reeleição presidencial por meio de emenda constitucional de legalidade questionável. Isso gerou uma indignação popular que terminou com o Congresso em chamas, cerca de 200 manifestantes presos, um legislador baleado e um militante juvenil assassinado pela polícia na própria sede do principal partido opositor. 

Com diferentes ingredientes e atores, o “março de 2021” trouxe algumas características de outrora. Mas para que se possa fazer uma leitura adequada do que parece estar em crise na atualidade, é preciso estender brevemente a análise política ao passado. 

Em primeiro lugar, o Paraguai transita por uma inédita era democrática, embora seja de muito baixa qualidade. Qualquer índice internacional de medição de qualidade da democracia sinaliza que a paraguaia se situa – em termos de rendimento – entre as piores da região. De fato, a própria transição paraguaia foi capitaneada pelo mesmo partido político que sustentou a ditadura durante 35 anos.

A queda do ditador Stroessner em 1989 aconteceu graças a um golpe planejado e executado entre militares e uma facção do Partido Colorado. A crise no interior da coalizão governante abriu um novo panorama de liberalização e uma inédita oportunidade para iniciar o processo de democratização. A transição de um regime ditatorial a um mais democrático foi se desencadeando não tanto pela ânsia democratizadora dos golpistas, mas sim pela impossibilidade de reconstruir um nível mínimo de hegemonia. A transição esteve sempre controlada desde cima e também por dentro. E se o tipo de democracia almejada pela elite política e econômica ainda gera controvérsias, parece mais nítido que a democracia alcançada apresenta um matiz unicamente procedimental. O destaque está posto no processo eleitoral, no funcionamento formal das instituições e no respeito a (alguns) direitos políticos e individuais. 

A democracia foi estabelecendo-se ao ritmo do Partido Colorado, em aliança com a elite econômica, que obtém lucros das licitações do Estado. Nunca houve um programa democrático mais concreto, ainda que o coloradismo tenha conseguido atravessar exitosamente seguidas eleições. Apenas em 2008 a oposição chegou ao Poder Executivo, embora uma das variáveis de maior peso que explica a inédita alternância tenha sido a divisão do partido governante (especialmente após a saída do general Lino Oviedo). Apesar de alguns êxitos na gestão, o governo de Fernando Lugo não pôde se sustentar por várias razões, o que favoreceu o retorno quase imediato do Partido Colorado nas eleições presidenciais seguintes. Entretanto, a sensação em relação à satisfação com a democracia mostrou que a alternância foi algo positivo para a política paraguaia, valorizada pela população.

Nível de satisfação com a democracia nos últimos seis períodos presidenciais. Azul: Muito satisfeito / satisfeito | Vermelho: Pouco satisfeito / insatisfeito

Esses dados sinalizam que, embora o coloradismo tenha voltado a vencer em 2013, com Horacio Cartes, e em 2018 com Mario Abdo Benítez, a alternância apresenta uma “lembrança” positiva e impactou no sentimento relacionado à democracia. O mesmo aconteceu também com a medição da satisfação com os diferentes governos. Além disso, nas últimas eleições presidenciais de 2018 apresentaram-se alguns fatos interessantes: i) foi o melhor desempenho da oposição em toda a era democrática, com a chapa de Efraín Alegre e Leo Rubín alcançando 42,7% dos votos; ii) quase todos os meios de comunicação hegemônicos iniciaram uma feroz campanha de divulgação de pesquisas que apontavam um cenário massacrante, com uma diferença de 35% a favor do coloradismo; iii) no dia das eleições, quase todas as bocas de urna realizadas pelos meios de comunicação narravam a vitória “estatisticamente irreversível” a favor de Mario Abdo. Apesar de tudo isso, a aliança opositora ficou a 3% do triunfo, numa eleição que teve cheiro de fraude, com o vazamento de áudios em que um alto funcionário da Justiça Eleitoral supostamente negociava votos a favor do Partido Colorado em troca de dinheiro.

Nesse cenário assumiu Mario Abdo em 2018. Apesar de sua urgente necessidade de aumentar a legitimidade e as bases de apoio, o candidato eleito empenhou-se em fazer o contrário. Em 2019 esteve a ponto de ser destituído por um processo político assim que a oposição denunciou a chamada “traição à Ata Secreta de Itaipu”. Somente foi salvo in extremis pela ala de Horacio Cartes, com a condição de permanecer quase submetido à vontade política do “cartismo”.

A pandemia de 2020 transformou-se, segundo a cientista política argentina Julia Pomares, num “poderoso acelerador de tendências já existentes”. Embora o Paraguai tenha conduzido muito bem a pandemia durante os primeiros meses, a falta de acesso a vacinas, as constantes denúncias de superfaturamento em licitações do Estado e a má qualidade do sistema de saúde estão desgastando a pouca legitimidade do presidente Abdo.

Em março teve início uma série de mobilizações populares, transversais aos partidos políticos e com diferentes motivações, ainda que com um fio condutor que se expressa por meio da hashtag #ANRNuncaMás [em referência à Associação Nacional Republicana (ANR), nome oficial do Partido Colorado]. Mario Abdo está sofrendo as consequências do fracasso na política sanitária, mas também de um modelo de gestão histórico. A título de exemplo, quando ainda não havia pandemia, a classe alta se tratava no Sírio Libanês, enquanto as pessoas da classe média para baixo iam para a Argentina em busca de tratamento. Com as fronteiras fechadas ficou em evidência o fracasso da gestão atual, mas também de uma forma histórica de administração pública, da qual o Partido Colorado é o principal responsável. 

Nesse sentido, porém, a própria dinâmica interna da ANR favorecia o discurso de poder e oposição ao mesmo tempo. Eles tinham a crise e a alternativa para a crise no interior de seu partido. Essas manifestações populares, se apresentam algo novo, é o fato de atacar a própria etiqueta partidária e o modelo que o coloradismo sustenta. Já não parece ser apenas uma crise de uma ala, mas sim de um modelo de gestão pública que parece esgotado em todas as suas expressões. E, ainda que os parlamentares de Horacio Cartes tentem descolar sua imagem da de Mario Abdo, a oposição os colocou em apuros quando confirmou que apresentavam o libelo acusatório para iniciar o julgamento político. O cartismo teve que reconhecer que, assim como em 2019, voltará a salvar Abdo Benítez da destituição.

Por ora, não parece que o julgamento político irá acontecer. Mas o julgamento social em relação ao Partido Colorado está instalado. Em 32 anos de transição e democracia não existem muitas lembranças de uma crise que tenha abalado as próprias raízes e fundamentos do coloradismo.

É um cenário favorável para a oposição, ainda que falte muita construção e uma estratégia mais refinada. O Partido Colorado, mesmo em crise, conta com muita força eleitoral e organização territorial – financiada a partir do Estado – em todo o país. O mais provável é que o cartismo ponha a fórmula presidencial em 2023 (especula-se que novamente com Santiago Peña) e isso eventualmente asseguraria fraturas no nível da oligarquia. Horacio Cartes entrou para a disputa direta de espaços de poder com a oligarquia e isso lhe custou um forte apoio em 2017 a favor de Mario Abdo Benítez. 

Definitivamente, as chances da oposição estão intactas. Assim que deu entrada na prisão – em razão de um processo arbitrário –, Efraín Alegre conseguiu se reposicionar como o principal oponente, que ataca e rivaliza diretamente com Cartes. Além disso, conseguiu instalar uma agenda com sentido social que lhe valeu a rejeição dos setores mais conservadores e o apoio dos demais. Durante sua passagem pela prisão, recebeu cartas dos principais partidos e líderes progressistas da região, algo pouco frequente, já que a política paraguaia não costuma se posicionar de maneira mais contundente no cenário internacional.

Estreitar vínculos internacionais com partidos e governos progressistas é muito necessário não só para conseguir aliados nesta luta contra o avanço das agendas conservadoras na região (que conta com Cartes e Mario Abdo como representantes), mas também para somar forças e recursos políticos para conseguir a tão esperada segunda alternância, que traz boas lembranças para a população e tão necessária para que se possa dotar a democracia de um sentido mais concreto. 

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