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Por que os EUA disseram tantas vezes que a Rússia invadirá a Ucrânia?

Falar em uma “invasão iminente” da Rússia contra a Ucrânia não cumpre só objetivos político-ideológicos, mas também econômicos, relativos ao preço do gás na Europa.
Falar em uma “invasão iminente” da Rússia contra a Ucrânia não cumpre só objetivos político-ideológicos, mas também econômicos, relativos ao preço do gás na Europa. Por Pedro Marin | Revista Opera
Exercícios militares conjuntos do exército norte-americano e ucraniano em Yavoriv, em março de 2017. (Foto: Sgt. Anthony Jones, 45yh Infantry Brigade Combate Team)

Na última sexta-feira (11) o governo norte-americano mais uma vez alertou sobre uma “invasão iminente” contra a Ucrânia por parte das centenas de milhares de tropas russas que realizam exercícios nas fronteiras do país. Fazendo um chamado para que os cidadãos estadunidenses na Ucrânia deixassem o território, e após ter evacuado suas equipes diplomáticas do país, o Conselheiro de Segurança Nacional do governo Biden, Jake Sullivan, declarou que “o risco é agora bastante grande e a ameaça imediata, é isso que a prudência demanda. Se vocês ficarem, estarão assumindo o risco, sem garantias de que haverá qualquer outra oportunidade para deixar [o país] e sem perspectiva de uma evacuação militar dos EUA no evento de uma invasão russa”. Além dos Estados Unidos, países como Holanda, Alemanha, Austrália, Nova Zelândia, Letônia, Inglaterra e Japão também pediram que seus cidadãos saiam da região.

Apesar do tensionamento da situação – desta vez com chamados em massa por evacuação civil, passo que muitas vezes antecede os conflitos – muitos têm mantido uma posição cética sobre a possibilidade de uma invasão, precisamente pela recorrência da afirmação de que “a Rússia está preparando uma invasão iminente à Ucrânia” por parte de oficiais dos EUA e mesmo do presidente Biden.

Como escrevi anteriormente, falar em uma “guerra iminente” movida pela Rússia apaga a guerra civil que já se desenrola a oito anos no país, escondendo as razões que levaram ao conflito e portanto transformando a discussão em algo de caráter puramente geopolítico, no qual o destino de milhões de pessoas vivendo no leste da Ucrânia desaparece, bem como o caráter chauvinista do governo ucraniano. Obviamente, essa operação, uma vez desdobrada na imprensa, cumpre uma função ideológica – pintar a Rússia como uma potência ameaçadora à soberania ucraniana e criar uma dinâmica de identificação do público com a posição do governo ucraniano. Se, em regiões como a nossa, esses efeitos têm um caráter limitado – criam uma percepção ruim da Rússia em geral e esse vínculo de identificação com a “libertação” ucraniana –, a situação é outra na Europa, onde o público passa a se confrontar com a perspectiva de guerra e, porque não, da Rússia estendendo seus braços até seus países.

Este é um primeiro efeito político das declarações e da campanha midiática que delas se desdobra: inverter a situação, criando a percepção de que é a Rússia quem ameaça a Europa, quando a reivindicação russa é, precisamente, que a OTAN pare de se expandir para perto de suas fronteiras. A “mentira repetida mil vezes” de fato torna-se verdade; não só literalmente é tomada como verdade pelo público (o que não é tão importante), mas informa o público na sua tomada de decisão. Os europeus, há pouco relativamente despreocupados em relação à Rússia e ao esquecido conflito ucraniano, confrontando-se com a dissolução da UE, com seus problemas econômicos, com manifestações antivacinas, de repente são jogados a uma posição em que tendem a fortalecer seu apoio à OTAN, já que a Rússia – que ameaça a Ucrânia – logo pode ameaçá-los também. Como escrevi em meu artigo, não faz sentido que a Rússia invada a Ucrânia; mesmo no leste, onde vive uma população considerável de russos étnicos ou de falantes de russo (e um sentimento geral de vínculo com a memória da vida na União Soviética e da Grande Guerra Patriótica), o melhor para Moscou é que a situação permaneça mais ou menos como está (não por acaso foram nesses termos que a Rússia se posicionou quando da assinatura dos acordos de Minsk). Se por um lado há analistas que dizem que a conquista do leste da Ucrânia pela Rússia significaria a conquista de uma “zona-tampão” (buffer zone, um pedaço de território que separa dois poderes em conflito), chamo atenção para o fato de que esse mesmo leste já cumpre essa função, sendo desnecessária sua conquista. A Rússia se dispor a invadir o país unilateralmente, marchando até o oeste, é ainda mais ilógico. O fato é que o tensionamento e a indisposição ideológica, o “receio” e o “medo” no público europeu, e o decorrente reforço no apoio à OTAN, são efeitos dessa operação que, ao fim, acaba tornando a guerra mais provável – não porque a Rússia se torne mais agressiva, mas precisamente porque a OTAN passa a ter mais apoio, portanto limitando (literalmente, inclusive) o espaço de manobra russo.

Mas há um outro efeito, ainda mais importante do que o político-ideológico, que as declarações de oficiais norte-americanos e sua repetição na imprensa acarretam. Como escrevi, um dos pontos fundamentais a levar em conta na atual tensão na Ucrânia são os interesses relativos ao envio de gás da Rússia para a Europa. Países como a Alemanha, por exemplo, são altamente dependentes do gás russo no inverno. Em um artigo para a Globetrotter que traduzimos, do jornalista indiano Prabir Purkayasth, é exposto o funcionamento desse mercado de gás europeu hoje: “Infelizmente, a UE também é uma crente fiel à ideia de que os mercados podem resolver magicamente todos os problemas. Ela afastou-se dos contratos de preço de longo-prazo para o gás, para substituí-los por compras à vista e contratos de curto-prazo – ao contrário da China, Índia e Japão, que têm contratos de longo-prazo indexados aos preços do petróleo. […] Infelizmente, para o povo que vive no bloco europeu, não só o mercado de gás, mas também o de eletricidade, foram “liberalizados” sob as reformas de mercado da UE. A combinação de energia disponível no sistema é determinada por leilões no mercado de energia, nos quais produtores privados de energia oferecem seus preços e a quantidade de energia que suprirão ao sistema elétrico. Esses lances são aceitos, na ordem do menor para o maior, até que a demanda prevista para o dia seguinte seja suprida. O preço da última oferta então se torna o preço para todos os produtores. Na linguagem dos seguidores de Milton Friedman – conhecidos como Chicago Boys – esse preço oferecido pelo último ofertante é o “preço marginal” descoberto pelo leilão do mercado de eletricidade e, portanto, é o preço “natural” da eletricidade.”

Com um sistema de compra e oferta de gás tão liberalizado, é óbvio que a tendência, cada vez que um oficial norte-americano ou um jornal falam em “invasão russa”, é que esses produtores privados de energia ofereçam o gás por preços mais caros, dada a imprevisibilidade e instabilidade da situação (quando não a aproveitam para especular abertamente). Ou seja: mais do que atender a um objetivo político-ideológico, repetir as palavras “invasão russa” instantaneamente torna o preço do gás (e portanto também da energia) na Europa mais caro. Por meio desse garrote, os EUA pressionam os líderes europeus a tomarem uma postura mais agressiva em relação à Rússia (já que o preço do gás se reflete nos cidadãos europeus, gerando um cenário de possível caos político interno) ou a abrirem mão de seu sistema de compras de gás ultraliberal (o que não pode ser feito a curto prazo e, de qualquer forma, iria contra os interesses desses poderosos produtores privados de energia). Se a Europa tende a não querer um conflito na Ucrânia por ser dependente do gás russo, a operação dos Estados Unidos é forçar, como um miliciano fazendo “sugestões” a um comerciante, que seus líderes se posicionem ao seu lado. O miliciano, ou gângster, pode ainda oferecer um “incentivo positivo”, ao oferecer xisto para resolver a questão do gás: “o ganhador de tudo isso são os EUA, que terão a UE como uma compradora de sua produção de gás xisto. A Rússia hoje fornece cerca de 40% do gás europeu. Se esse fluxo parar, os Estados Unidos, que fornecem cerca de 5% da demanda de gás da UE (de acordo com os números de 2020), podem ser um grande ganhador. O interesse dos Estados Unidos em sancionar o fornecimento de gás russo e não permitir o comissionamento do Nord Stream 2 tem tanto a ver com seu apoio à Ucrânia quanto em garantir que a Rússia não se torne muito importante para a UE”, como escreve Purkayasth.

Não devemos tomar as declarações sobre uma “invasão russa à Ucrânia” simplesmente com ceticismo, acreditando serem um apanhado de mentiras vazias. São mentiras, realmente: mas que tendem a pressionar todos os atores a tornar a guerra um fato. As “armas de destruição em massa” de Saddam Hussein, os “soldados de Kadaffi tomando viagra e estuprando mulheres” na Líbia, a “vitória ao alcance da mão” no Vietnã (e os “desastres naturais” nos diques do Rio Vermelho) a “reconstrução” no Iraque e no Afeganistão, as operações de falsa-bandeira na Europa no contexto da “Operação Gladio” e as tão recorrentes “eleições fraudadas” na América Latina são todas manipulações, mentiras ou falsificações. Mas que levam a realidades tragicamente categóricas.

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