De acordo com um relatório da União dos Trabalhadores da Terra (UTT) da Argentina, citado pelo portal Resumen Latinoamericano, o Censo Nacional 2020 do país estima que “5,3 milhões de pessoas não têm acesso a água potável dentro de casa e cerca de 1 milhão não tem acesso no perímetro de seu terreno”, o que significa que 13% da população está impossibilitada de contar com água em seus lares.
O mesmo relatório indica que as causas de tal situação devem ser encontradas na mudança climática, nas modificações nos usos do solo e no aumento do extrativismo, que influenciam negativamente na vida dos cidadãos em geral e dos trabalhadores que precisam de água para realizar seus serviços. Os moradores de algumas zonas rurais têm que pagar oito vezes mais que os das urbanas e, às vezes, até caminhar muitas horas para obter a água necessária para satisfazer as necessidades mínimas para viver.
No Chile, recentemente, Fuad Chahín, candidato à Convenção Constitucional e presidente do direitista Partido Democrata Cristão – que foi o principal promotor do golpe de Estado contra o presidente Allende, propagandista da ditadura em seus primeiros anos e beneficiário central do pós-ditadura –, foi denunciado por utilizar suas conexões dentro do poder para proteger interesses familiares, promovendo leis para que seus parentes tivessem acesso privilegiado à água, violando a lei que supostamente jurou defender. Em sua época como parlamentar, Chahín votou em temas vinculados a interesses próprios ou de seu clã, considerando que alguns de seus familiares diretos, além de serem donos de grande quantidade de títulos de posse sobre a água na comuna Curacautín, na Região de Araucanía, ao sul do Chile, possuem enormes interesses na produção hidrelétrica da região.
Estes são só dois exemplos recentes que expressam o crescente conflito surgido da impossibilidade de importantes setores da população terem acesso à água. Talvez isso seja o que levou a vice-presidente dos Estados Unidos, Kamala Harris, a declarar em tom de ameaça, no dia 7 de fevereiro, que “durante anos as guerras foram travadas pelo petróleo, [mas] em pouco tempo serão pela água”.
Embora estivesse se referindo a uma problemática local de seu país, em que reconhecia “desigualdades de acesso”, deve-se levar em conta o significado da palavra “guerra” quando é mencionada pela segunda figura da administração do país mais poderoso, agressivo e belicista do mundo.
É preciso lembrar que a água doce representa apenas 2,5% dos 1.386 milhões de quilômetros cúbicos das reservas de água no mundo. No entanto, deste total, 70% corresponde aos polos e geleiras, ao mesmo tempo em que outra quantidade significativa se encontra em rios não tratados.
Os povos de todas as latitudes e longitudes do planeta sabem amplamente o que acontece quando os Estados Unidos têm déficits em suas reservas de algum recurso ou quando não produzem internamente o suficiente para garantir o consumo cotidiano. Do mesmo modo, sabe-se muito sobre as formas e métodos que o país utiliza para obtê-los. Se a pressão, a chantagem, as ameaças, as sanções, os bloqueios e os assassinatos de líderes não funcionam, recorrem à guerra, desta vez anunciada de antemão pela vice-presidenta Harris.
Ainda que pareça incrível que a falta de água seja causa de conflito e guerra, é algo quase tão antigo como a própria sociedade. Michael Klare, em sua obra Guerras pelos recursos: o futuro cenário do conflito global, recorda que já no Antigo Testamento é dito que, diante da incapacidade dos israelitas para entrar nos vales férteis do Rio Jordão sem expulsar seus habitantes, Deus os instruiu a entrar nas terras porque ele se encarregaria de expulsar os povos autóctones que a habitavam. Posteriormente, ordenou que Josué – sucessor de Moisés – cruzasse o Jordão e exterminasse “os moradores de Jericó e outros assentamentos da região”.
São inúmeros os atos de guerra ligados à água ao longo da história. Em tempos recentes, um conflito de dimensões impensáveis tem se agravado entre três países (Egito, Sudão e Etiópia) dos onze que se encontram na bacia do rio Nilo, o maior do mundo.
O rio Nilo tem dois afluentes principais: o Nilo Branco, que contribui com 20%, e o Nilo Azul, que representa 80% de suas águas. Este último tem sua nascente no lago Tana, na Etiópia, flui para o norte em direção ao Sudão e, em seguida, para o Egito, onde desemboca no mar Mediterrâneo.
Em 2011, a Etiópia iniciou a construção, no Nilo Azul, da “Grande Barragem do Renascimento Etíope” – a maior da África – sem antes chegar a um acordo com os outros dois países que, rio abaixo, também são subsidiários das águas. Em 2015, foi assinado um acordo entre os três no qual a Etiópia se comprometia a não afetar a disponibilidade de água no Sudão e no Egito. Recentemente, entretanto, vários desentendimentos entre as partes elevaram a tensão, ameaçando mandar pelos ares a obra colossal.
A ligação do Egito com o Nilo é histórica e fundamental, já que o rio foi o principal alicerce para erguer uma grande civilização na antiguidade e, no último século, marcou uma parte importante da vida do país e de sua diplomacia.
Desde 1902, o Egito tem feito acordos internacionais com o objetivo de fortalecer sua posição dominante sobre o Nilo, o que não é do agrado da Etiópia nem do Sudão. No artigo “As guerras da água: Egito, Sudão e Etiópia“, publicado no portal Rebelión, o analista especializado Germán Romano lembra que Butros Butros-Ghali, ex-ministro das Relações Exteriores do Egito, em entrevista à BBC em 1985, expôs a posição de seu país em relação ao Nilo: “a próxima guerra no Oriente Médio será travada pela água, não pela política”. Mais tarde, teve que modificar seu ponto de vista ao assumir as funções de Secretário-Geral da ONU entre 1991 e 1996, privilegiando a cooperação como forma de todos os envolvidos aproveitarem ao máximo o grande rio. Assim, Butros-Ghali precedeu a atual vice-presidente dos Estados Unidos na percepção do conflito que a falta de água pode gerar no sistema internacional.
No artigo citado, Romano destaca que “No caso de um conflito armado entre esses países, as consequências recairão sobre as populações que sofrem os efeitos de governos não eleitos pelo povo (sic). Da mesma forma, está em risco o acesso sem distinção de fronteiras para a irrigação utilizada por agricultoras e agricultores”.
Deste ponto de vista, as intervenções militares dos Estados Unidos e da OTAN na Líbia e no Iraque não devem ser entendidas como coincidência estritamente ligada à riqueza energética. No caso do país africano, sob seu deserto está um dos maiores reservatórios de água de todo o continente. O interesse em explorar e distribuir o líquido a amplos setores da população tornou-se a obra estratégica de maior escopo do governo de Muammar Gaddafi, que fez uma revolução verde nas areias do Saara, transformando seu país em um grande bosque que possibilitou o acesso a água e alimentos para grandes setores da população, levando o país a alcançar o maior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do continente.
No Iraque, a confluência dos rios Tigre e Eufrates foi o alicerce da origem da civilização mesopotâmica que tanto brilhou e tantos avanços deu à humanidade em termos de ciência e tecnologia. Essa riqueza, além de suas grandes reservas de petróleo e gás, constituiu o eixo da ambição imperial que motivou a invasão do país em 2003.
Assim, chega tarde o anúncio da vice-presidente Harris. Caso ela não saiba, o seu país tem sido protagonista de cruéis incursões em países donos de grandes estoques de água onde os tentáculos imperiais também quiseram meter a mão. A América Latina deve tomar nota desta nova ameaça bélica. Detentora do aqüífero guarani nos confins da Argentina, Brasil e Paraguai e das bacias do Amazonas, do Rio Negro e do Orinoco, onde se concentra uma parte importante das reservas de água doce do planeta, nossa região é um objetivo fundamental do interesse imperial em um elemento vital para a vida no planeta.