“Você tem que conhecer um grande lutador, ele é uma personalidade em seu país” – disse-me o trabalhador francês de origem norte-africana que o apresentou. Isso era rigorosamente verdade. Por muitos anos, Mamadou Mansaré personificou a voz do movimento dos trabalhadores guineenses na Confederação Nacional dos Trabalhadores Guineenses (CNTG). Nós estamos em uma parada obrigatória no sindicalismo da França: uma mansão usada como bordel pelas tropas de ocupação nazistas, e que os primeiros combatentes da Resistência Francesa, ao adentrarem Paris com seus rifles, tiraram de seus antigos donos e converteram em um centro de treinamento para a luta de classes.
Como o internacionalismo são atos e não palavras, Mansaré foi hospedado gratuitamente pela CGT, “o sindicato cujos camaradas permaneceram ao meu lado em meu país, em meio ao fogo cruzado”. Estava em tratamento médico. Sua voz amável não nos deixou adivinhar essa longa trajetória no front da batalha. Apesar de seu frágil estado de saúde, concordamos em fazer uma entrevista que, por fim, durou mais de duas horas. Nós mal percebemos o tempo.
Mansaré regressou à Guiné e, no dia 6 de outubro de 2019, ele nos deixou. Tinha 64 anos e lutou até o último momento pelos mais humildes daquele continente saqueado. Seu retorno à África fica como uma mensagem para as novas gerações: vale a pena viver uma vida inteira dedicada ao combate social. Chapeau bas, monsieur!
Publicamos esta entrevista como uma homenagem. Nela, Mansaré detona em mil pedaços a história nacional da França baseada na obra de alguns poucos indivíduos, resgata o verdadeiro passado da Independência africana e aponta sem receio os responsáveis por essa maquinaria capitalista mortal.
Alexandre Anfruns: Como aconteceu a independência da Guiné?
Mamadou Mansaré: A Guiné conquistou sua independência em 2 de outubro de 1958. Foi o primeiro país do Império colonial francês a dizer “Não” e a obter a independência por meio de um referendo. Esse “Não” de 28 de setembro foi visto por De Gaulle e por todo o Ocidente como uma afronta. Meu país teve que pagar um preço alto por ter feito essa escolha, por ter dito que “preferimos a liberdade na pobreza à opulência na escravidão”.
Alexandre Anfruns: Qual a importância da Guiné na região?
Mamadou Mansaré: A Guiné é a terceira maior produtora de bauxita depois da Austrália, mas dispõe da maior reserva do mundo. E são também reservas de qualidade. Temos o melhor ferro, com depósitos extraordinários. Temos urânio, ouro, diamantes, grandes extensões de terras agricultáveis, nossas águas são abundantes em peixes… Diz-se que a Guiné é a “Torre de Água” da África, porque que todos os grandes rios da África Ocidental têm origem na Guiné. Temos o rio Senegal, o rio Níger e o rio Gâmbia, que nascem na Guiné. É como se estivéssemos falando sobre a importância do Nilo para o Egito.
Alexandre Anfruns: A Guiné estava no caminho certo para o desenvolvimento. O que aconteceu então?
Mamadou Mansaré: O que aconteceu é que a França retirou todos os seus professores, destruiu toda a documentação da administração colonial, inclusive nossas certidões de nascimento, que foram queimadas. Eles não nos deixaram nada. Quem os substituiu para nos ensinar na Guiné foram professores russos, búlgaros, haitianos e do Daomé – à época, já chamados de beninenses. Portanto, fui educado por professores russos no decorrer do meu ciclo até me formar na universidade. Nosso primeiro presidente, Sékou Touré, veio do sindicato que tornou o país independente. Ele também era um grande pan-africanista.
Alexandre Anfruns: No contexto da “onda de independências”, quais foram as relações entre os diferentes movimentos de libertação na África Ocidental?
Mamadou Mansaré: A empresa em que trabalhei, a SBK (Société de Bauxite de Kindia), foi criada especialmente para reembolsar os russos pelas armas que eles e outros países do Bloco Soviético nos forneceram para uso nos diversos movimentos de libertação nacional.
Nossa primeira contribuição foi para a FLN na Argélia. As armas que chegaram à Guiné passaram por Bamako e depois pelo deserto para finalmente serem entregues a Boumédiène. Depois houve o movimento de libertação dos países de língua portuguesa, estando a Guiné-Bissau muito perto de nós. Foram nossas próprias tropas que lutaram lá.
Alexandre Anfruns: Que tipo de cooperação houve?
Mamadou Mansaré: Foi a Guiné que concedeu a ajuda à Guiné-Bissau. As armas foram compradas do Bloco Soviético, desembarcadas no porto de Conakry e transportadas por rodovia. O Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), fundado por Amílcar Cabral, tinha sede na Guiné. Os combatentes do PAIGC foram treinados na Guiné pelo Exército guineense e professores cubanos, já que, na década de 1960, havia uma cooperação militar e sanitária entre a Guiné e Cuba. A primeira intervenção conjunta de tropas guineenses e cubanas foi no Congo. Che Guevara foi ao Congo ajudar o movimento lumumbista em abril de 1965. Porém, já era tarde demais. Esse fracasso explica ainda hoje a atual desestabilização do Congo.
Os combatentes do PAIGC não só foram treinados em Conakry, como também receberam abrigo por lá. Estiveram presentes Amílcar Cabral, Nino Vieira e toda a turma. E nossas tropas também se disfarçaram de combatentes do PAIGC para lutar ao lado deles.
Alexandre Anfruns: Nesse equilíbrio desigual de poder com as potências coloniais, a unidade pan-africana era necessária…
Mamadou Mansaré: Sim, os portugueses atacaram primeiro a Guiné e depois assassinaram Cabral em 20 de janeiro de 1973. Em 22 de novembro de 1970, chegaram à Guiné navios que desembarcaram mercenários para dar um golpe de Estado, mas não deu certo. Toda a população teve participação nessa derrota, pois todos foram obrigados a ter uma formação de milícia. Quando nos formamos na universidade, todos tínhamos completado um ano de treinamento militar. Fomos trabalhar nas empresas, mas, caso fôssemos necessários, caso fosse declarada guerra, tínhamos que estar preparados.
Felizmente, a guerra nunca aconteceu. Houve ataques, como a incursão de mercenários de Serra Leoa que vieram nos atacar em 2000. Mas em apenas um mês nós os expulsamos!
Depois tivemos Angola. O primeiro presidente angolano foi Agostinho Neto. Ele era muito popular e fez seu treinamento militar na Guiné. As armas também foram transportadas da mesma forma, da Guiné para Angola.
Alexandre Anfruns: Como você explica essa importante recepção aos líderes pan-africanos na Guiné?
Mamadou Mansaré: Lembremos do golpe de Estado contra o presidente de Gana, Kwame Nkrumah. Quando esse golpe ocorreu, demos as boas-vindas a Nkrumah na Guiné. Ele foi até nomeado copresidente da Guiné! Desde a independência, a Guiné tem sido um país que realmente ambicionou essa unidade. Primeiro, começamos reunindo Guiné, Mali e Gana. No entanto, isso não deu certo no Mali, por conta do golpe contra Modibo Keita. Depois disso, a unidade também foi impedida pela deposição de Nkrumah. Na verdade, a Guiné é o único dos três países que conseguiu assumir a tarefa pan-africana.
O líder sul-africano do Congresso Nacional Africano (ANC), Thabo Mbeki, bem como o presidente Nelson Mandela, completaram o seu treinamento no nosso país. O primeiro passaporte de Mandela foi guineense! Foi graças aos passaportes diplomáticos guineenses que todos esses líderes puderam viajar, fossem os de Angola, Zâmbia, Zimbábue, como Robert Mugabe, ou Moçambique, como seu primeiro presidente Samora Machel de 1975 a 1986. Machel conduziu o seu país à independência após uma guerra de libertação contra os portugueses. Depois da sua morte, sua esposa Graça Machel se tornou a primeira-dama da África do Sul no segundo casamento com Nelson Mandela em 1998.
Todos esses países receberam ajuda do governo guineense por meio de empresas mineradoras de bauxita. Enviávamos nossa bauxita em navios russos para a Ucrânia. Lá existia uma fábrica que foi construída especialmente para a nossa bauxita. A empresa Nikolaev foi a base sobre a qual o atual grupo Rusal foi fundado. É um grande grupo de mineração, mas, durante o período do império soviético, a Nikolaev pertencia ao Estado. A Nikolaev foi construída especialmente para transformar a bauxita em alumina e pagar nossa dívida com o Bloco Soviético: as armas, os professores, os médicos que nos enviaram, assim como a infraestrutura que estávamos construindo.
Alexandre Anfruns: Tais esforços de unidade pan-africana foram tolhidos pelas potências coloniais. É difícil imaginar que a Guiné, o coração da resistência, pudesse ser salva da tempestade. Como eles procederam?
Mamadou Mansaré: Como eu disse, a Guiné contribuiu significativamente para a libertação dos outros países da África Ocidental. Foi por isso que foi vítima de muitos golpes de Estado. Em alguns escritos, podemos ler que Sékou Touré foi um ditador, um homem sanguinário, que matou isto e aquilo… Como sempre, para quem tem o poder da comunicação é muito fácil distorcer a realidade.
Vejamos como era a Françafrique [domínio colonial francês sobre a África] sob De Gaulle, com a rede de negócios de Jacques Foccart. Eles próprios reconheceram todos os golpes de Estado que organizaram na Guiné. Admitiram estar por trás de tantas tentativas de golpe… mas não obtiveram sucesso. Nunca. Até a morte natural do presidente Sékou Touré, nenhum golpe de Estado foi bem-sucedido… porque seu povo estava com ele!
Alexandre Anfruns: Como você se envolveu com o sindicato?
Mamadou Mansaré: Naquela época, todo mundo estava organizado. Quando um jovem terminava seus estudos, ele não precisava de muito esforço para achar um emprego, simplesmente começava a trabalhar. De imediato e qualquer que fosse o seu nível. Você podia escolher entre três empresas. Quando me formei na faculdade, optei pela SBK. Disse a mim mesmo: “Bem, se essa empresa está pagando nossas dívidas, prefiro trabalhar lá do que na CBG, que atende aos imperialistas americanos da Alcan (Alcoa e Rio Tinto)”. Eu tomei minha própria decisão.
O sindicato teve um papel de suma importância – ao menos para mim – na conscientização da população negra africana. Foi o primeiro a começar a explicar as injustiças que sofríamos. O Ocidente nunca reconheceu o genocídio negro! Dificilmente se pode imaginar como foi o tráfico triangular entre a África e a Europa. Só na América, o “comércio de escravos” representou mais de 200 milhões de mortes. Em Nantes, há um memorial com todos os nomes dos capitães dos navios que participaram nesse comércio de escravos. Os negros eram colocados em navios na África… e, daí em diante, eram distribuídos e vendidos como animais selvagens. Mulheres foram separadas…
Somente sob esse sistema, 200 milhões de pessoas morreram. Isso não é genocídio, sem falar nos negros que morreram na América? Sem falar daqueles que morreram nas invasões! E quantos africanos morreram só por causa da colheita da borracha, das empresas Michelin? Não é colonização, não é genocídio?
Se a Europa se desenvolveu, é graças à riqueza da África. Hoje, nos dizem que somos imigrantes. Os colonialistas vieram e nos impuseram sua lei. Eles levaram a riqueza do nosso continente. Eles não precisam de visto, eles continuam a nos saquear!
Alexandre Anfruns: Você diz que empresas de países imperialistas também se fizeram presentes na exploração dos recursos da Guiné. Você pode aprofundar mais isso?
Mamadou Mansaré: Sim, na época de Sékou Touré havia a CBG, a Compagnie de Bauxite de Guinée, da qual 45% pertencia ao Estado guineense e 55% ao grupo Alcan. Havia a Pechiney, um grupo francês instalado em Fria. Era a primeira fábrica de alumina da África, construída pelos franceses. Ela foi vendida aos americanos após a morte de Sékou Touré, na época de Lansana Conté. Hoje, essa fábrica pertence ao grupo Rusal.
Vamos comparar o preço da bauxita, por exemplo, com o do alumínio, que é o elemento final da bauxita. É com o alumínio que fazemos latas, frascos etc. Quando se compara o preço de uma tonelada de alumínio e uma tonelada de bauxita, é a diferença entre um riacho e um oceano! O máximo que eles te darão é talvez 28 ou 30 dólares por uma tonelada de bauxita, enquanto o alumínio chega a 2 mil ou 3 mil dólares por tonelada.
Alexandre Anfruns: Nos anos 1960, grupos de países do Sul se uniram para defender seus direitos econômicos, sua soberania sobre o preço das matérias-primas…
Mamadou Mansaré: Sim, o caso da bauxita na Guiné é um exemplo disso. Na época da Primeira República, essa função era exercida por um guineense. Contudo, tudo mudou após a morte do presidente. Eles queriam seguir o exemplo da OPEP, fazer o mesmo para regular o preço da bauxita. Entretanto, as multinacionais mineiras são muito poderosas, e isso não foi possível. Hoje essas multinacionais são a Alcan (Alcoa e Rio Tinto), a Vale, a Rusal, os chineses… Elas vêm aqui e assumem o controle das concessões. Não há diferença entre elas, mas elas copiam umas às outras.
Alexandre Anfruns: Como funcionam as concessões?
Mamadou Mansaré: Para atrair multinacionais para seu país, ele é forçado a fazer muitas concessões. Por exemplo, digamos que um país ofereça uma concessão de 20 mil dólares, e a multinacional responda: “é muito, não posso pagar mais de 10 mil”. Aí o governo diz: “Você quer a isenção de taxas portuárias por dez anos? Você não pagará imposto de renda. Seus expatriados não contribuirão para a previdência social”… Bem, são muitos tributos a serem isentados! Enquanto isso, a multinacional utiliza as estradas, os rios, polui com seus vários produtos! Pessoas e comunidades são privadas das terras que ocuparam desde seus ancestrais. E, em compensação, não recebem nenhuma outra ferramenta de trabalho em troca.
Digamos que dois países tenham o mesmo mineral, por exemplo. Pois bem, um país considera que deveria conceder todas essas facilidades para atrair uma multinacional, pois o país vizinho também gostaria de recebê-la. Todo mundo quer que a companhia venha. Então a multinacional faz sua decisão de acordo com quem tem o melhor minério e as melhores vantagens a oferecer. Dessa forma, a África segue lutando contra si mesma!
Alexandre Anfruns: Como escapar desse círculo vicioso?
Mamadou Mansaré: O relatório do ex-presidente sul-africano Thabo Mbeki sobre fluxos financeiros ilícitos mostra que as isenções de diversos impostos concedidas na África às empresas multinacionais de mineração foram dez vezes maiores do que a ajuda bilateral ofertada pelos países ocidentais.
Em vez de receber essa “ajuda”, nossos diferentes países poderiam chegar a um acordo sobre um código único, idêntico, de mineração, impondo os mesmos requisitos às multinacionais. Nesse caso, não haveria mais tal competição entre os países africanos.
Alexandre Anfruns: Hoje, países como os EUA ou a França estão muito presentes na África. Por exemplo, com programas de cooperação na “luta contra a corrupção”. Esses são objetivos reais desses países?
O ridículo não mata! Em vez de mandarem ONGs, que eles nos ajudem a recuperar nossos fundos de mineração nos paraísos fiscais! Nova Jersey é um paraíso fiscal da mineração. Toronto, no Canadá, é um hub! As bolsas de valores da Inglaterra e de Cingapura também são centros de operações!
Na Europa, foi montado todo um arsenal para lutar contra esses paraísos fiscais do ponto de vista financeiro. Todavia, eles nunca falam sobre os paraísos fiscais da mineração. O que as mineradoras estão fazendo? Todos estão recuperando seu dinheiro nos lugares que acabei de mencionar. Até mesmo companhias chinesas estão negociando em Nova Jersey. Tudo que eles roubam levam para a lavagem de dinheiro. Nós nem sabemos realmente quantas toneladas de minério são extraídas em nossos países!
Se você olhar para o mapa da Guiné, poderá localizar Boké, próxima ao porto e à Guiné-Bissau. A fronteira perto de Boké era precisamente onde se localizavam os principais campos de batalha durante a luta contra o Exército português. Toda a área de Boké é muito rica em bauxita. Hoje, há mais de 50 multinacionais de todas as nacionalidades naquela pequena área de Boké-Boffa, incluindo multinacionais chinesas, australianas, russas ou americanas. Imagine a pressão que existe em meu país! E se você olhar para a população, ela é muito pobre! Então, quando ouço falar em ONGs, por que elas não investigam para onde vai essa riqueza?