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Se o progressismo é o futuro, há de se pensar com urgência no “pós-futuro”

Alimentando a esperança de uma vida melhor, mas narcotizado pelos altos preços das matérias primas e da “teoria do possível”, é o progressismo quem “abre caminho para a direita”.
Alimentando a esperança de uma vida melhor, mas narcotizado pelos altos preços das matérias primas e da “teoria do possível”, é o progressismo quem “abre caminho para a direita”. Por Aram Aharonian | CLAE – Tradução de Pedro Marin para a Revista Opera
Lula e Alberto Fernández no ato na Plaza de Mayo, em dezembro de 2021. (Foto: Casa Rosada)

Os dirigentes progressistas nos estão demonstrando que a única esquerda que hoje existe na América Latina e no Caribe é a do povo nas ruas, exigindo e pressionando pelas mudanças estruturais de nossas sociedades. Se o acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI) que o presidente argentino Alberto Fernández assinou, e aplaudido pelo ex (e próximo?) mandatário brasileiro Lula da Silva é o caminho do futuro, temos que nos pôr a pensar em outro futuro, porque o “progressista” já tem desenhado seu caminho de novas frustrações.

Frente o desafio do acordo com o FMI (submissão, diriam alguns), temos que ser claros e precisos. Ou se está a favor dele e se contribui para sua aprovação – como bons cortesãos do poder – ou se está contra ele e se luta para derrotá-lo. Neste caso não cabem posições ambíguas nem muito menos silêncios.

A Argentina não precisa realizar um brutal ajuste fiscal e comercial. O faz para honrar sua dívida, que foi feita de costas para o povo, sem cumprir com os mandatos constitucionais (autorização prévia pelo Congresso, algo que não ocorreu quando o crédito foi tomado com o FMI), e inclusive violentando o próprio estatuto do FMI, que diz – em seus estatutos que não são cumpridos – que o Fundo não pode emprestar a países em situação de fuga de capitais.

Argentina é a única dentre as maiores economias da América Latina que tem superávits em sua balança de pagamentos corrente (+0,9% do PIB), enquanto os “países modelos” aos quais o FMI propõe que sejam imitados, geram déficits em suas trocas no exterior (Brasil: -0,7%; Chile: -2,4%; Peru: -2,7%; Colômbia: -4,9%).

E imitar tais países foi o que foi feito. Mais ainda, foi o que propiciaram nossos mandatários, para endividar a Argentina e beneficiar uma minoria parasitária e rentista, como informou até o Banco Central do país.

Mas isso não é o mais importante: a economia do país está sendo redesenhada em benefício do capital estrangeiro, em detrimento das riquezas naturais argentinas, de seu povo, de seu trabalho, do presente e do futuro. E esse novo desenho de um modelo extrativista, agropecuário-exportador que é imposto, serve só para gerar divisas e pagar os serviços e taxas da dívida externa, como aponta o economista Horacio Rovelli.

O governo do “progressista” Alberto Fernández sequer se permitiu a ideia de fazer uma auditoria integral da dívida, que tornasse transparente todo o processo de endividamento e seus derivados. Deixou-se tudo para ocasionais discursos vazios, denúncias e investigações paralisadas, não revelando em tempo hábil responsabilidades, manobras, dissimulações e evasões cambiais e fiscais.

Uma auditoria que levaria suas conclusões não apenas ao governo argentino, mas aos diversos organismos multilaterais do sistema das Nações Unidas e organismos regionais. Inclusive que permitiria solicitar ao Tribunal Internacional de Haia um parecer consultivo sobre o assunto, congelando todas as negociações até que essas questões preliminares fossem resolvidas. 

A teoria do possível

Aqueles que, à partir da esquerda, criticam o acordo com o FMI são logo acusados ​​de jogar o jogo da direita. Os acusadores se esquecem que se o Congresso aprovar o acordo, não se tratará mais do “acordo e empréstimo a Macri”, mas sim do “acordo e empréstimo ao governo peronista de Alberto Fernández”, um novo progressista. É quando muitos, para justificar o acordo, voltam a falar da situação global e da geopolítica, e empoleiram-se na teoria do possível.

Lula, o provável próximo presidente do Brasil, felicitou Alberto Fernández por seu acordo com o FMI, em momentos em que parecia que – depois de uma década – havia um reaparecimento do progressismo e/ou do esquerdismo, com o triunfo de Pedro Castillo no Peru, Gabriel Boric no Chile e as perspectivas de Gustavo Petro na Colômbia. Trataria-se de uma nova etapa progressista na região, junto aos governos de corte bolivariano, como os da Venezuela e Bolívia?

O surgimento de governos progressistas alimentou a esperança de uma vida melhor para os povos da região. No entanto, as políticas adotadas por seus governantes, além das diferenças nacionais, não responderam às demandas de uma cidadania duramente atingida pelo neoliberalismo. O progressismo não foi capaz de promover um projeto de transformação e abriu caminho para a direita.

O erro principal dos governos progressistas, muitos deles assessorados por “especialistas” da decadente esquerda europeia, foi manter o modelo de crescimento fundamentado na exploração dos recursos naturais, que é precisamente o fundamento material do neoliberalismo. O progressismo renunciou à industrialização, narcotizado pelos altos preços das matérias primas, e sobretudo porque aceitou a ideia imposta pelo neoliberalismo dominante de que crescimento e desenvolvimento são as mesmas coisas.

A diferença das esquerdas dos anos 60, o progressismo aceitou que nossas economias fossem provedoras de matérias primas e alimentos para a industrialização e urbanização chinesa, mantendo intocado o modelo produtivo e inibindo a diversificação econômica, o que favoreceu empregos precários e baixos salários.

Foi esse o modelo produtivo que gerou uma particular aliança entre governos progressistas e corporações transnacionais dedicadas ao agronegócio e ao extrativismo e que impediu que se realizassem reformas reais nos sistemas tributários, fundamento indispensável para o melhoramento da distribuição de renda, como recorda Roberto Pizarro.

Vale lembrar que o triunfo dos governos progressistas teve grande apoio dos movimentos indígenas, ecologistas e feministas, que deram demonstrativo de sua presença militantes nos primeiros anos. Mas, com o correr do tempo se desataram os fortes conflitos. Os governos progressistas se caracterizaram pelas práticas personalistas, clientelistas e, em vários casos, corruptas; gerando o rechaço de vastos setores da sociedade – o que foi aproveitado pela direita.

Poucos o dizem, mas as confusões e desatinos dos governantes progressistas abriram as portas para o reestabelecimento das piores políticas neoliberais que, ao fim, tiveram de ser pagas pelos nossos povos: hoje mais da metade dos jovens latinoamericanos e caribenhos vivem em casas onde reina a pobreza.

O progressismo de hoje não gosta das ruas, não se sente confortável. Para eles, são mais cômodas as negociações secretas, os concílios elitescos, as negociações diplomático-comerciais dos chineses, as mediações de “amigos” como o papa Francisco, algum prêmio Nobel de Economia, e/ou uma série de funcionários do governo democrata dos Estados Unidos.

E são esses funcionários – agora se dizem progressistas – que celebram o acordo como aficionados do FMI, não da Argentina e muito menos do futuro do país. E lançam sua artilharia midiática falando de “motes esbravejantes típicos de uma infantilidade simplista”, e esquecem quatro décadas de conluio e convivência com uma vida democrática formal, quando cada um dos governos era um “pagador em série”, nas palavras da vice-presidente Cristina Fernández de Kirchner.

Por que, se a dívida pública dos Estados Unidos em 2021 equivalia a 133% de seu PIB, a de Japão a 257% e a da Argentina a 102,8%, o FMI não envia missões trimestrais para auditar e corrigir a falta de manejo financeiro de Washington e Tóquio?, pergunta Atilio Borón.

Várias missões do FMI serão impostas sobre a Argentina nos próximos meses, desentranhando a verdadeira missão que o Fundo desempenha como instrumento da política exterior dos EUA. A dívida argentina – como muitas outras – é filha de uma abordagem estratégica que evitou discutir a natureza fraudulenta do empréstimo concedido, em flagrante violação de sua própria regulamentação e do caráter supostamente multilateral da instituição.

Ou seja, Donald Trump deu a ordem para ajudar na reeleição do neoliberal Mauricio Macri, que foi executada de forma obediente pelo Diretório do FMI, que não podia contradizer a ordem de seu principal sócio (ou patrão).

O verso geral dos opinadores-repetidores das direitas – não me atrevo a dizer pensadores, ainda que deva haver – é que o FMI é uma instituição “multilateral”, e que representa a “comunidade internacional”, e por isso o sensato é seguir suas orientações e condições ditadas.

Falando sobre as alianças internacionais dos EUA, Zbigniew Brzezinski declarou que “se deve incluir como parte do sistema estadunidense a rede global de organizações especializadas, particularmente as instituições financeiras ‘internacionais’”. Na realidade, são instituições dominadas pelos EUA, surgidas de uma proposta de Washington na célebre conferência de Bretton Woods de 1944, cujas consequências ainda se abatem sobre nós.

O sociólogo e economista Jorge Elbaum lembra que as condições externas coincidem com a extorsão judicial proposta dentro do país. O endividamento externo da Argentina com o FMI foi promovido pelos mesmos setores que dela se beneficiaram. Os amigos, sócios e simpatizantes do macrismo pediram ao ex-presidente que conseguisse os dólares para coroar a especulação financeira que haviam levado adiante desde o 10 de setembro de 2015.

O negócio saiu perfeito para eles: os grandes empresários ficaram com os dólares conseguidos com o FMI e o povo argentino ficou com a dívida. E para que isso tenha sido possível foi necessária a cumplicidade de uma Corte Suprema de Justiça instaurada para defender somente aos grupos mais opulentos da sociedade argentina.

Um setor do oficialista e peronista Frente de Todos acreditou ingenuamente que o triunfo de Joe Biden, um presidente oposto a Donald Trump, motivaria concessões para a Argentina; uma ilusão baseada no desconhecimento da lógica estrutural do capitalismo neoliberal global e nos informes dos cortesãos argentinos em Washington.

Altos funcionários e embaixadores são cúmplices no fato da Argentina não conseguir se industrializar, e que suas forças produtivas – os trabalhadores – não se associem a um Estado ativo capaz de dinamizar o desenvolvimento com forma inclusiva. E se somam as pressões para que não sejam diversificados os vínculos geopolíticos do país (com Rússia e China) e para que a América Latina não se integre, com a Argentina dando as costas aos que buscam um caminho independente da tutelagem de Washington e seus satélites.

Deixando o acordo de lado, todos são conscientes de que este modelo é inviável, mas, a partir do poder, advertem sobre a gravidade de “sair do sistema”, como se devessem manter essa enorme desigualdade social que segue crescendo dia após dia, sob a sombra de um modelo que multiplicou várias vezes não só a pobreza e a fome, mas também a dívida.

A presidência argentina sabe que com esse acordo o país seguirá pagando todas as fraudes, as velhas e as novas, santificadas e legalizadas depois do acordo firmado pelo governo Alberto Fernández que, como governos anteriores, aposta no extrativismo para, por assim dizer, conseguir dólares; dando de comer à dívida que engorda fundos especulativos, em detrimento de qualquer “estado de bem-estar” que favoreça as grandes maiorias.

Se o extrativismo é uma lápide para os governos progressistas, suas políticas com ênfase em “exportar para pagar” complementam as suas debilidades estruturais e ideológicas. É uma das expressões mais diretas do modo de inserção que temos no sistema capitalista mundial, destaca Roberto Perdía. Essa reprodução da sociedade de consumo introduz valores que atentam contra a autonomia, a soberania nacional e a organização popular.

Obviamente, por esses caminhos é muito difícil pôr em marcha processos de libertação nacional e emancipação nacional, bandeiras que parece que o progressismo – ao menos o argentino – abandonaram à vontade, sepultando a vontade, a luta e a mística revolucionárias dos anos 70, quando o povo foi protagonista.

Há aqueles que afirmam que o ciclo do progressismo está terminado. Talvez não seja assim: o que deve terminar é a política de enunciação superficial de consignas ou críticas sem propostas quando na oposição, e de “realpolitik” de resignação e frustração quando se chega ao governo.

Sem iniciativas de transformação produtiva ou políticas sociais universais, o progressismo colocou em evidência o fato de que não conta com um projeto próprio. Mais grave ainda é que operou politicamente em cúpulas, distanciando-se dos movimentos sociais e das bases.

Independente do que decida o governo de Alberto Fernández, a sociedade argentina está chamada a defender suas condições de vida contra ajustes regressivos, mas também em relação aos argumentos “progressistas” que justificam, confundem e desmoralizam.

E, quando não há projeto próprio, com raízes sociais efetivas, se termina dormindo com o inimigo ou na corrupção. Por isso os convido a começar a pensar no “pós-futuro”. Nas ruas, ombro a ombro, somos muito mais que dois, diria don Mario Benedetti – que não se referia aos ministros argentinos atuais, mas dá no mesmo:

“Vocês, duros com nossa gente, por que são tão servis?
Como traem o patrimônio, enquanto o gringo nos cobra o triplo!
Como traem, vocês e os outros, bajuladores e servis.
Por isso digo, senhor ministro: está rindo do que? Está rindo do que?”

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