Sempre que tento analisar a política argentina, chego à mesma conclusão: além do onipresente peso do peronismo, não devemos perder de vista tudo o que se pode explicar a partir da divisão tradicional entre esquerda e direita.
A hipótese inicial é que o recente resultado das eleições legislativas traça um panorama político claramente alinhado em quatro blocos ideológicos: a esquerda, a centro-esquerda, a direita e a extrema-direita.
1 – A esquerda é uma das grandes ganhadoras desta eleição. Está representada na Frente de Izquierda (FIT). Conseguiu obter 1,4 milhões de votos. Torna-se, assim, uma força política nacional com voz e voto.
2 – A centro-esquerda , que abarca um espaço mais amplo e heterogêneo, com setores que são tão de esquerda como os que poderíamos encontrar no FIT; com outros setores mais defensores de uma linha social-democrata; e com outra parte em sintonia com esses “centristas fanáticos”, como diz Stiglitz, mais próximos de uma opção social-liberal. Toda essa amálgama forma a coalizão Frente de Todos, onde há peronistas de esquerda, peronistas do centro, radicais social-democratas e também gente de esquerda não-peronista. Conseguiram 7,8 milhões de votos.
3 – A direita está representada pela coalizão Juntos por el Cambio. O núcleo central reside numa corrente de direita tradicional que apresenta duas caras, uma mais radicalizada do que a outra, mas sem grandes diferenças em seu corpus teórico neoliberal. Nesta aliança também participam peronistas e radicais de direita. Obtiveram 9,8 milhões de votos.
4 – A extrema-direita, muito alinhada aos valores do trumpismo. Eles se mostram como libertários, mas no fundo são ultraconservadores que não sabem conviver com os princípios democráticos básicos. Na Argentina, são o Avanza Libertad e La Libertad Avanza. Conseguiram 1 milhão de votos.
E ainda resta um quinto bloco, imprescindível para decifrar a equação completa: o “novo abstencionismo”. Nos referimos àquele cidadão que geralmente ia votar mas que, tanto nas eleições primárias como nas recentes legislativas, preferiu ficar em casa. Se comparamos os dados de 2021 com os de 2017 (não com os de 2019, por coincidir com as eleições presidenciais), o “novo abstencionismo” alcança cerca de 2 milhões. Ou seja, quase 6% do quociente eleitoral, do qual ainda não sabemos com certeza se é um fenômeno conjuntural ou perpétuo.
A resolução nos próximos tempos deste dilema será determinante na disputa entre esquerda e direita. Se o “novo abstencionismo” passa a ser crônico nos próximos anos, então, a soma de votos da direita e da extrema-direita (10,8 milhões) superaria a soma da esquerda e centro-esquerda (9,2 milhões). Esta potencial correlação de forças indubitavelmente teria seu correlato em posições em relação ao Estado e as políticas sociais, a política exterior, o modelo econômico etc.
A única forma que a esquerda tem para modificar essas proporções atuais é sintonizar politicamente com grande parte do seu ex-eleitorado (o que não foi votar). Como? Não existe receita simples para um desafio tão grande. Mas há uma premissa básica: cuidar do que preocupa o povo cotidianamente, e fazê-lo sob os princípios que lhes permitiram formar a maioria em um passado não muito distante.
As posições de esquerda e direita sempre dependem do tema em questão. Como diz Lakoff, nem sempre uma pessoa é totalmente identificada em uma posição ideológica. Há mais contradição do que pensamos. Daí a importância da “agenda”. A estratégia está em estabelecer assuntos que preocupem as pessoas e sair das bolhas midiáticas que distraem a atenção sobre o que é verdadeiramente importante. Por que não falar da dívida que as famílias têm na Argentina, no lugar de debater até a exaustão se o populismo é bom ou mau? Certamente, existe uma maioria de esquerda que não está de acordo com as práticas abusivas de uns poucos bancos.
Teremos dois anos de alta intensidade política pela frente. E embora não haja dúvida de que existirão debates garantidos em torno do peronismo, kirchnerismo, radicalismo, trotskismo, macrismo e libertários, também seria apropriado não perder de vista a velha divisão clássica, de esquerda e direita, porque nos ajuda a entender como o jogo político argentino se ordena. E, o que é mais importante, como evoluiremos em relação aos temas fundamentais para o dia-a-dia.
Enfim, esta é outra forma de explicar a “grieta”, a clássica divisão entre kirchneristas e anti-kirchneristas na Argentina.