O desenvolvimento rápido de vacinas contra a Covid-19 precisa ser um desenvolvimento positivo e capaz de salvar vidas. Por acontecer a uma velocidade que muitos na área médica antes considerariam impossível, essas vacinas fornecem um lampejo de esperança de que o fim dessa pandemia – a primeira em um século – seja possível.
Contudo, em vez de governos nacionais e empresas farmacêuticas cooperarem para vacinar a população mundial o mais rápido possível, a distribuição de imunizantes está sendo impactada por outras prioridades.
Para os governos de nações ricas, as vacinas representam uma solução para sua própria negligência criminosa. Em grande parte do Reino Unido, Europa e Estados Unidos, os políticos recusaram ou resistiram em impor o lockdown sobre suas economias por tempo suficiente para interromper a transmissão comunitária e salvar vidas, preferindo proteger os lucros. O número de mortes nesses países, tal qual o custo econômico, continua aumentando à medida que o vírus se espalha sem controle. A rápida vacinação em massa é agora vista amplamente como a única solução viável para esse desastre, e os governos de tais países estão dispostos a lutar uns contra os outros para serem os primeiros na fila de fornecimento.
Essa competição tem caracterizado o desenvolvimento da vacina desde o início. Quando a Universidade de Oxford começou a procurar uma farmacêutica para fabricar seu imunizante candidato, ela inicialmente fechou um acordo com a empresa americana Merck. Todavia, o negócio fracassou, pois a Merck se recusou a garantir a priorização do fornecimento para o Reino Unido. A Oxford acabou fazendo parceria com a AstraZeneca. A AstraZeneca não é, de fato, especializada em vacinas. Porém, quando o governo britânico ofereceu financiamento inicial para garantir 100 milhões de doses e permitir que a AstraZeneca construísse sua primeira fábrica, a farmacêutica se mostrou disposta a expandir seu portfólio clínico e prometer aos cidadãos britânicos que eles seriam os primeiros na fila da vacinação.
Entretanto, o favoritismo da AstraZeneca irritou a União Europeia. A UE desembolsou a quantia significativa de 336 milhões de euros em um acordo com a empresa para garantir o fornecimento de vacinas. Porém, ao fim de janeiro, atrasos na produção resultaram no corte de fornecimento da AstraZeneca para a UE em cerca de 75%, enquanto o fornecimento para o Reino Unido não foi afetado. A UE retaliou aprovando uma regulação bloqueando as exportações do imunizante contra a Covid-19 para 100 países, incluindo o Reino Unido. Esse não é um incidente isolado – em maio passado, a farmacêutica Sanofi se viu em um cabo de guerra entre os EUA e a França por causa de sua vacina candidata.
Contudo, essas discussões entre os países ricos são somente uma parte do problema e provavelmente diminuirão quando a produção aumentar. Um relatório da Economist Intelligence Unit prevê que a maior parte da Europa, Reino Unido e EUA terão ampla cobertura de vacinação até o final de 2021, com o restante das economias avançadas provavelmente com cobertura em meados de 2022.
Para os países que não podem pagar, a história é diferente. Segundo o relatório, esse é o cenário provável para os países em desenvolvimento: “A cobertura vacinal ampla não será alcançada antes de 2023, se é que isso acontecerá”.
Isso ocorre porque as vacinas contra a Covid-19 e as empresas que competem para produzi-las não são empreendimentos de caridade. O objetivo é ganhar dinheiro vendendo para quem pode pagar. A indústria de vacinas pré-Covid já estava estimada em 35 bilhões de dólares e receberá um impulso bem-vindo com a pandemia. A Pfizer, sozinha, espera faturar 15 bilhões de dólares este ano com seu imunizante. Para maximizar esses lucros, os suprimentos irão para os licitantes mais altos.
Tem havido tentativas de se opor a essa lógica de mercado desumana. Índia e África do Sul, por exemplo, propuseram que a Organização Mundial do Comércio removesse as proteções de propriedade intelectual das vacinas candidatas para que os países mais pobres pudessem fabricar seus próprios suprimentos. Sem surpresa, a proposta foi bloqueada pelos EUA, Reino Unido e UE [N.E: a posição dos países mudou no começo do mês, quando Biden passou a apoiar a proposta].
Outra tentativa é a criação da COVAX, uma iniciativa colaborativa liderada pela Organização Mundial da Saúde. O objetivo é eliminar a concorrência em torno da distribuição de vacinas pela aquisição coletiva de imunizantes, por meio de negociação com os fabricantes e distribuição igualitária de suprimentos para os países participantes da COVAX. As doações e contribuições dos países mais ricos se destinam a subsidiar o fornecimento de vacinas para países que não podem pagar.
Cerca de 145 países estão participando da COVAX atualmente. Porém, muitos dos países participantes mais ricos também fizeram acordos privados com fabricantes de vacinas. Isso, por sua vez, afetará o fornecimento disponível para a COVAX. A iniciativa tem 2021 como meta para distribuir imunizantes suficientes para 20% da população dos países participantes. Todavia, seu último relatório prevê que, caso tudo corra conforme o planejado, a COVAX distribuirá doses suficientes para vacinar só 3,3% das populações participantes durante o primeiro semestre de 2021.
E, mesmo que eventualmente alcance 20% de cobertura, a COVAX atualmente não tem planos de ir além dessa meta. Como as nações que dependem dessa iniciativa vacinarão o restante de sua população é uma incógnita.
Isso dá continuidade a um padrão de desigualdade em saúde na sociedade capitalista. Pessoas que vivem em países em desenvolvimento sofrem de inúmeras doenças que podem ser facilmente prevenidas e tratadas em outro lugar. Às vezes, o mundo desenvolvido tem um momento de caridade com remédios, mas, em geral, isso acontece anos ou décadas depois que esses medicamentos se tornaram prontamente disponíveis no mundo desenvolvido e já renderam uma fortuna para seus fabricantes. Essas foram as experiências dos esforços para a erradicação da pólio, a distribuição da vacina contra a pandemia de gripe H1N1 de 2009 e antivirais para o HIV.
Apesar de muita conversa sobre como salvar vidas, as vacinas contra a Covid-19 são mercadorias como qualquer outra. Com dois milhões de pessoas mortas pela pandemia e muitas outras ameaçadas, o mercado desumano e obcecado por lucros continuará a decidir quem vive e quem morre.