“É como se estivéssemos no fim de uma era”, me diz Bárbara Sepúlveda em 12 de outubro de 2021. Sepúlveda é militante do Partido Comunista e uma das representantes convencionais do processo constituinte do Chile. Esta era a qual Sepúlveda se refere é a do general Augusto Pinochet, que dirigiu o golpe de Estado respaldado pelos Estados Unidos em 1973, derrubando o governo popularmente eleito do presidente Salvador Allende. Durante a era de Pinochet, os militares atuaram com impunidade e a esquerda foi assassinada e enviada ao exílio, enquanto as grandes empresas (tanto chilenas como estrangeiras) receberam todas as bênçãos da ditadura. Essa é a era que tem se apagado pouco a pouco, desde a destituição de Pinochet em 1990 e o voto do povo chileno para acabar com a Constituição ditatorial de 1980 e redigir uma nova.
O neoliberalismo nasceu no Chile e morrerá no Chile, diz um lema popular, que parece ter se tornado realidade com o fim da era Pinochet.
Mas Sepúlveda não tem certeza sobre o que virá depois. “O que todos e todas sabemos é que tudo é incerto”, diz com franqueza. “É uma oportunidade para começar uma nova era”. A primeira década e meia após a destituição de Pinochet pareceu transcorrer entre as sombras. Logo, em 2006, um ciclo de protestos sacudiu o país. Foram liderados por jovens estudantes, cujos uniformes brancos e pretos deram nome ao ciclo: a Revolução dos Pinguins. A juventude exigia um novo plano nacional de estudos, assim como uma redução das tarifas do transporte público e gratuidade da Prova de Seleção Universitária (PSU), entre outros pontos. Durante 2011-2013, diante das respostas insatisfatórias do governo, foi ativado um segundo ciclo de mobilizações, com as mesmas exigências. As pessoas que lideravam esses protestos – entre os quais estavam Camila Vallejo, do Partido Comunista, e Giorgio Jackson, da Revolução Democrática – são agora figuras importantes do projeto da esquerda no Chile. Novamente, em 2011-2013, os estudantes se depararam com uma barreira imóvel: a Constituição de 1980 emergia como uma barricada contra suas ambições.
No começo de outubro de 2019 foi iniciado um terceiro ciclo de protestos estudantis a partir de um aumento nas tarifas do transporte público. Os “pinguins” lideraram uma campanha de evasão do pagamento do metrô (sob o lema “Evade!”). As pessoas que se manifestaram foram recebidas com uma dura campanha de repressão que incluiu violentos enfrentamentos com a polícia chilena. Em 18 de outubro, o governo de direita, liderado pelo presidente Sebastián Piñera, decretou estado de exceção durante duas semanas, autorizando o envio do exército chileno contra os protestos, que só se intensificaram. A violência usada para reprimir colocou o lema “Piñera assassino” entre as pessoas que se manifestavam.
Sobre a revolta de 2019, Sepúlveda diz que o ponto de ruptura do “18 de outubro moveu o eixo [da política chilena] mais à esquerda”. Embora o terceiro ciclo de protestos tenha sido inicialmente uma resposta ao aumento das tarifas de transporte, a reação do governo deixou claro que o país enfrentava problemas estruturais subjacentes muito mais profundos, incluindo, segundo Sepúlveda, uma “desigualdade avassaladora” e a corrupção. Sepúlveda, advogada cofundadora da Associação de Advogadas Feministas do Chile (ABOFEM) em 2018 e diretora executiva da mesma associação durante os protestos de 2019, viu nesse momento que esses problemas estruturais não poderiam ser mudados no sistema existente: no mínimo, o país precisava de uma nova constituição e de um governo mais progressista. O protesto foi ampliado para incluir as demandas dos movimentos feminista e indígena, pressionando por mudanças econômicas e sociais mais amplas para abordar a desigualdade em suas raízes.
Dois focos de luta
A busca da nova era no Chile tem duas vias importantes: a redação da nova Constituição, que é o que estão fazendo os 155 membros da convenção constitucional, e a eleição presidencial que acontecerá em 21 de novembro de 2021.
A convenção começou a trabalhar em julho de 2021 escolhendo sua presidente (Elisa Loncón) e seu vice-presidente (Jaime Bassa); tanto Loncón como Bassa estão à esquerda. Até o momento, a convenção redigiu seu regulamento, o que – diz Sepúlveda – corresponde a mais da metade do trabalho. A discussão dos temas substantivos começou na simbólica data de 18 de outubro de 2021, dois anos depois do ponto de inflexão da terceira onda de protestos. Sepúlveda confia que os acordos sobre direitos sociais – para as questões de gênero e meio ambiente – aconteçam. Diz que “as mudanças sociais deste tipo são inevitáveis”, embora a direita calcificada lute para bloqueá-las. A verdadeira disputa terá lugar em torno de um novo modelo de desenvolvimento. A nova Constituição conseguirá fazer retroceder o programa de austeridade estrutural que o período pós-Pinochet até agora não conseguiu enterrar?
Leia também – As lições do Chile: Entre a guerra e o direito de viver em paz
Em 14 de outubro, passei algumas horas com Giorgio Jackson, um dos líderes estudantis dos protestos de 2011-2013, que é membro da Câmara de Deputados do Chile e assessor próximo da campanha presidencial de Gabriel Boric. Boric, líder do partido Frente Amplio – que faz parte da coalizão Apruebo Dignidad -, é o candidato da esquerda nas eleições presidenciais de novembro. Jackson compartilhou comigo alguns elementos de um novo modelo de desenvolvimento que um governo de Boric adotaria se ganhasse as eleições presidenciais. No primeiro ano da próxima presidência, teria que seguir o orçamento de Piñera, de forma que apenas algumas mudanças podem ser feitas. Desde o começo, me disse Jackson, uma prioridade para o governo de Boric seria impulsionar a reforma dos sistemas de saúde e de pensões, dois âmbitos de grande angústia para os chilenos e as chilenas. A construção de sistemas públicos sólidos de saúde e previdência irá requerir recursos, que um governo de esquerda arrecadaria das regalias do extrativismo de cobre e assegurando uma melhor prevenção da evasão fiscal. Esta agenda aprofundará o debate sobre um novo modelo de desenvolvimento, disse Jackson.
Porém, admite ele, as pessoas sentem-se incomodadas com a ideia de ter uma provisão pública de bens. Daniel Jadue, líder comunista e prefeito de Recoleta, concorda que a verdadeira disputa será pela política econômica e social. Diz-me que as respostas aos problemas do Chile poderiam surgir de uma estreita cooperação entre os municípios. Se as pessoas tiverem uma experiência positiva com a provisão pública local de bens sociais, isso poderia mudar o sentimento geral de suspeita que permeia a expansão dos sistemas públicos de saúde e previdência no país, indicou. O trabalho de prefeitos como Jadue é crucial para o projeto geral de construção de um novo modelo de desenvolvimento.
Em relação às próximas eleições presidenciais, Piñera não pode se candidatar à reeleição (além disso, é profundamente impopular). O candidato da direita – José Antonio Kast, um fascista declarado – é popular, mas está sendo desafiado pela candidata de centro-direita Yasna Provoste pelos votos da direita. Enquanto isso, os capitais começaram a fugir do Chile em antecipação à introdução de uma constituição mais progressista e a possível entrada de Boric em cena como presidente, após as eleições de novembro.
Num canto da sala de Bárbara Sepúlveda está sua coleção de cubos de rubik, de dificuldades distintas. Ela é uma gênia dos cubos mágicos. Sepúlveda pega um e joga com ele. “Este é o mais fácil de fazer”, diz ela sobre um cubo que parece impossível de resolver. O cubo é um grande símbolo para o Chile. Se pessoas como Sepúlveda, Jadue, Jackson e Boric puderem encontrar a forma de resolver os quebra-cabeças que têm diante de si, então talvez haverá uma maior clareza para a nova era do Chile.