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Editorial: 2022, mobilização ou paralisia?

Fora da esperança ingênua, da cegueira e da abstenção, um caminho confiável em 2022 só pode ser aberto com a mobilização do povo.
Fora da esperança ingênua, da cegueira e da abstenção, um caminho confiável só pode ser aberto com a mobilização do povo. Por Revista Opera – Editorial.
(Foto: Marcello Casal/Agência Brasil)

O ano de 2021 foi encerrado com um gosto amargo. Com muito a comemorar num país de 620 mil mortos pela Covid-19, os vivos no Brasil não puderam clarear os céus com fogos e espantar os maus espíritos com estampidos, nem pôr carne em mesas fartas esperando mais fartura, porque os bolsos estão vazios e a perspectiva de sobrevivência futura segue delgada. É o tipo de distopia que alimenta o gordo e estúpido boi pintado de dourado que adornou por alguns dias a Bolsa de Valores dos ricos, mas que não permaneceu porque erguer símbolos à desfaçatez ainda é desfaçatez demais.

O problema vem se agudizando há uns sete anos. O golpe contra Dilma Rousseff em 2016 e a inauguração da “Ponte para o Futuro” do visionário Michel Temer e sua patota militar coroou o novo momento como projeto. A eleição de Bolsonaro e o aumento de volume dos grunhidos fardados – com direito a uma coluna de tanques na capital federal e uma ameaça aberta de golpe no Sete de Setembro –, o expandiu e radicalizou.

Os presentes sombrios costumam ter o efeito de tornar muitos esperançosos com o futuro breve, cegos sobre o caminho recém trilhado até o inferno e prontos a se abster quanto às razões reais do sofrimento atual. Uma tendência que é multiplicada quando temos um presidente que se esforça por parecer inepto, estúpido, perverso, calhorda e pateta. A saturação do aparente, no entanto, encobre o real; e a esperança desarmada, paralisante e concessiva, como bem aprendemos durante o golpe de 2016, é uma estrada bem asfaltada até a derrota.

É necessário que iniciemos 2022, um ano de grandes acontecimentos e armadilhas, tendo clareza. Primeiro, de que Bolsonaro não é um “desvio” ou um “acidente” da história brasileira, mas peça colocada na cena política conscientemente para realizar uma demanda econômica geral do bloco burguês, que tem buscado a recuperação de suas taxas de lucro por meio da superexploração dos trabalhadores brasileiros, e interesses particulares do imperialismo e de seu associados internos (que mal podem se chamar brasileiros); portanto, é parte integral do combate ao enlameamento nacional bolsonarista o combate ao liberalismo econômico, às privatizações, às restrições ao investimento público, às reformas trabalhista e da previdência. Em uma palavra, é dizer que não estamos em uma guerra contra Bolsonaro pessoalmente, mas contra os interesses de uma classe que o apoiou e apoia, e que reverter seus ganhos nos últimos anos, pressioná-los e colocá-los contra a parede é parte desta luta.

Segundo, é necessário reconhecer que um velho ator político voltou a dar as caras no Brasil a partir de 2016, que foi sustentáculo tanto de Temer quanto de Bolsonaro, e que planeja se manter ativo: o Partido Fardado. Esta é a força política que pode encarnar, de forma mais ou menos permanente, o projeto de espoliação do povo e entrega do Brasil. Em resumo, isso significa reconhecer que, mais do que vencer Bolsonaro, é necessário bloquear os caminhos dos militares, submetê-los e despachá-los: de volta para a caserna uns, para o banco dos réus, outros.

Terceiro, é fundamental colocar em perspectiva que, no ano em que comemoramos o bicentenário da Independência – que ainda está por ser realizada – o mundo vive uma conjuntura de perigoso tensionamento internacional no contexto da “Nova Guerra Fria”. Apesar da muito comemorada e mal compreendida retirada de Biden do Afeganistão, as tensões EUA-China/Rússia seguem crescendo (em tal nível que envolveram uma política ultra-agressiva de Washington em meio à pandemia, que tem continuidade sob a administração Biden; provocações sobre a questão de Taiwan e, no caso russo, agora voltam a envolver a sensível questão ucraniana). Na América Latina, se vê um desequilíbrio: a política de Washington segue tomando o rumo da proclamação golpista na Venezuela e Nicarágua, depois de um golpe bastante explícito na Bolívia, felizmente revertido; conta ainda com o baluarte Uribista na Colômbia – que viverá eleições este ano, depois de um ciclo de manifestações populares em 2019, 2020 e 2021 –, com Lacalle Pou no Uruguai, Mario Benítez no Paraguai e, desde abril do ano passado, com Guillermo Lasso no Equador. As eleições de Xiomara Castro em Honduras, Pedro Castillo no Perú e Gabriel Boric no Chile são certamente, frente às outras candidaturas em disputa em seus respectivos processos políticos, notícias boas de 2021 – mas até o momento se vê limitações em cada um dos projetos, e, o que é mais grave, em um cenário de muita desarticulação regional. A disputa entre o dragão asiático e os Estados Unidos já têm reflexos em nossa região, que inevitavelmente só crescerão em importância nos próximos anos. Garantir uma posição que assegure algum grau de independência para cada país da América Latina e a totalidade deles implica reverter as políticas de aproximação submissa do governo Bolsonaro com os EUA e avançar os projetos de integração regional, bloqueando-os de servirem como ferramentas de pressão norte-americana.

2022 nos apresenta portanto três tarefas: a primeira, de curto prazo, é reverter o projeto ultraliberal que vem avançando; a segunda, de curto-médio prazo, é dar resposta ao problema militar; e o último, de médio-longo prazo, é reativar as ferramentas de integração regional, se preparando para os cenários de maior tensionamento geopolítico entre China e EUA, e recuperar, a nível nacional, uma política externa minimamente independente. São as linhas gerais de um programa mínimo de centro-esquerda.

Ocorre que nenhuma dessas tarefas podem ser perseguidas senão com uma ampla mobilização, mais ou menos permanente, das massas populares. A mobilização popular é o único movimento possível para reverter o programa econômico de 2016 (e em última instância essa reversão teria que incluir as privatizações realizadas); o único elemento que pode criar um equilíbrio de forças que impeça os militares de continuarem reivindicando seu quinhão no Estado (e a mobilização haveria de consolidar um tipo de “institucionalidade defensiva” que fosse de fato permanente, para impedir o avanço fardado); e a única, como vimos no caso boliviano, que pode dar garantias para uma atitude menos dependente, na política, em relação aos Estados Unidos. É dizer: nas eleições, um programa de centro-esquerda mínimo deve se orientar para a defesa econômica da classe trabalhadora (em relação a toda a quinquilharia jurídica e reformas ultraliberais aprovadas de 2016 até hoje) e para a própria defesa do governo, a partir da classe trabalhadora; sendo este segundo o fator principal, pois sem ele sequer o primeiro pode se realizar.

Até o momento, na esquerda há somente a pré-candidatura de Leonardo Péricles, da Unidade Popular pelo Socialismo (UP). O PSOL decidiu, no ano passado, adiar a discussão eleitoral até abril deste ano – havia a disputa entre apoiar a candidatura Lula ou, ao contrário, lançar uma candidatura própria (o nome discutido era o do deputado federal Glauber Braga). Essas candidaturas, apesar de pouco apelo eleitoral, têm a tarefa e a capacidade de levantar um programa de esquerda e fazê-lo avançar em meio a um cenário eleitoral que deve ter debates muito rebaixado

Na centro-esquerda, há a expectativa quanto a uma candidatura de Ciro Gomes (PDT), que perdeu muito espaço desde a volta de Lula à cena política e pode ser que sequer se realize; e a candidatura do próprio Lula (PT). Como esta última é a única candidatura que, até o momento, mostra viabilidade eleitoral no campo da centro-esquerda, e como reconhecemos antes que o elemento fundamental após as eleições será a mobilização popular (sem a qual não poderá haver reversão da “Ponte para o Futuro”, que por sua vez é fundamental para a própria mobilização), é importante discutir a ação de Lula e do PT levando em consideração este ponto.

Causou muito alvoroço a discussão sobre a composição da chapa petista com Alckmin como vice-presidente. No geral, nas discussões tomou-se o sintoma por doença. Por um lado, alguns argumentavam que apoiavam a medida, e que todos na esquerda deveriam fazê-lo, porque “o fundamental é acabar com o bolsonarismo”. Por outro, a escandalização “Alckmin não engulo”: um principismo que costuma demonstrar sua robustez até a semana anterior à eleição – afinal, muitos dos escandalizados hoje não são os mesmos que engoliram Temer em 2010 e 2014, bem como uma estratégia de governabilidade com o apoio de um Centrão não muito diferente do que hoje dá sustentação a Bolsonaro?

A possibilidade de uma chapa com Alckmin é o sintoma da doença paralisante e desmobilizante que acomete o petismo, não a doença em si. Pouco se avaliou sobre o que realmente motivaria esse movimento. Em entrevista a Breno Altman, do OperaMundi, Zé Dirceu, que defende uma ampliação da chapa petista, declarou duas ou três vezes que “se houvesse resistência [em 2016] teria sido golpe militar”. Talvez aí esteja a chave: preocupado com um outro processo golpista, o PT procura um novo Temer para 2022; incrédulo sobre a mobilização do povo, candidata-se a seu gerente.

Essa cegueira tem raízes profundas. Muito se atacou Dilma Rousseff como “politicamente inapta” durante seus governos, por exemplo: ela teria um jeito demasiado generalesco e burocrático, pouco aberta a “conversas de bastidores”, e esta teria sido a razão de sua queda. O que a afirmação esconde é que Dilma herdou um modo petista de governar que foi baseado em tais “conversas de bastidores”, nas concessões, na negociação, nas soluções de compromisso; o problema não foi portanto a “falta de flexibilidade” da presidenta, mas o fato de ter herdado de Lula uma situação política resolvida somente por tais conversas, e nunca pela própria força. Essa postura conciliatória só foi realizável por algum período por dois fatores: primeiro, o mais importante, as taxas de lucro das empresas estavam altas. Era possível à burguesia acatar determinados projetos redistributivos do governo e uma política de valorização do salário mínimo em troca de uma contenção do descontentamento social. Segundo, a direita seguia relativamente desorganizada; isto é, não tinha capacidade de organizar um grupo militante ao redor de si. Conquistou-o com setores da burocracia estatal (primeiro na Lava-Jato, depois nos militares).

Mas este não é mais o cenário: por um lado, o bloco burguês aposta na superexploração para recuperar suas taxas de lucro, por outro, a direita já se organiza – a partir de uma figura transitória como Bolsonaro, mas um “corpo militante permanente” pode vir precisamente do Partido Fardado, especialmente quando este consolidar mandatos próprios. De uma forma ou de outra, a “demanda” por sua organização não se esgotará a partir de 2023.

Aqui está o paradoxo que o petismo deve enfrentar: será necessário, para sua própria sustentação no governo, se converter em uma ferramenta de estímulo à mobilização das massas populares (durante a campanha e num eventual mandato, para além da perspectiva de “eleger Lula”). Mas o seu atributo característico, em todos os governos, tem sido precisamente a desmobilização e, fora dele, a paralisia. Entre 2016 e 2018 (isto é, nos episódios do golpe parlamentar contra Rousseff e a prisão de Lula) o PT foi incapaz de reagir, se abrindo inteiramente ao ataque inimigo, que não parou de avançar. Durante o governo Temer, igualmente, o partido – talvez muito confiante no próximo ciclo eleitoral – optou pela paralisia. E em 2020, com o aumento da revolta contra o governo Bolsonaro e a organização de atos nacionais pela sua saída, o PT tomou uma postura cristalinamente desmobilizadora, cujo ápice foi o ridículo Sete de Setembro.

Se em 2022 o Partido dos Trabalhadores optar pela resignação, adotando um programa de conciliação e uma linha desmobilizante, como até o momento tem indicado que fará, abrirá a frente para que a tendência à futura revolta popular sob seu governo seja aproveitada pela direita, e num cenário que agora inclui o Partido Fardado. Fora da esperança ingênua, da cegueira e da abstenção, um caminho confiável só pode ser aberto com a organização e a mobilização do povo. Caso contrário, será a repetição da estúpida ideia de que é mais perigoso mobilizar-se contra os inimigos do que os acolher em sua casa.

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