Adel al-Hajajji é um homem orgulhoso, mas com uma mulher grávida e três crianças para alimentar, ele não pode esperar por um milagre. Em vez disso, ele passou a vagar pelas ruas de Sana’a, catando garrafas PET para vender para o centro de reciclagem perto de sua casa em al-Rawdah. Os magros ganhos são suficientes apenas para alimentar sua família com um modesto iftar, a refeição que marca o fim dos dias durante o mês do Ramadã. A refeição geralmente consiste em pão e água, mas ocasionalmente os vizinhos trazem o Saltah, prato nacional do Iêmen composto de arroz e batatas – e carne em momentos mais prósperos.
Antes da guerra, Adel vivia relativamente bem, com um emprego público estável. Ele jejuou durante o Ramadã sem nem saber de onde viria sua próxima refeição. Em 2015, quando os sauditas invadiram o país e a comida ficou escassa, ele começou a receber as refeições do Ramadã como cortesia de caridades muçulmanas de patronos ricos no Golfo. Este ano, porém, Adel diz que essas caridades lhe avisaram que não poderiam mais doar para o Iêmen devido aos bloqueios e restrições das autoridades sauditas, que argumentam que essas cortesias poderiam cair nas mãos dos houthis.
O reino tem aumentado os esforços durante o Ramadã para conter a onda de doações de caridade com o pretexto de unificar os esforços de socorro sob a égide do Centro de Ajuda Humanitária e Socorro King Salman. É claro que qualquer ajuda que chega não vai para as áreas mais populosas do Iêmen, que estão sob controle dos houthis, deixando boa parte do país sem ajuda.
Sem retorno do Ramadã
Para piorar as coisas, o governo saudita proibiu milhares de iemenitas expatriados de retornarem ao país para se reunirem com suas famílias durante o Ramadã e trazer o dinheiro que ganharam trabalhando em obras civis e outros trabalhos árduos com salários baixos para os ricos do Reino.
Desde 24 de março, o Reino saudita manteve detidos na passagem de al-Wadiah centenas de iemenitas expatriados que estão tentando retornar para a casa, sob o argumento de que suas caminhonetes SUVs estão banidas de cruzar a fronteira pois poderiam ser usadas em batalha. Vídeos compartilhados nas redes sociais mostram enormes filas de carros e caminhonetes incapazes de trafegar, e começam a surgir relatos de que a Covid-19 está se espalhando rapidamente entre as centenas de famílias detidas na fronteira.
A autoridade reguladora de transporte terrestre de San’a declarou em comunicado no sábado que cerca de 2 mil veículos pertencentes a famílias tentando voltar para casa a partir da Arábia Saudita estão sendo barrados em al-Wadiah há mais de 20 dias. Também surgiram relatos de abusos de poder generalizados por parte das autoridades sauditas, que são acusadas de espancar motoristas com cassetetes eletrificados quando eles tentaram fazer uma vigília no dia 5 de abril, em protesto contra as detenções.
Até a organização de direitos humanos SAM, com sede em Genebra, que geralmente é bastante branda em suas críticas aos sauditas, se posicionou sobre a situação. A organização declarou que as autoridades sauditas estavam chantageando famílias detidas em al-Wadiah, forçando-os a vender suas SUVs por alguns trocados de dólar para que eles pudessem se reunir com as famílias no Iêmen.
O pétroleo ganha a atenção do mundo
Apesar da magnitude do desastre humanitário no país, o foco primário da comunidade internacional, incluindo a ONU, tem sido impedir que os houthis recuperem o controle de Marib, província rica em petróleo. Como sinalizou Adel al-Hajajji, “a vida dos iemenitas de repente se tornou uma preocupação da comunidade internacional, particularmente dos EUA e seus aliados, quando se trata de petróleo, como de costume”.
Em 18 de março, o Conselho de Segurança da ONU condenou os houthis por tentarem desalojar a coalizão liderada pelos sauditas de Marib, alegando que eles violaram um cessar-fogo que a Coalizão nunca começou sequer a observar, de acordo com relatórios locais. Linda Thomas Greenfield, embaixadora dos Estados Unidos na ONU, afirmou que “a ofensiva houthi em Marib continua a custar vidas iemenitas – incluindo as de pessoas deslocadas internamente”. Os houthis emitiram sua própria declaração em resposta, dizendo, em parte, que “o Conselho de Segurança e os Estados Unidos precisam condenar os assassinos do povo iemenita, não exaltá-los”.
A batalha pelo controle de Marib ainda continua, mesmo durante o Ramadã. As forças sauditas retardaram com sucesso o avanço dos houthis e seus aliados na região de al-Zour , no leste da província, onde está instalado um amplo campo para desalojados internos. Ali Mohammed Ta’iman, governador da província de Marib, acusou as forças sauditas de usar os refugiados como escudos humanos, acrescentando que eles recusaram todas as tentativas de permitir que os refugiados se mudassem para áreas mais seguras. A agência de mídia do exército do Iêmen, leal aos houthis, divulgou um vídeo mostrando veículos militares da Coalizão Saudita dentro do campo.
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À medida que os houthis se aproximam, as forças sauditas mostram cada vez mais seu desespero. Em um movimento que reflete as acusações contra o Reino em lugares como a Síria e a Líbia, relatórios locais indicam que a Arábia Saudita recentemente reforçou suas fileiras em Marib com mercenários salafistas trazidos dos campos de batalha do Azerbaijão, Líbia e Síria, combatentes conhecidos por seu uso eficaz de drones turcos armados.
Turquia: a Irmandade Muçulmana pesa
Os combatentes estrangeiros, há muito tempo um pilar das guerras por procuração (proxy wars) em todo o Oriente Médio, lutam sob a bandeira do Partido Al-Islah, o braço iemenita da Irmandade Muçulmana. Pouco antes do Ramadã, um grande grupo de mercenários sírios teria chegado a Marib. Um oficial houthi disse ao MintPress que a maioria dos combatentes cruzou o mar a partir de portos na Somália, enquanto outros cruzaram a fronteira para o Iêmen vindos da Arábia Saudita: “Muitos deles foram mortos e feridos em confronto direto, por mísseis balísticos e ataques de drones.” O oficial afirmou também que drones construídos na Turquia já foram vistos participando dos combates. Em março, um drone armado Karayel, turco, foi abatido em al-Jawf, uma área adjacente a Marib.
Assim como transferiu mercenários sírios para as zonas de conflito na Líbia e no Azerbaijão, a Turquia – capital financeira e espiritual da Irmandade Muçulmana – agora está fazendo o mesmo em Marib, província do Iêmen rica em petróleo. Fontes tanto do Al-Islah quanto das fileiras houthis disseram ao MintPress que a Arábia Saudita e a Turquia estão cooperando em Marib, o último grande reduto da Arábia Saudita e da Irmandade Muçulmana no Iêmen. Normalmente em desacordo político, fontes dizem que os líderes do Partido Al-Islah trabalharam com o Qatar, outro reduto da Irmandade Muçulmana, para mediar entre a Arábia Saudita e a Turquia, usando seu desejo comum de reter influência no Iêmen como um estímulo para uma reaproximação. Em uma declaração recente, que não é característica do governo turco, o Ministério das Relações Exteriores disse que “a Turquia está com a Arábia Saudita e seu povo contra os ataques houthis que visam as instalações de petróleo sauditas”.
Os houthis, por sua vez, não estão preocupados com a perspectiva de uma intervenção turca. Abdul Wahab al-Mahbashi, membro do Conselho Político de Ansar Allah, disse que a Turquia provavelmente dependerá de mercenários, algo semelhante às suas intervenções na Líbia e no Nagorno-Karabakh (Azerbaijão). “Invadir o Iêmen não trará um final feliz para o próprio Erdogan, bem como para o governo e os militares do país”, ele insistiu.
Em junho passado, o MintPress revelou que Ancara havia começado a enviar conselheiros, especialistas e armas da Turquia para Marib, e estava recrutando mercenários líbios e sírios para a luta, prometendo altos salários e uma vitória fácil. Agora, quase um ano depois, a intervenção turca aumentou na esteira da reconciliação entre o presidente Recep Erdogan e o rei Salomão em novembro do ano passado, antes da Cúpula do G20.
Mercenários, drones e bombas
O Centro de Documentação de Violações no norte da Síria, um grupo local que rastreia e relata violações de direitos humanos, divulgou um relatório afirmando que os serviços de inteligência turcos designaram o líder jihadista sírio Kamal Taha Al-Faihan, apelidado de Abu Faisal Al-Mujahid, para recrutar combatentes sírios e enviá-los para o Iêmen. De acordo com o relatório, esses combatentes receberiam 2.500 dólares mensais;dDesse montante, 100 dólares seriam deduzidos para despesas com documentos, os combatentes receberiam 400 dólares em dinheiro inicialmente, e os 2000 dólares restantes seriam pagos às suas famílias após a mudança para o Iêmen.
Relatórios locais e áudios vazados indicam que a Turquia está seguindo a mesma estratégia de recrutamento em Marib. O meio de comunicação sírio Shaam Times informou que 300 combatentes sírios já se juntaram às fileiras da milícia al-Islah; e a agência de notícias North Press do Iêmen, citando uma fonte de dentro do grupo extremista armado sírio Sultan Suleiman Shah, relatou que o Exército Nacional Sírio, outro grupo militante armado apoiado pela Turquia, “vem trabalhando há semanas para preparar dezenas de militantes para enviar ao Iêmen.”
Enquanto isso, nem o Ramadã nem a esperança de que o presidente dos EUA, Joe Biden, reverta o curso ofereceram um alívio dos ataques dos aviões de guerra da Coalizão Saudita. Vários civis, incluindo duas crianças, foram mortos na terceira semana de abril em um bombardeio saudita em Saada – apenas um dia após o anúncio de Biden de que continuaria com mais de 23 bilhões de dólares em vendas de armas para os Emirados Árabes Unidos, um jogador-chave na guerra no Iêmen. O Human Rights Watch descreveu a medida como os EUA “desistindo da promessa do presidente Joe”.