Entre 1983 e 1987, a revolução liderada por Thomas Sankara em Burkina Faso fez parte de um pequeno grupo radical de movimentos políticos nacionais que aconteceram no Sul global durante a inebriante, porém instável década de 80. Esses movimentos aspiravam à independência política e econômica para seus países, visto que a maioria dessas nações orientava suas instituições políticas de acordo com as prescrições dos Estados Unidos e da Europa, e os danosos modelos econômicos do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial.
Thomas Sankara: A Revolutionary in Cold War Africa [Thomas Sankara: um revolucionário na África da Guerra Fria, em tradução livre], novo livro do professor universitário Brian Peterson, da Union College, foi lançado pela Indiana University Press em fevereiro de 2021. Extremamente informativo, cativante e oportuno para os nossos tempos, o livro consegue ser tanto uma biografia de Sankara quanto uma memória nacional da África Ocidental durante os anos 80. Peterson entende a revolução de Sankara como um exemplo das lutas contra-hegemônicas durante a década da transição neoliberal.
Além do seu livro e dos seus artigos mais recentes sobre a intersecção entre o Islã e a dominação colonial na África Ocidental, Peterson é autor de Islamization from Below: The Making of Muslim Communities in Rural French Sudan, 1880-1960 [Islamização a partir de baixo: a formação de comunidades muçulmanas do Sudão Francês rural, 1880-1960, em tradução livre], lançado em 2011 pela Yale University Press.
Tive o prazer de realizar a seguinte entrevista com Peterson por e-mail sobre Thomas Sankara: um Revolucionário na África da Guerra Fria.
Benjamin Talton: É incrível ter o seu livro sobre Thomas Sankara em mãos. Eu aprendi muito sobre Burkina Faso e sobre a sua política interna e externa durante os anos 80. Para aqueles que podem não estar familiarizados com Thomas Sankara e a sua revolução em Burkina Faso, como você o descreveria em termos de ideologia política e liderança? Qual é o seu legado para a história recente da África Ocidental, para os anos 80, para a Guerra Fria, e para a África em geral?
Brian Peterson: No meu livro, eu tentei mostrá-lo como um sujeito complexo que, em sua essência, entendia a si mesmo como um patriota. Ele era totalmente comprometido com o seu povo e concentrou todas as suas energias na luta pela soberania política e econômica do seu país. Sankara rejeitava rótulos, mas havia claras influências no seu pensamento. No centro estava sua oposição visceral à injustiça e um senso de indignação moral com a opressão e a desigualdade. Isso se reflete nas suas influências intelectuais, como o marxismo, a Teologia da Libertação e correntes de pensamento terceiro-mundistas. Esse conjunto de diferentes linhas ideológicas foi combinado em um indivíduo extremamente carismático que, em primeiro lugar, era um homem de ação. Enquanto líder, eu enfatizaria o seu inconformismo e seu trabalho incansável. Eu também acredito que ele estabeleceu um alto padrão em termos de integridade moral e incorruptibilidade e, por causa dessas qualidades, o legado de Sankara na África foi em grande parte positivo.
Sankara, de várias maneiras, desafiou a maioria das correntes políticas dos anos 80. Como um ícone político e um herói revolucionário, ele é geralmente visto como um virtuoso líder que, apesar dos seus erros, genuinamente levava no seu coração os interesses de seu povo. Lendo o seu livro sobre Mickey Leland, me dei conta sobre o quanto os dois homens se pareciam em termos de posicionamentos na política mundial e de seu comprometimento com o povo. Ambos representavam poderosas lutas contra-hegemônicas em andamento durante a década de 1980, mas foram frequentemente obstruídas pelas narrativas neoliberais triunfalistas.
Benjamin Talton: Eu também vejo muitas semelhanças entre Mickey Leland e Sankara, apesar das suas posições políticas diferentes e os contextos em que operaram. Uma similaridade óbvia é o fato de que ambos morreram de maneira trágica e precoce, quando estavam prestes a lançar projetos políticos e sociais transformadores. Você comenta sobre a tendência, nos os estudos sobre Sankara e sua revolução, de analisar os eventos através da sua morte. Você poderia elaborar mais isso e descrever como o seu livro se afasta dessa abordagem?
Brian Peterson: Claro! Essa é uma boa pergunta. O que quero dizer com isso é que o jeito com que a revolução terminou – com o assassinato de Thomas Sankara – moldou as percepções sobre todo o curso da revolução. Este evento violento singular foi tão chocante e demandou tantas explicações, que tanto os apologistas de Blaise Compaoré quanto os aliados de Sankara, em seus discursos públicos e em seus livros, colocaram muita atenção nos processos que levaram ao assassinato de Sankara, e isso tendeu a ofuscar o próprio processo revolucionário. Os vários atores revolucionários que de maneira oportunista se aliaram ao regime de Compaoré também revisaram a história da revolução e colocaram uma culpa excessiva em Sankara, mesmo que ele permanecesse amplamente admirado pelo seu povo, a ponto de, em resposta ao repúdio oficial a Sankara, surgir uma poderosa contra-memória que se proliferou pelas bases, que o mantiveram vivo, especialmente entre os jovens. Mas há outro componente que merece atenção, e é a falácia de que a revolução havia terminado – quando, na verdade, a situação ascendia e o entusiasmo revolucionário estava no seu auge. Em outras palavras, o assassinato de Sankara foi enquadrado, especialmente em interpretações transnacionais populares, como o fim abrupto de um projeto revolucionário que, de outra maneira, teria sido bem-sucedido.
Mas a minha pesquisa mostra que Sankara foi assassinado assim que as queixas da população começaram e o facciosismo interno cresceu. E, é claro, tudo isso no meio das tentativas de forças estrangeiras de desestabilizar a revolução. Ou seja, a revolução teve vida própria, com interesses conflitantes, facções internas, pressões estrangeiras, forças contrárias e muitas outras coisas que estavam completamente fora do controle de Sankara. O que eu fiz nesse livro foi traçar a trajetória da revolução junto à carreira política de Sankara, rastreando as diferentes forças envolvidas no processo histórico e integrando essas visões conflitantes na narrativa, enquanto recorria à investigação inédita com fontes primárias a fim de apresentar um mapa mais equilibrado da revolução e da vida de Thomas Sankara.
Benjamin Talton: Sankara aparece como um Pan-Africanista relutante na sua narrativa. Ele considera a raça, e a negritude em específico, como possuidoras de valor político e relevância limitados. Ainda assim, você o retrata no Harlem, na Nova York de 1984, fazendo um discurso inflamado para um público afro-americano, onde ele usa a retórica sobre a solidariedade negra. Como você caracteriza a política internacionalista, continental e racial de Sankara e os fatores que os moldaram?
Brian Peterson: Essa questão gira em torno de como Sankara evoluiu enquanto pensador e estadista. A meu ver, o pan-africanismo foi ganhando cada vez mais importância nos seus discursos conforme Sankara foi se percebendo como um revolucionário em um cenário global. Precisamos lembrar que Sankara inicialmente construiu sua carreira política lutando contra a corrupção, o neocolonialismo e a pobreza dentro de Burkina Faso. Ele certamente condenava o racismo, mas os comentários sobre justiça racial não tinham muito capital político para o seu próprio povo. Mesmo assim, Sankara foi evoluindo com o tempo, especialmente à medida que ele buscou popularizar a revolução durante as suas viagens pela África e mundo afora. O pan-africanismo foi se aproximando da sua perspectiva, ao defender a unidade africana para lutar contra desafios comuns. E, é claro, suas mensagens pan-africanistas ressoaram profundamente na juventude africana. Mas eu também acredito que o senso de “internacionalismo” de Sankara estava mais fortemente enraizado no mundo socialista e na solidariedade terceiro-mundista com distintos países do Sul global que estivessem sofrendo agressões estrangeiras, extração brutal de recursos por empresas estrangeiras, e várias outras formas de controle através de instituições bancárias internacionais, como o FMI.
Benjamin Talton: Sobre as instituições bancárias internacionais, a presença da França interfere grandemente nos eventos que você reconstrói no livro. Em Burkina Faso pós-independência, a França foi simultaneamente um intruso político e econômico, além de se prestar a outros papéis complexos. Você descreve repetidos esforços dos oficiais franceses para persuadir Sankara a assinar com os programas econômicos do Banco Mundial e do FMI. Como Sankara percebeu essas tentativas e lidou com a relação da França com a Burkina Faso?
Brian Peterson: Isso dá muito pano pra manga… Penso que Sankara tinha uma relação complicada, talvez até mesmo ambivalente, com a França. Em diferentes momentos, a França tentou trabalhar junto a Sankara, até mesmo tolerando sua retórica revolucionária contra a França. Mas Sankara esperava ser tratado como um igual, como o chefe de um Estado totalmente soberano. Ele não aceitava que seu país fosse um mero vassalo dentro de uma relação neocolonial de dominação. Contudo, havia riscos em recusar a pagar a dívida externa, em criticar o caráter da “ajuda humanitária”, em publicamente atacar a França e assim por diante. Na minha opinião, Sankara sabia que ele não podia romper com a França completamente, e o CNR [O Conselho Nacional para a Revolução] ainda dependia de ajuda internacional, especialmente da França. Uma transição para uma autarquia maior levaria tempo, e isso não era possível em apenas quatro anos. Minha pesquisa mostra que foi a relutância de Sankara em aceitar um acordo com o FMI em 1987 que levou a muitos problemas econômicos e à perda do seu apoio político dentro do CNR. Mais ainda: no momento em que Sankara emerge como uma força política em 1983, a França já estava tentando removê-lo do poder. E ela finalmente o conseguiu em outubro de 1987, quando um conjunto de pressões econômicas, operações de inteligência, manobras diplomáticas e campanhas de desinformação na imprensa francesa pavimentaram o caminho para derrubá-lo.
Benjamin Talton: Enquanto essas forças convergiam para minar Sankara e as suas políticas, seu governo desenvolveu programas especiais que visavam melhorar a posição econômica e social das mulheres de Burkina Faso. Quem eram as mulheres com papéis-chave na revolução e no governo de Thomas Sankara?
Brian Peterson: Com certeza, um dos atos mais progressistas do estado revolucionário sob Sankara foi dar mais poder político às mulheres ao trazê-las para todos os níveis de governo, desde os Comitês de Defesa da Revolução (CDRs) até posições ministeriais. Inclusive, Sankara implementou uma cota de 30% para mulheres em todos os escritórios governamentais. Entre os dez ministros civis do CNR, três eram mulheres, sendo elas Joséphine Ouédraogo, como ministra do Desenvolvimento da Família, Rita Sawadogo, como ministra do Esporte e do Lazer, e Adèle Ouedraogo como ministra das Finanças. Além disso, as mulheres agora poderiam servir no exército e na gendarmeria. Germaine Pitroipa, que era alta-comissária da província de Kouritenga durante a revolução, lembra como Sankara trabalhava incansavelmente para apoiar suas colegas mulheres, e como ele aceitava muitas das sugestões das mulheres na criação de políticas pró-mulheres. Ele também delegou tarefas de alta prioridade do Estado para mulheres, como quando colocou Joséphine Ouédraogo no comando de operações de socorro durante a crise hídrica e de fome entre 1984-85.
Benjamin Talton: Chega a ser irônico pensar que Sankara era imensamente popular entre estudantes, trabalhadores urbanos e fazendeiros, mas não possuía apoio total dos sindicatos e associações estudantis. O que contribuiu para sua relação tensa com esses grupos-chave? Esses fatores pavimentaram o caminho para o sucesso do golpe de Compaoré em 1987?
Brian Peterson: Esse é, de fato, um dos processos políticos mais complicados, e comumente mal compreendidos, que se desdobraram durante todo o processo revolucionário. É importante salientar que havia um intenso faccionalismo interno na liderança revolucionária, e que os sindicatos e associações estudantis eram usados como armas políticas pelos oponentes de Sankara. Então, mesmo que os estudantes fossem em sua maioria favoráveis a Sankara, o grupo de Compaoré usava o controle sobre as entidades estudantis como uma forma de oposição a Sankara. Com os sindicatos, como a classe trabalhadora em Burkina Faso era muito pequena, eles eram em sua maioria representantes dos interesses de funcionários públicos e de outros considerados como “pequeno-burguesia”. Durante a revolução, o sistema de CDR, cujas posições mais altas foram controladas por militares leais a Compaoré, foram, aos poucos, escanteando os sindicatos trabalhistas, o que gerou queixas. Mas também é certo que Sankara – almejando redirecionar mais recursos para as áreas rurais – diminuiu os salários e os privilégios dos funcionários públicos, atacando diretamente seu poder de compra e influência política. Compaoré foi capaz de tirar proveito desses descontentamento e erroneamente pintar Sankara como anti-povo, apresentando-se absurdamente como se estivesse à esquerda dele.
Benjamin Talton: Você descreve uma série de iniciativas nacionais que integravam a revolução de Sankara. Ele era claramente ambicioso e totalmente focado em um desenvolvimento transformador e sustentável que permitisse a autodeterminação e a verdadeira independência do seu país. Antes que Blaise Compaoré lançasse seu programa para desfazer as medidas de Sankara, como você avaliaria o sucesso de sua revolução? Quais foram as conquistas notáveis e para onde o país estava indo?
Brian Peterson: Essa é uma excelente pergunta, e eu acredito que para medir o sucesso da revolução, devemos também levar em conta as dificuldades para atingir os objetivos almejados em um horizonte temporal tão curto. O que Sankara almejava normalmente levaria décadas para se conseguir. Dito isso, a sua agenda progressiva radicalmente reorientou a ação do Estado para um enorme conjunto de problemas, desde o combate à corrupção até a defesa dos direitos das mulheres. Acredito que os cidadãos de Burkina Faso finalmente sentiram que tinham um Estado que se colocava como responsável por atender suas necessidades, não apenas as das elites políticas ou os interesses neocolonialistas. Nós sabemos que o estado revolucionário foi muito bem-sucedido em erradicar a corrupção e desenvolver uma maior autossuficiência, enquanto redirecionava muito mais recursos para os camponeses ao invés do já inchado serviço público. Isso significou uma melhora em todo o país nos serviços básicos de saúde, nas campanhas de vacinação e na expansão do acesso à água potável. Também podemos citar a impressionante conquista da autossuficiência alimentar já no final de 1986, após uma devastadora crise de fome e hídrica. Na mesma época, o governo adotou políticas de desenvolvimento sustentável e recuperação ambiental, o que incluiu campanhas de reflorestamento em massa.
Como vemos, Sankara via a elevação da consciência política como a tarefa mais importante a longo prazo, mas reconhecidamente a tarefa mais difícil. Não é fácil mudar como as pessoas pensam, como elas consomem, como se comportam nas relações de gênero. E Sankara entendeu que isso exigia uma grande remodelação da matriz cultural mais ampla, e que havia limites no que o estado-nação poderia fazer. Assim, o estado revolucionário lançou uma série de projetos, como campanhas de alfabetização, construção de escolas, cinemas itinerantes e festivais culturais – tudo como uma forma de promover o suporte necessário para uma “descolonização do pensamento”. Mas essa era uma luta intergeracional de longo prazo, cujas forças atuantes transcendiam o próprio estado-nação, tanto no âmbito cultural quanto no político. Poucos meses antes do seu assassinato, ele redobrou o seu comprometimento com o campesinato, e foi ainda mais longe nas suas tentativas de elevar a consciência política do povo. Ele também iniciou uma campanha de “autocrítica” revolucionária e abordou erros cometidos durante a revolução. Ele ouviu as queixas do povo e até defendeu uma “pausa” no processo revolucionário para corrigir seus rumos. Seus adversários viram uma oportunidade e decidiram tirar vantagem da sua integridade, e implementaram seu golpe.
*Brian Peterson é livre-docente de História na Union College.
**Benjamin Talton é livre-docente de História na Temple University, membro executivo do ASWAD e editor no African Studies Review.