A marcha que terminou no dia 29 de novembro na Plaza San Francisco (La Paz), iniciada em Caracollo (Cochabamba) no dia 22, foi um marco político que surpreendeu a todos pelo seu caráter massivo. Não seria exagero dizer que é a maior mobilização popular que a Bolívia viu desde que o Movimento pelo Socialismo (MAS) conquistou a presidência em janeiro de 2006. Quase 16 anos desde então, e 22 anos passados desde a marcha “Por Território e Dignidade”, o povo nas ruas voltou a falar com força. Sobre isso, algumas reflexões:
1 – Contundência popular frente ao golpismo. Os últimos acontecimentos desestabilizadores, com epicentro em Santa Cruz, como as greves mobilizadas pelo governador Fernando Camacho e seu braço armado, o Comitê Cívico Pró Santa Cruz e a Resistência Juvenil Cochala, em oposição a duas leis econômicas, pareceram ser um divisor de águas nas perspectivas da gestão de Luis Arce. A escalada continuou com a proposta de Camacho (que ecoou pouco em outras latitudes bolivianas conduzidas por opositores) de federalização do sistema político do país. Tudo indicava a inauguração de uma etapa invulgarmente convulsiva para um presidente eleito há pouco mais de um ano: o governo teve de retirar e revogar as leis em disputa, a economia de Santa Cruz (dos mais pequenos) e a vacinação foram interrompidas por alguns dias, e já parecia que Arce iria governar na defensiva até o fim de seu mandato, se é que o deixariam. No mês passado, como revelou a última pesquisa da CELAG, 57% dos bolivianos pensaram que um golpe poderia ocorrer em um futuro próximo. No entanto, a poderosa marcha “de um milhão” que se concluiu em La Paz deu um grito coletivo de que o golpe não acontecerá; que a democracia recuperada nas urnas será respeitada. Outra exigência concordante com a primeira, e esta dirigida aos dirigentes políticos, foi a de justiça e reparação para as vítimas do golpe de Estado.
Leia também – O golpismo na Bolívia ainda não morreu
2 – Unidade. A marcha, liderada desde o início por Evo Morales, mas apoiada de perto por Arce e David Choquehuanca, também mostrou que as diferenças normais dentro de uma administração governamental não contam quando as ameaças de desestabilização e golpe se tornam reais. Todas as mensagens foram inequivocamente na mesma direção, inclusive as de centenas de organizações sociais indígenas e camponesas.
3 – Plurinacional-popular. O componente social da marcha diz muito. Apesar das diatribes midiáticas que previam a perda de apoio popular ao governo, a “morte política” de Evo Morales e uma supostamente desastrosa gestão econômica que empobreceu o povo, a fila de gente chegava até El Alto, a uns 10 quilômetros do palco de onde os líderes discursavam. E não se tratava somente do MAS, não eram somente funcionários do governo enviados para “fazer massa”, como a oposição tentou argumentar: mulheres, homens, jovens e idosos, camponeses, indígenas, comerciantes, produtores; muitos organizados, outros não, mas todos estavam ali, sabendo que voltavam a fazer história. História porque o vivido nos últimos anos ensinou que não se abre mão ou se abandona a rua; que a rua esvaziada em uma sociedade polarizada equivale ao avanço dos processos antipopulares e reacionários, como se pôde constatar em 2019.
4 – Lideranças. O governo conseguiu um respaldo explícito que possivelmente não esperava. Apesar dos excelentes indicadores de recuperação econômica e proteção sanitária, começava a predominar um certo clima de confusão quanto aos rumos, sobre o acerto ou não das medidas adotadas, de uma alegada “lentidão” na tomada de decisões, comunicação inadequada ou da idoneidade por parte do governo. A marcha demonstrou que boa parte dos 55% que apoiaram Arce em 2019 seguem respaldando o presidente e Evo. Cada um deles tem hoje um papel muito diferente ao que exerceram há alguns anos, e esta marcha demonstrou que cada quem ocupa um papel político distinto, mas complementar.
Leia também – A importância da Bolívia na nova estratégia dos EUA no continente
5 – O desafio. É uma incógnita se esse apoio popular nas ruas terá uma leitura que vá além da defesa da democracia e do processo político popular em curso. Sobre a avaliação da gestão, foi somente uma defesa do modelo econômico atual ou trata-se, também, de uma sinalização de que há respaldo para medidas mais audazes? Como bem afirma Álvaro García Linera, o “novo progressismo” tem como característica, entre outras, o de estar encabeçado por “lideranças administrativas” das instituições do Estado em favor do campo popular. Talvez, no caso boliviano, se tenham aberto as portas para pensar em uma aplicação de um novo programa de reformas de segunda geração.