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Gabriel Colombo (PCB-SP): “São Paulo foi locomotiva do neoliberalismo”

Pré-candidato do PCB ao governo do Estado, o agrônomo Gabriel Colombo, de 32 anos, fala sobre as bandeiras de sua pré-candidatura em entrevista.
Pré-candidato do PCB ao governo do Estado, o agrônomo Gabriel Colombo, de 32 anos, fala sobre as bandeiras de sua pré-candidatura em entrevista. Por Pedro Marin | Revista Opera
O pré-candidato pelo PCB ao governo do Estado de São Paulo nas eleições de 2022, Gabriel Colombo.

Gabriel Colombo nasceu no Rio de Janeiro, em 1990, mas logo mudou-se com a família para o pequeno município de Durandé, no interior de Minas Gerais. Filho do dono de uma pequena lanchonete no centro da cidade de 7 mil habitantes, e de uma dona de casa que fazia doces por encomenda, a família dependia do movimento dos aposentados, que iam ao centro sacar seus vencimentos, e do fluxo dos estudantes da única escola do município. Com a abertura de novos núcleos escolares e agências bancárias na zona rural, os rendimentos da lanchonete foram aos poucos se extinguindo. Técnico agrícola, o pai se muda com a família para Viçosa (MG) para trabalhar, e depois Atibaia (SP). 

Em 2009, Colombo passa no curso de Agronomia na Escola Superior de Agricultura da Universidade de São Paulo (Esalq/USP), em Piracicaba. “Vim para a Esalq porque tinha moradia estudantil, tinha pesquisado e era uma das [universidades] que tinha melhores condições, com restaurante universitário e bolsa alimentação, e foi uma das coisas que garanti desde o início.” À época interessado pela questão ambiental, foi fazer estágio em uma das maiores fazendas de orgânicos e hortifrutis do Brasil. “Vou para lá e tinha a mesma dinâmica de exploração de trabalho. Os trabalhadores recrutados no interior, trabalhavam durante três ou seis meses para juntar um dinheiro e voltar pra casa, moravam em galpões. Não mudava muita coisa do que se via em grandes propriedades”, diz. A partir de então, começa a estudar agroecologia e a atuar junto a assentamentos e quilombos, especialmente no Vale do Ribeira, tema que vai estudar no mestrado.

Com os protestos de 2013 e o nascimento do filho, em 2014, passa a se politizar mais. “Era aquela loucura de trabalho precário, de garçom, estudando, saindo da moradia estudantil, porque não podia ter criança… Mas naquele contexto de 2014, chegava de madrugada ainda com aquela adrenalina do trabalho, enchia uma bacia com água e sal para colocar os pés e ia lendo os livros e conversando com minha companheira enquanto ela amamentava o Artur”. Em 2015 decide se organizar, e opta pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB), estruturando o núcleo do partido em Piracicaba e região.

Aos 32 anos, representa hoje o PCB como o pré-candidato mais jovem ao governo do Estado de São Paulo. Engenheiro agrônomo com mestrado em Ecologia, Gabriel apresenta as bandeiras de sua candidatura na primeira de uma série de entrevistas da Revista Opera com pré-candidatos às eleições de 2022.

Revista Opera: O Estado de São Paulo, apesar de ter passado por um processo de industrialização muito forte, apesar de ter como capital a maior metrópole do País, tem uma produção agrícola bastante relevante, mas com muita concentração nessa produção – basicamente 25 produtos são produzidos, cana-de-açúcar e laranja representando um montante grande disso – e com uma concentração fundiária também bastante forte. Apesar dessa relevância da produção agrícola paulista, nós temos hoje milhões de pessoas no Estado passando fome. Queria saber justamente qual é o balanço que você faz dessa agroindústria paulista e o que um eventual governo do Estado comunista teria como proposta para essa questão. É possível avançar numa concepção de combater a grande propriedade no campo?

Gabriel Colombo: Muito bom. Acho que quando vamos falar do agronegócio uma primeira questão é desmistificar essa ideologia do “agro é tech, agro é pop, agro é tudo”. Há dois elementos: primeiro, apesar de alguns setores terem um desenvolvimento científico-tecnológico grande na produção, elevando a produtividade – mesmo em gêneros alimentares importantes para a mesa dos brasileiros, como o arroz e o feijão, produtividade essa que inclusive é o que nos permite ainda ter um pouco de arroz e feijão – nós temos ainda uma enorme quantidade de áreas improdutivas. Terras que ficam para a disponibilidade da especulação de terras, e terras que se tornaram desertificadas, tornaram-se improdutivas, ou seja, terrenos que o capital desenvolveu ao máximo, sem incorporar fertilização, sem ter preocupação com o desenvolvimento das terras a longo prazo, tornando-as improdutivas. Todo mundo que anda pelo Estado de São Paulo percebe áreas que são pastagens degradadas, aquele capim baixinho, geralmente cheio de cupim na pastagem – isso é terra improdutiva, por mais que tenha uma ou outra cabeça de gado ali, essa terra não está cumprindo o que seria um patamar de produtividade capaz de justificar a função social da terra. Tudo isso pode ser desapropriado desde já.

Então é preciso desmistificar: por mais que tenha de fato um desenvolvimento tecnológico no agronegócio, isso não significa pesquisa e desenvolvimento em todas as terras. As terras do capitalismo, tanto pela especulação fundiária quanto pela dinâmica de disponibilidade de terras no País – o Brasil é um país continental – nunca são pensadas em termos de sua sustentabilidade a longo prazo. A lógica é sempre do esgotamento e utilização máxima dos recursos.

No Brasil temos isso como uma característica histórica da nossa formação social, que é o fato de que todas as lavouras primeiro começam do litoral. O Caio Prado Jr. inclusive cita em sua obra um historiador que fala que o Brasil explorou sua terra como um caranguejo; primeiro andando pela costa, lateralmente, e só depois entrando. E pra trás sempre vão ficando as terras improdutivas. Aqui no eixo Rio-São Paulo dá para pensar o que foi isso com as lavouras de café: nós vemos hoje na marginal Dutra, por exemplo, muitas áreas improdutivas, que são resultado desse uso máximo pela agricultura sem uma preocupação com a continuidade dessas terras.

Sintetizando: há um aumento de produtividade, mas que não abarca a totalidade das terras. Então continuamos tendo o problema das terras improdutivas, seja por especulação, seja por desertificação. Isso precisa ser enfrentado, é preciso fazer um processo de democratização do acesso à terra no País, que é um debate que ficou lateralizado pela esquerda e, no final da primeira década deste século foi deixado de lado, na ideia de que “a questão não é assentar mais” – e política de assentamento já não é reforma agrária – “a questão é modernizar os assentamentos que tem”. Então nunca se colocou em xeque a grande propriedade da terra, se buscou atender aqueles que ocupavam a terra – uma política de assentamentos, não uma política de reforma agrária. 

Então nossas pré-candidaturas trazem o compromisso de colocar de novo em cena o debate sobre a reforma agrária. E num momento em que, paradoxalmente, o agronegócio aumenta sua produtividade, mas não consegue alimentar a população brasileira e a população paulista. Nunca o agronegócio teve a sua política ambiental e de terras tão bem atendido quanto no governo Bolsonaro. Ficou marcante com Ricardo Salles na frase “passar a boiada”. Isso é para expropriação de terras indígenas, terras quilombolas, de camponeses. Há uma política de regularização de grilagem das terras na Amazônia que permite a regularização da grilagem de até 2,5 mil hectares; a retomada do desmatamento e a falta de fiscalização ambiental – e vimos isso de forma dramática na questão da morte do Bruno e do Dom; a política dos agrotóxicos, também um libera-geral. Ou seja, o agronegócio tem tudo disponível, o Plano Safra batendo recordes de investimento – e, ainda assim, a população brasileira passando fome.

Esse agronegócio não tem um vínculo direto da produção para a alimentação brasileira. Há dois fatores nisso: um é o próprio capitalismo; para ele não importa atender uma necessidade humana, atender uma necessidade social. Para o capital, o que vale é gerar lucro. O segundo fator é que o agronegócio é vinculado à produção de commodities. Então esse paradoxo, de produtividade alta mas com o povo passando fome, é escancarado na aparência, mas não é um paradoxo para a burguesia, para o agronegócio: o centro para eles é garantir o lucro, garantir a valorização do capital.

Em São Paulo é marcante a produção de cana-de-açúcar e do eucalipto, especialmente ali na região do Vale do Paraíba, seguindo a mesma lógica: não são vinculadas ao abastecimento interno do País ou do Estado, mas ao mercado mundial. Atendendo a um mercado mundial de açúcar, de etanol, de papel e celulose. E mesmo aqueles produtos que são destinados à alimentação interna, como o caso da carne: para a JBS pouco importa se a produção vai ser consumida em São Paulo ou na Ásia, na Europa, na África. E  agora, aqui em São Paulo, foi aprovado na Assembleia Legislativa, na semana passada, o PL 277, que permite a compra de terras griladas. É importante perceber que a Federação de Indústrias de São Paulo (FIESP) hoje é uma representação muito mais forte do agronegócio – pensando ele como um setor agroindustrial; a cana-de-açúcar tem as usinas, o eucalipto tem a indústria de papel e celulose, a laranja tem a indústria cítrica – do que se pensarmos uma indústria metalúrgica ou algo do tipo.

Ou seja: é necessário voltar a pautar a reforma agrária, e uma reforma agrária popular, com democratização do acesso à terra, com garantia de produção de alimentos a partir do Estado, uma volta a um projeto de pesquisa e desenvolvimento que busque atender às demandas internas, ao abastecimento interno. Com a quantidade de terras que temos em São Paulo, podemos cumprir um papel nacional, com garantia de sustentabilidade, de proteção da nossa biodiversidade, de amplificação da biodiversidade, conservação dos rios, etc. E é necessário cumprir essa tarefa de demonstrar e denunciar o que é isso que se chama de “agronegócio”, que na verdade não nos alimenta.

Revista Opera: Uma polêmica política: no contexto do governo Bolsonaro, se tem promulgado a necessidade de adotar a lógica da frente ampla, uma aliança da centro-esquerda com setores à direita, e essa forma aparentemente foi seguida pelo Partido dos Trabalhadores (PT) não só a nível nacional, mas também aqui, a nível estadual – uma chapa com Haddad (PT) saindo a governador e Márcio França (PSB) ao Senado. O PCB optou por lançar candidaturas próprias, sendo a sua justamente uma expressão disso, e não embarcar nessa frente. Queria que você explicasse o porquê desta posição, qual a importância de manter candidaturas próprias, e porquê o eleitor de esquerda deveria apoiar essas candidaturas em detrimento daquelas de frente ampla. E, já que há essa opção por não fazer parte da frente ampla, se o PCB não pensa na formação de uma frente de esquerda para as eleições.

Gabriel Colombo: O que a gente vinha defendendo, não só no processo eleitoral, mas também nas lutas, era uma frente única dos trabalhadores; um momento em que se unificassem os partidos da esquerda revolucionária, e que os socialistas, social-democratas, reformistas, sociais-liberais estivessem em uma frente única dos trabalhadores. Ou seja, que mesmo com as divergências, fosse consolidado um campo que apontasse um programa para enfrentar o legado Bolsonaro-Temer nacionalmente. Isso é, que enfrentasse o teto de gastos, a reforma trabalhista, a reforma da previdência, a lei da terceirização, as privatizações. É um conjunto de medidas mínimas, tranquilas para as organizações que buscam representar a classe trabalhadora, para serem apresentadas em conjunto – não só nas eleições, defendemos isso na retomada das ruas contra Bolsonaro no ano passado, debatemos isso durante o período de pico da pandemia. 

É um debate que vem desde que Bolsonaro vai para o segundo turno e ganha: como enfrentá-lo? Frente ampla ou frente única dos trabalhadores? Nós trabalhamos para isso, não só no âmbito dos partidos, mas sobretudo nas organizações populares, nos movimentos sociais, para tentar atrair para a ideia de uma unidade de esquerda no enfrentamento ao governo Bolsonaro – mas não o Bolsonaro só como uma figura, e sim como um programa que ele expressa e representa. Porque é assim que temos que entender: Temer e Bolsonaro são peças no tabuleiro da burguesia em um momento de ofensiva mundial dela contra os trabalhadores. Que repete em todos os países um mesmo padrão que enfrentamos aqui. Trabalhávamos essa ideia de frente única dos trabalhadores até para que nossa resposta não se limitasse às eleições, mas que nós conseguíssemos expressar, com mobilizações, com greves, essa insatisfação.Vimos jornadas de luta fortíssimas no Chile, na Colômbia, agora no Equador, que deram resultados – no caso de Chile a ponto de derrubar a Constituição do Pinochet; no caso da Colômbia elegendo Gustavo Petro, inclusive eleição que traz aí o aprendizado de que não é necessário conciliar, no cargo de vice, com a direita; e agora no Equador, conseguindo reverter o aumento do preço dos combustíveis. Então nós queríamos, antes das eleições, já derrotar Bolsonaro e já derrotar esses programas. Não tínhamos uma lógica de quietismo, de “vamos aguardar as eleições”, nem uma proposta de ir às ruas só para desgastar Bolsonaro. Não: achávamos possível derrotá-lo.

Infelizmente diversas organizações não toparam entrar nisso de cabeça; levavam seus dirigentes, mas não mobilizavam as bases. Algo que, olhando hoje, acho que não cabe a mais ninguém, cabe a nós, que nos identificamos com o campo da esquerda revolucionária, porque o que me parece é que com essa frente ampla, na medida que recua cada vez mais, vamos ter muita dificuldade de mobilizar. Temos expressões disso, inclusive: até o momento, o que tenho percebido é que, por mais que a adesão eleitoral ao nome de Lula no primeiro turno seja muito forte, os comitês populares, por exemplo, que expressariam isso na base, não decolaram. Não vejo uma renovação política do PT, por exemplo, nos movimentos de juventude, nos movimentos sociais e nos sindicatos. Me parece que é uma coisa que ficou tão deslocada, focada nas eleições, que não tem sequer esse “caldo” de se expressar na luta de classes, quase uma expressão só eleitoral e institucional. E isso não nos permite sair do buraco em que a gente se encontra.

Nós temos que fazer portanto um debate programático, e mais, um debate de reorganização da nossa classe. Nós precisamos ter capacidade novamente de fazer grandes greves, grandes mobilizações, apontando para uma unificação das lutas, para que não sejam fragmentárias e que tenham um programa mínimo que as unifique. Ou seja: ir organizando um processo no qual, a partir de mobilizações espontâneas, haja ganho de consciência. Nós estamos nas eleições sem nenhuma ilusão: o processo tem que despontar sempre para um ganho de forças do poder popular e para um processo de revolução no País, de revolução socialista. A burguesia brasileira não vai conceder nada mais para a maioria trabalhadora, isso fica evidente nesse contexto de ofensiva, fica evidente nos últimos dados do PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua) – houve uma retomada do emprego? Mas eles são mais precários, porque teve uma redução da renda. 40% da força de trabalho é informal. Se a gente soma informais, desalentados, subocupados, temos um quadro que afeta mais da metade da força de trabalho do País, ou seja, mais da metade vive numa situação de instabilidade, de incerteza de futuro. Isso é o caldo para um processo de mobilização. Há um descontentamento que é muito fragmentado, que nós não temos conseguido organizar em lutas na nossa sociedade, e esse é o desafio.

O momento eleitoral se apresenta como um momento tático em que mais pessoas estão abertas a ouvir tanto um programa quanto uma perspectiva de País, e não poderíamos nos isentar de disputar esse momento. Sempre faço a analogia, frente a críticas mais à esquerda, do tipo “vocês estão disputando eleições burguesas”, que é que as candidaturas representam algo como um panfletaço, uma distribuição de jornais em larga escala. É um momento em que nós conseguimos amplificar as nossas pautas, porque não estamos rebaixando nada: não deixamos de falar de revolução socialista quando estamos no processo eleitoral; não deixamos de falar de poder popular; não deixamos de falar que temos de entender que a burguesia é nossa inimiga e que não é possível conciliar com ela, porque são os burgueses que matam, encarceram em massa, colocam nas periferias em situações subumanas de moradia a nossa população; de superexploração de trabalho nos empregos, sem perspectiva de futuro para nossa juventude. Eles não fazem isso porque não sabem conduzir um País: fazem isso porque esse é o projeto de País deles. É uma minoria que enriquece muito, que até na pandemia enriqueceu muito: o número de bilionários e sua riqueza aumentou em 30% durante os dois anos de pandemia, enquanto a renda de 90% da população reduziu.

A posição da frente ampla seria abrir mão de fazer esse debate público para já ir conciliando numa perspectiva institucional e eleitoral: olhar as pecinhas, quem tem peso parlamentar, e dizer “ah, tem que trazer o PSB aqui, junto com PT, joga nesse bolo e traz a reboque o PSOL, coloca também a REDE e o PCdoB e vamos fazendo um grande arranjo parlamentar eleitoral que vai dar viabilidade para isso nas eleições”. Isso foge totalmente ao debate de que programa vai ser esse, que projeto vai ser esse. E por mais que seja permitido, nas eleições, que Lula fale – como já fez – sobre legalização do aborto, teto de gastos, reforma trabalhista, essa coligação cria um abismo entre o que ele fala e o que vai ser feito. Porque a correlação de forças que ele está criando para isso não vai sustentar essas afirmações; não é uma correlação de forças fundamentada na mobilização popular, é fundamentada justamente na correlação de representação parlamentar e institucional.

Essa nunca vai ser uma perspectiva para a classe trabalhadora. Porque parte do princípio de que a correlação de forças é estática, e só cabe gerenciar melhor o Estado dentro dessa correlação, para massacrar um pouco menos a classe trabalhadora. Não dava para entrarmos rendidos nesse processo eleitoral. Esse é o primeiro ponto.

E o segundo é compreender que a eleição no Brasil tem dois turnos. Não dá para entrarmos no primeiro usando a mesma lógica do segundo. No segundo, sim, podemos ir para a lógica do menos pior: ninguém aqui é da linha do “quanto pior, melhor”, ninguém diz que as questões objetivas e as demandas imediatas da nossa classe não importam. Nós nunca falamos isso. Podemos escolher as condições com as quais a gente sabe que vai lutar depois. Mas o que precisamos no primeiro turno é entender que quanto mais fortalecidos nós sairmos em termos de expressão de votos, mais fortalecidos nós estaremos depois. Entendemos como um momento de expressão de forças de projeto: quanto mais peso tivermos ali, na votação, mais peso teremos depois na luta de classes. Mais gente que estaremos mobilizando junto. O nosso único poder é a organização, e a eleição portanto tem sempre de estar vinculada a esse convite, esse chamado, à organização coletiva e à sua mobilização.

Agora, assim como antes nós defendíamos uma frente única dos trabalhadores,  há espaço para nós defendermos uma perspectiva ainda mais radical aqui em São Paulo, que é expressar nas eleições uma frente de esquerda socialista, anticapitalista e antiimperialista, que aglutine um polo para além do PCB. Em São Paulo nós temos como demonstrações a favor disso: nos resultados que nós já temos nas pesquisas, e como se nacionalizou a disputa pela prefeitura de São Paulo em 2020, em que a coligação do Boulos no primeiro turno era PSOL, PCB e Unidade Popular (UP). Agora nós temos conversado, essa semana eu estive em conversas junto à Unidade Popular (UP), nós temos feito esse convite, de sairmos com uma frente de esquerda socialista aqui nestas eleições, com o mote de “pelo poder popular e pelo socialismo”. É uma linha que temos de fortalecer em São Paulo, porque acho que vai nos preparar muito para o que vai vir após as eleições, considerando que podemos fortalecer a experiência do que foi e é a Frente Povo na Rua, por exemplo, que conseguiu garantir uma ida às ruas contra Bolsonaro. É garantir que vai ter mobilização também contra os governos de conciliação de classe.

Não podemos cometer o mesmo erro que o conjunto das organizações da classe trabalhadora cometeu em 2002, de apassivar a nossa classe, dizendo que “isso é o que dá para fazer no âmbito do governo”. Sem problemas se é o que dá pra fazer lá no âmbito do governo, mas isso não nos contenta, então temos que lutar e mobilizar. Porque é isso inclusive o que vai mudar as condições para que, lá no governo, consigam fazer mais. Então nós defendemos sim isso, que é muito importante, e para isso nos propomos a abrir mão da nossa pré-candidatura ao Senado, papel que hoje o camarada Tito [Flávio Bellini] cumpre, para que a Vivian [Mendes, pré-candidata ao Senado pela Unidade Popular] venha como pré-candidata ao Senado numa chapa que haja só um pré-candidato ao Senado. O vice também poderia ser da Unidade Popular para que a gente cumpra essa tarefa, uma avenida aberta que não é só do PCB, mas de todos os que se identificam com esse campo revolucionário, socialista, radical e popular em São Paulo.

Revista Opera: Uma das grandes marcas das últimas duas décadas de governos do PSDB aqui em São Paulo tem sido o avanço das privatizações no Estado. Temos um processo de privatizações diretas mesmo, desde o começo dos anos 2000 – o Banco do Estado de São Paulo (BANESPA), a Companhia Energética de São Paulo (CESP), etc., – mas tem-se avançado também um processo de concessões privadas – linhas de metrô, rodovias – e as chamadas “Parcerias Público-Privadas”, a concessão da administração de uma série aparelhos públicos para empresas ou as chamadas “Organizações Sociais”. Que balanço você faz desse processo de privatização no Estado – sejam diretas ou indiretas, por meio dessas concessões – e, se eleito, como um governo comunista lidaria com isso? Barraria por completo as privatizações, encamparia a reversão de algumas privatizações, estimularia a criação de empresas públicas?

Gabriel Colombo: A sua pergunta sistematiza bem essa multiplicidade de formas da privatização no Estado. Em São Paulo, para além de derrotar Bolsonaro, nós temos essa urgência de derrotar o legado de 28 anos do PSDB. É nisso que São Paulo realmente foi uma locomotiva no País: em impor o projeto neoliberal.

Falando da primeira forma de privatização. Foram entregues na mão da iniciativa privada, de bandeja, de presente, diversas empresas públicas que cumpriam um papel fundamental mesmo dentro da lógica do desenvolvimento capitalista. O BANESPA, por exemplo, um banco estadual, público, que era o terceiro maior do País quando foi entregue nas mãos do Santander. E, para além da estrutura do banco em si, foi entregue na mão do Santander, diretamente, os salários do funcionalismo público do Estado, que passou a receber pelo Santander; parte recebia pela Nossa Caixa, mas que também foi privatizada. “Toma aqui, você pode pegar toda essa poupança [dos salários] e utilizar para investimentos”. Foi para a mão privada – e aí deixamos de fazer os investimentos realmente necessários, no planejamento do Estado, no desenvolvimento de infraestrutura, da habitação, saneamento, transporte, indústria. Reverter essa privatização é central; recuperar a capacidade de investimento e planejamento no Estado passa por termos um banco público estadual.

Mas temos diversas outras empresas privatizadas. A distribuição de energia, que fica a cargo dos Estados, também. A CPFL, que é o caso da minha região; na cidade de São Paulo a Eletropaulo. São umas seis distribuidoras de energia no Estado de São Paulo, e todas elas foram privatizadas, e a gente vê hoje o alto valor que pagamos de energia em consequência disso. Nesse processo de privatização dos serviços nos setores estratégicos, se coloca, entre um serviço que é essencial e fundamental para toda a população paulista, o lucro dos empresários, do capital privado. Isso tem que acabar, a gente tem que retomar essas empresas. E essas concessões, que têm prazo, podem ter revisões de contrato – geralmente elas não cumprem uma série de questões, como interesse social, ou mesmo termos do contrato, o que permite a encampação. Nós estamos estudando ainda, porque é nítido em concessões como as de rodovias, do transporte público, do Metrô e da CPTM, mas poderia ser aplicável também à concessão e privatização das distribuidoras de energia. Mas nós vamos trabalhar pela sua reestatização.

E outra empresa pública, que é fundamental, a maior empresa de água e saneamento do mundo, que é a SABESP (Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo). Ela ainda é predominantemente de capital público, mas com 51%; os outros 49% da empresa já estão em bolsas de valores, em São Paulo e em Nova Iorque. Então recompraríamos estes papéis também. É uma empresa fundamental, hoje temos no Brasil 35 milhões de pessoas sem acesso à água tratada; 100 milhões que não têm acesso à coleta de esgoto. Isso dá ideia do que sejam os números do Estado de São Paulo, onde esses serviços também não são universalizados. Uma vez que você tem metade da empresa sendo acionistas – e estamos vendo agora com a Petrobras o que é o acionista pressionando para ter acesso aos seus dividendos – é dinheiro que você vai pagar o acionista e que deixa de ir para investir na renovação da rede de esgoto e água e da sua expansão. Ou seja: essas coisas ficam secundarizadas, a prioridade é o pagamento dos dividendos. E o Tarcísio Freitas (Republicanos) fala em privatizar uma empresa como a SABESP.

Na parte das concessões, acho que a mais escandalosa que temos hoje é a da CPTM, que foi apelidada de “Via Calamidade”, mas também as obras do Metrô… A linha 6 do Metrô, está prometida desde 2008, pô. Foi o José Serra (PSDB) que prometeu entregar em 2012, estamos em 2022, e a previsão agora é acabar em 2025. É um absurdo. Nos casos da linha 8 e 9, os trens parando fora das estações, a população tendo que descer; trens descendo juntos, sobrecarregando as estações – houve até aquele episódio em que a população ficou revoltada e quebrou tudo na estação do Grajaú. E nas rodovias os reajustes absurdos e abusivos nas tarifas de pedágio. E tem um processo inclusive de expansão das rodovias para o interior, com duplicações e melhorias. Aconteceu aqui; estou em Piracicaba, São Pedro é uma cidade próxima e tem muita gente que mora lá e vem trabalhar aqui. Tinha uma demanda por duplicação há muito tempo. O Estado fez isso; investiu, duplicou, melhorou… E depois concedeu e a empresa que ganhou a licitação só colocou a praça do pedágio. É um absurdo: quem pagou foi o Estado! E isso tem acontecido muito em uma série de rodovias que estão sendo expandidas pelo interior e depois concedidas. E nesses casos é muito tranquilo fazer a encampação. Isso já é dado. E outra questão que entra nisso é a retomada da Fepasa (Ferrovia Paulista S/A), reestatizar a Fepasa, rever os contratos que foram concedidos dos trilhos, e diversificar os modais de transportes em São Paulo. No País e aqui temos uma concentração muito grande na malha rodoviária, e precisamos repensar o papel das ferrovias; para o interior, recuperá-las seria algo fantástico, tanto no sentido de conectar mais às capitais quanto de facilitar o fluxo de pessoas e mercadorias. Isso aquece a economia de uma maneira enorme, e até para a gente, que tem o trabalho revolucionário, favorece a logística. Pegar um trem em São Paulo e sair distribuindo jornal e a Revista Opera, parando em todo o Estado [risos]. Teria uma facilitação do próprio trabalho revolucionário [risos]. Isso é melhoria na qualidade de vida do trabalhador, redução no custo logístico do transporte – que impacta diretamente na redução do preço de mercadorias e serviços para a população em geral. 

Quanto aos serviços, o Haddad foi inclusive essencial para a implantação dessas Parcerias Público-Privadas, ele foi o formulador disso quando era secretário de Política Econômica no Ministério da Fazenda, ainda no governo Lula – e inclusive se orgulha disso, para poder dialogar com o empresariado paulista tem enfatizado esse papel dele, como fez na sua entrevista no Roda Viva. Isso serviu para abrir espaço para um sucateamento dos serviços. Na saúde isso é muito expressivo, com as Organizações Sociais da Saúde (OSS), que vão impondo uma lógica empresarial em que o hospital, a Unidade Básica de Saúde (UBS) passam a entender tudo como um custo, um gasto, e a saúde se distancia daquilo que deveria ser um direito que todos deveriam acessar universal e integralmente. Reduzem a equipe… Muita gente não sabe: há uma revolta na população pelos médicos muitas vezes mal olharem no olho para atender do paciente, por exemplo. É porque o cara tem uma meta de atendimento por hora para cumprir que não permite a ele te fazer um atendimento de qualidade.

Revista Opera: Isso na rede pública.

Gabriel Colombo: Na rede pública, exatamente, com administração privada! As OSSs hoje gerem mais de 60% dos serviços de saúde pública do SUS em São Paulo, que vai impondo essa lógica. Um dos impactos dessa “racionalização” da saúde como um gasto é a redução de quase 10 mil leitos no Estado de São Paulo entre 2011 e 2020. É dramático, fez que entrássemos muito mal na pandemia, e que, uma vez nela, fossem criados muitos leitos de campanha ou provisórios que, assim que melhorou a situação, foram fechados.

Essa situação de precariedade e de confusão entre o público e o privado nós não admitimos. Vamos rever tudo o que é contrato, fazer um processo amplíssimo de auditoria em todos os contratos, em todas as privatizações, fuçar tudo o que teve de errado nessa distribuição de energia, no BANESPA, na FEPASA, na TELESP, achar tudo o quanto for brecha para poder reestatizar. Essa vai ser a centralidade, acompanhado sempre de um amplo debate público e de participação popular em todo esse processo. A capacidade disso gerar empregos, e empregos de diferentes níveis de complexidade, é enorme, bem como de reaquecer algo que nos países dependentes sempre foi uma debilidade, que é aproveitar o fato de São Paulo ter três universidades estaduais entre as melhores do país e 19 institutos de pesquisa. Podemos vincular esse processo à pesquisa e o desenvolvimento, colocando claramente o papel social das universidades, da formação do estudante.

É claro que falando na parte racional e operacional, tudo parece muito fácil. Mas isso demonstra a viabilidade de um projeto radical, que mesmo dentro das condições da democracia burguesa já é possível ter conquistas, mas que não tem como ser vitorioso sem apontar para um processo de ruptura. Mesmo para arrancar essas vitórias imediatas e sobretudo para uma ruptura, só pode ser realizado de forma concomitante à construção do poder popular. Não é buscando maioria parlamentar, é buscando a maioria da população organizada politicamente.

Revista Opera: Uma outra área onde esse processo de privatização tem avançado, especialmente com as Parcerias Público-Privadas, é a habitação. Só na região metropolitana do Estado, se pegarmos preço dos aluguéis, quantidade de domicílios precários, coabitação e adensamento excessivo, temos um déficit de moradia de mais de um milhão de moradias. Como um governo comunista lidaria com isso no Estado, partindo do pressuposto de que o que houve aqui neste sentido ficou muito dependente do Minha Casa, Minha Vida – que está praticamente paralisado para moradia popular? E um outro aspecto: como o Estado lida com as ocupações que eventualmente ocorrem. Talvez aqui o símbolo maior disso seja o Massacre do Pinheirinho. Como você, se eleito governador, lidaria com essa questão, tendo em vista que quem manda desapropriar é o Judiciário? Ou seja, teria aí um certo conflito entre poderes…

Gabriel Colombo: Conflito com Poder do Estado burguês é o que a gente mais quer, e estando no governo para fazer isso, nos dá força. Tenho brincado que eu seria como o [Eduardo] Suplicy (PT), e acho que todo governador de esquerda tem que assumir esse compromisso; quando ele era vereador em São Paulo, Haddad era prefeito, e em uma área da prefeitura o Alckmin autorizou que a polícia fizesse uma reintegração de posse. O Suplicy foi lá e se deitou no chão, teve que sair carregado pela polícia. Isso é um peso político que se faz, e demonstra que mesmo estando cumprindo cargos e papéis dentro do Estado, nossa preocupação é com destruir este Estado burguês, não mantê-lo.

Os despejos são operações de guerra. O Pinheirinho foi um dos mais brutais, mais violentos e maiores em termos de população na América Latina. Eu acompanhei, estive dentro de um despejo aqui em Piracicaba, em maio de 2020, nma escala muito menor: ali devia ter 100-150 pessoas. E já foi uma operação de guerra: [Batalhão de] Choque, BAEP (Batalhão de Ações Especiais de Polícia) – que foi criado inclusive depois do Massacre do Pinheirinho, e é especializado em reintegrações de posse, repressão de greves e manifestações e operações em favelas, ou seja, escancara o papel da Polícia Militar. Nesta operação houve apoio do helicóptero Águia, Tropa de Choque, cachorros, os policiais com todos os equipamentos possíveis; escudos, aquela roupa de Robocop, etc. E usaram, dentro dessa ocupação, aquela tática do Caldeirão de Hamburgo, tática que ficou conhecida, em que fecham todos os lados, não dando alternativa para quem está no meio. E ali havia crianças, idosos, duas ou três mulheres mais velhas desmaiaram. Isso tudo pela manhã. É inadmissível, e ter figuras públicas nestes despejos é fundamental para ao menos reduzir e constranger – não quer dizer que vai acabar com essa violência, mas vai constranger.

Sobretudo no capitalismo dependente, não só no Brasil, há uma tendência do número de ocupações e favelas só crescerem. O índice que eu já citei, do PNAD: no Estado de São Paulo, metade das pessoas ocupadas recebem até 1.800 reais. É menos que um salário mínimo e meio. Não dá para pagar aluguel, comer, e pagar as contas com isso. 90% da população brasileira recebe até três salários mínimos. Se você ganha 3.700 reais, você já está na faixa dos 10% mais ricos – parece muito, não é? Mas a diferença entre você e o cara que é milionário é gigantesca; em termos de população você está perto dele, mas de riqueza está muito longe, está muito mais próximo daquele que ganha um salário mínimo ou um salário mínimo e meio. Ou seja, uma desigualdade social gritante, e sem contar que a rotatividade do trabalho no Brasil é muito alta, e quem está na informalidade nem sempre consegue ter uma garantia de renda mês a mês. Então conseguir pagar o aluguel é algo que não é uma garantia para todos, e temos de ter noção da profundidade disso.

Não é muito claro, na cabeça do senso comum, mas quem está na ocupação são trabalhadores e trabalhadoras. Porque se o cara tem dois filhos e recebe 3 mil reais, o salário já não aguenta pagar aluguel, comprar comida e pagar tudo. E muitas vezes ele vai para a ocupação. Quem está lá, na ocupação, é quem aceitou por um momento viver debaixo de um barraco, em geral com a família, porque não tem outra condição. O Estado não pode chegar lá e falar: “não, aqui você não pode ficar”. E se chegar pra falar isso, em casos por exemplo das chuvas, de terrenos irregulares, muito íngremes, próximos aos rios, o Estado tem que chegar e garantir moradia em outra área, sem risco. Mas despejar violentamente e sem dar alternativa? É um absurdo. É um absurdo despejar violentamente e é absurdo despejar sem dar alternativa. Não pode acontecer.

Qualquer pessoa de esquerda, ocupando um cargo público ou não, tem que estar do lado de quem está ocupando. Não tem nem o que pensar. É um direito fundamental, que é o direito à moradia, que nós temos que defender. E desenvolver inclusive mais o trabalho das ocupações. Então essa questão: como enfrentar, estando no cargo? Vamos enfrentar, pô, não tem problema nenhum. Ali está um setor muito importante dos trabalhadores.

Quanto à produção de moradia, o enfrentamento ao déficit de moradia. No Estado de São Paulo todo são 1,8 milhão de pessoas ou famílias em situação de déficit habitacional. Que muitas vezes entendemos que o déficit é só aquela pessoa que está em situação de rua. Não! Todo mundo convive com muita gente que está em situação de déficit habitacional, que compromete uma parte expressiva do salário com o pagamento de aluguel. O superadensamento também é comum; nesse contexto de pandemia, com um período prolongado de desemprego elevado, acima de 10 milhões de pessoas, o superadensamento cresceu muito. O que acontece? O cara não consegue pagar aluguel. Então vai pra casa dos pais. Acontece a mesma coisa com o irmão dele, ou às vezes até com os próprios pais – e eles vão pra casa do avô, da tia, até chegar a quem realmente tem a casa própria ou até chegar numa situação em que, juntando muitos, dá para pagar o aluguel mensalmente. E isso vai levando para que haja 10, 15 pessoas numa casa com dois, três quartos, e um banheiro. Essa situação tem sido muito comum.

E, ao mesmo tempo, a frase que já é conhecida: tanta gente sem casa, tanta casa sem gente. Assim como falamos na agricultura, a produção de moradias atende mais à produção de valor de troca do que à produção do que seria seu objetivo social, ou seja, ser um teto para alguém. Há no centro de São Paulo, há aqui em Piracicaba, muitos vazios urbanos. Áreas ou prédios que estão esperando para que se especule; estão esperando que valorize para fazer um loteamento, ou mesmo fazer um prédio, e nesse ínterim esses proprietários nem pagam IPTU, ficam acumulando dívidas. É necessário enfrentar isso, fazer, a partir do governo do Estado, uma exigência de que todas as prefeituras implementem o IPTU progressivo, e que realizem a desapropriação das áreas ociosas. Porque se há dívida no IPTU, muitas vezes não é preciso nem pagar para desapropriar, só assume. É exigir e confiscar, e destinar para habitação.

Mas há um outro problema, que é a lógica de produção de habitação tendo como fim o lucro e a valorização da renda da terra. Que passa por um circuito de atender os interesses das empreiteiras e da construção civil enquanto indústria. Tem que desvincular a moradia deste circuito, criar uma lógica de controle de preço dos aluguéis, porque o que permite também que a especulação imobiliária avance é que uma determinada área, valorizada porque passou a ter um Metrô, um equipamento público, um parque, o cara, numa situação de precariedade e instabilidade de emprego, pense a vender essa casa, que passou a valer mais, e vai mais para a periferia. Então sem mudar a lógica de especulação imobiliária é impossível enfrentar o problema da moradia..

Em Piracicaba nós temos um exemplo, de uma prefeitura do PT – para não me chamarem de antipetista, quando eles fazem as coisas certas nós valorizamos – que é a EMDHAP (Empresa Municipal de Desenvolvimento Habitacional de Piracicaba). Foi criada na prefeitura do José Machado, nos anos 90, não tinha nenhum programa nacional de financiamento da habitação. E o que ela fazia? Era o corpo técnico de engenheiros civis e arquitetos que projetavam a urbanização e a política habitacional do município. Ela também era responsável por produzir materiais de construção recicláveis, a partir do material de demolição de obras. Então conseguiam produzir aqueles blocões de cimento para as moradias. Veja: faziam o recurso, baixando o custo para o material de construção, e forneciam o corpo técnico. O trabalho de construção, como a classe trabalhadora estava organizada, era por meio do processo de mutirões, responsabilidade dos próprios moradores. E isso fez com que parte expressiva dos bairros de Piracicaba fossem resultado de ocupações urbanas, e que adquirissem uma urbanização planejada e moradias planejadas. É claro que depois, com a intensificação do processo neoliberal, vão aparecendo os puxadinhos, as condições de vida precárias, mas demonstra que, a partir do Estado, é muito tranquilo fazer muitas coisas. Há recursos, há muita disponibilidade de força de trabalho, e há muito corpo técnico; nunca formamos tantos engenheiros, arquitetos, inclusive mestres e doutores, que estão desempregados, sem nenhuma função, e que têm de ser chamados para participar desse processo revolucionário de construção de um País para a classe trabalhadora.

Revista Opera: Entrando um pouco no tema da segurança pública. Nós temos no Estado, por um lado, uma Polícia Militar que historicamente é reconhecida pela sua truculência – com a participação em uma série de chacinas e massacres, desde o Carandiru, passando pelos Crimes de Maio, até as chacinas da Grande São Paulo em 2015 – e que, apesar da queda recente da letalidade por conta das câmeras, ainda mata muito, e no geral é vista com muita desconfiança pelas classes populares, especialmente pela juventude. Por outro lado, temos, especialmente nos últimos anos, um número crescente de crimes como roubos, furtos e homicídios, especialmente na Região Metropolitana do Estado. Qual é seu programa para a questão da segurança pública, tendo em vista essas duas coisas? E uma outra questão: há uma discussão sobre o quanto o governador tem de controle sobre a tropa da PM, com muitos argumentando que não há controle nenhum, que a PM funciona quase que de forma autônoma. O que na sua visão deveria ser feito em relação à redução da violência policial? E como você planejaria impor eventuais mudanças, considerando o poder que essa corporação tem?

Gabriel Colombo: Bom, esse é um dos temas que mais nos tira voto, digamos assim [risos]. Mas nós temos que começar a pavimentar esse debate novamente. Acho que foi outra coisa que ficou naturalizada para a esquerda; a esquerda que defendeu e implementou as UPPs, por exemplo. Não pautam o problema da violência policial. No Estado da Bahia, com Rui Costa (PT), é onde há uma das maiores taxas de violência policial, um governador que, na Chacina do Cabula, que teve doze mortos, falou que o policial é igual um artilheiro na linha do gol, ou seja, matar pro cara é como fazer um gol. Afirmações absurdas, e no Estado de São Paulo nem se fala – o Dória, no “bolsodória”, falou que bandido não vai pra cadeia, vai pro cemitério; coisas absurdas.

Então acho que temos de retomar esse debate sobre a Polícia Militar. E aí o que defendemos é, de fato, o fim da Polícia Militar. Dá para fazer isso numa gestão? Não dá. É tarefa de um processo revolucionário, sem dúvida. Mas dá para irmos desmilitarizando a segurança pública. Porque tudo em termos de segurança pública nesse período neoliberal foi respondido com militarização. Inclusive sem ter qualquer tipo de preocupação de entender quais tipos de violência ocorrem na sociedade e como nós enfrentamos cada uma. Se perguntarmos, por exemplo, qual é o papel da Polícia Militar no combate à violência contra a população LGBT, sobretudo com as pessoas trans, é de se imaginar que essas pessoas não vão sentir muita segurança do lado da Polícia Militar. Qual o papel da Polícia Militar no enfrentamento ao racismo? O papel é na promoção do racismo, porque a letalidade policial está onde? Na juventude negra e periférica. Até no que ela promove, na política de encarceramento em massa, o principal grupo encarcerado, privado de liberdade no País, é a juventude negra.

Então não dá para pensar como resposta, em termos de segurança pública, em segurança da vida, na militarização. A militarização é uma resposta para a defesa da propriedade privada, para a defesa das classes dominantes. Não é uma resposta para a segurança da vida e da maioria da população. Basta pensarmos: a Polícia Militar está mais equipada, mais treinada, tem mais armas. A população está se sentindo mais segura? Não sente. Inclusive temos um aumento dos assaltos, dos roubos, que apontam para outro elemento: que uma das formas principais de enfrentamento à violência e garantia à segurança pública é o enfrentamento à desigualdade social. Os pequenos furtos e roubos seriam, grande parte deles, resolvidos aí. E mesmo na lógica de quem não está preocupado em resolver a desigualdade social, quando vai enfrentar o roubo de celular, por exemplo, faz a lógica mais burra que existe: coloca a polícia na rua, o que não resolve nada. Tenho sempre usado o exemplo do celular; quando tive o meu roubado em São Paulo, falaram: “se formos na rua Santa Efigênia amanhã é provável que a gente compre seu celular de volta, os caras podem não ter desmontado ainda”. Porque há um circuito, que é conhecido: o celular vai ser revendido, ou desmontado, para as peças serem reutilizadas no mercado paralelo. Então tem que enfrentar o circuito. Primeiro, não tem que existir a figura da pessoa que precisa roubar o celular – seja para consumir drogas, seja por necessidades econômicas, de ter acesso ao básico, que sabemos que está ocorrendo muito, pelos preços, pela inflação dos alimentos. Isso não vai ser enfrentado pela lógica da militarização.

O poder da Polícia Militar acho que é evidente até no debate. Todos os pré-candidatos ao governo fazem questão de falar do valor da Polícia Militar, o Haddad fala em plano de carreira vinculado a metas – me pergunto que meta é essa; vai ser quantos mata? Quantos encarcera? Ele fala de resolução de crime; mas que crime? Não esclarece, o que me deixa muito preocupado, para um partido que já apoiou as UPPs e que tem Rui Costa, o que isso pode significar aqui no Estado de São Paulo. Então, de fato, é algo que tem peso, que tem força, é um grande contingente de 80 mil policiais atualmente. Mas acho que há de ser feito esse trabalho da desmilitarização.

Agora, o outro lado, em termos de governo: é óbvio que vai ter reações. Nós vimos isso no Ceará, em que os policiais se insurgiram, houve aquele episódio com o Cid Gomes, e a possibilidade disso acontecer é real. Mas é isso: todos os governos fazem sempre o que? Injetam recursos na Polícia, pensam na militarização como resposta. É preciso ir mudando essa dinâmica: não investir mais, não abrir mais concurso para polícia. Vamos abrir para professor, que está desde 2013 sem concurso no Estado de São Paulo. Ir criando lógicas de enfraquecimento dessa dinâmica [de militarização]. Fazer um debate público, a mobilização em defesa das lutas contra o racismo, acabar com a política de encarceramento em massa. 80% da população carcerária do Estado de São Paulo é presa por porte de drogas – alguns enquadrados como tráfico, outros não – e por furto. Não são atentados contra a vida. Essas pessoas não têm que estar presas. Então é necessário fazer um debate para mudar essa legislação, e fazer uma política de desencarceramento: mutirões jurídicos que vão permitir que as pessoas saiam da prisão. Não dá para naturalizar termos 200 mil pessoas presas no Estado de São Paulo.

E há a questão das condições carcerárias. Fui o único pré-candidato que esteve numa manifestação que houve em fevereiro, por melhores condições carcerárias, em várias cidades do Estado. Fui no ato aqui de Hortolândia, e são questões que foram anunciadas na mídia, relatórios da Defensoria Pública, organizações de direitos humanos: na pandemia, nos presídios houve pena de fome, foram proibidas as visitas, racionamento de água – não por faltar água, mas como pena, para constranger e controlar a população carcerária. Essa questão das visitas, me emocionei ao ver lá em Hortolândia várias crianças da idade do meu filho que falavam: “estou há dois anos sem ver meu pai”. E a questão da alimentação, além da pena de fome – que consistia em deixar a população carcerária de 12 a 20 horas sem comer, segundo o levantamento que as organizações tinham – é muita comida estragada; 20% dos presídios que foram visitados pela Defensoria Pública não serviam proteína alguma. Pô, o cara está encarcerado, não é para ele ser tratado em condições subumanas. Mesmo dentro da lógica punitivista, a ideia é que o cerceamento da liberdade criaria as condições de ressocialização. As prisões no Brasil hoje não cumprem esse papel. 

Ou seja, recapitulando: é necessário enxugar a polícia, fazer desmilitarização, acabar com a política de encarceramento em massa e fazer uma política de desencarcerar, e um outro ponto, que é a questão da legalização das drogas. A guerra às drogas é um grande justificador social – somado aos programas que incentivam a violência policial, do tipo Datena, Marcelo Rezende – que vai garantir uma adesão social à naturalização da violência contra a classe trabalhadora, como o que vão enquadrar socialmente como “bandidos”. A guerra às drogas cria a figura do traficante, dos caras super armados, que quando você vai ver não é quem vai preso. O verdadeiro tráfico de armas não é enfrentado – houve agora o caso de um CAC (Caçador, Atirador e Colecionador) que adquiria vários fuzis e estava vendendo para o tráfico do Rio; teve também o caso do Vivendas da Barra, do vizinho do Jair Bolsonaro. E o verdadeiro tráfico de drogas também não é combatido – nos helicópteros, como aquele em Minas Gerais, nos aviões da FAB, nos portos. E, por fim, é necessário reforçar, e muito, o controle sobre a polícia, incentivando e investindo na organização da população para denúncias, para criar uma corregedoria da polícia que não seja da própria polícia, que seja popular e acompanhada por ativistas, militantes dos direitos humanos. Porque é absurdo: não vai ser aceitável, vai ser caso de demissão, quem entrar numa casa na periferia sem ordem judicial. Quem enquadrar alguém para fazer constrangimento. Então tem que ter canais de denúncia para que isso ocorra – é uma forma de enfrentar a corporação.

E acho que, neste tema, é necessário falar do equívoco que é chamar Alckmin (PSB) para ser chamado de companheiro. Porque ele foi um dos grandes responsáveis em São Paulo pela política do encarceramento em massa, pelo aumento da violência policial, do aumento do número de homicídios praticados por policiais. O Mário Covas (PSDB), quando assume em 1995 – o Alckmin era o vice –, eles assumiam com o legado do Massacre do Carandiru. Então tinham que impor uma série de medidas de controle das tropas. Recomendo acompanharem o Ponte Jornalismo, que faz uma descrição de como o Alckmin, a partir de quando ele assume, em 2001, retira vários desses mecanismos. É a primeira vez em que São Paulo chega ao número de 900 pessoas mortas, nos primeiros três anos após essas medidas tomadas pelo Alckmin. Ele foi responsável por isso, além do Massacre do Pinheirinho, por ter na sua conta diversas chacinas, e por ser o criador do BAEP. Então é alguém que fez, e fez muito, para matar os nossos, para torturar os nossos, para prender os nossos; não dá para ser chamado de companheiro e ser colocado de democrata. 

Revista Opera: Por fim, pegando as demandas e os temas mais importantes para a população hoje, a questão da educação. Historicamente no Estado a educação enfrenta, digamos, um esvaziamento, e a coisa tem piorado muito na última década, e especialmente nos últimos 4-8 anos o ataque à escola pública foi muito forte. E há inclusive alguns estudiosos que, olhando para o que foi feito em termos de privatização no resto do Estado, olhando às Parcerias Público-Privadas e a questão das Organizações Sociais, acham que o próximo alvo, o próximo foco de privatização, vai ser a educação. Como você vê o sucateamento da educação estadual, e o que você proporia, quebrando com essa lógica de privatização?

Gabriel Colombo: Dentro da lógica das privatizações, sucatear é sempre o passo que antecede. E no caso dos serviços públicos em que nós temos uma classe trabalhadora muito pobre, muito explorada, nem todos podem pagar pela educação privada – então você mantém o serviço público de má qualidade para forçar essa demanda, de colocar o filho numa escola particular. Assim como é com a questão do plano de saúde. Isso fecha muito bem nessa lógica de não privatizar totalmente, mas criar diversas formas de privatização, sucateando sempre o público para que o sonho, o desejo, a alternativa que o conjunto da sociedade vai buscar é o privado. E quem ficar na pública é só quem não conseguir pagar. O meu filho está na escola pública – eu não teria condição de pagar, mas é também por uma questão ideológica, de disputar, entender e lutar pela educação pública.

Diversas formas de privatização foram sendo impostas. Hoje o material escolar, com o Plano Nacional do Livro Didático, que é o que fundamenta a distribuição, a intermediação com as prefeituras e também nos Estados, é feito na base da Parceria Público-Privada. Quem está fornecendo material, estes grandes conglomerados da educação, todos eles têm editora. E o conteúdo tem se tornado cada vez mais apostilado, cada vez mais mastigado, ao ponto da figura do professor se tornar inclusive complementar: o que dita o conteúdo e a aula é a apostila, não o professor, com base em um apoio de material didático. Isso leva a um ponto – vale abrir um parêntesis – que é que cada vez mais se pode precarizar a formação desses professores, porque a lógica é que nem querem um professor muito pensante, crítico, criativo. Primeiro, ele não deve ter tempo pra isso: querem que ele vá lá e dê o máximo de aula que puder, para explorarem ele, pagarem o menos que puderem. Segundo, querem que ele siga o conteúdo fechadinho: não querem correr o risco de algum professor formando uns revolucionários por aí nas escolas, sobretudo nas periferias do Brasil.

Outro ponto é a terceirização, como predominou em vários setores, da alimentação e da limpeza. Eu publiquei recentemente nas redes sociais uma denúncia dos camaradas de São José do Rio Preto, que está valendo para todo o Estado, que é a terceirização da merenda. Que as merendeiras que trabalham oito horas estão sendo contratadas a 1.300 reais. E as escolas com cerca de 300 alunos têm só uma merendeira. E quando tem mais, é uma e meia: uma e meia por que? Porque contratam outra metade do período. Há um contrato que é de 4 horas diárias, e ela recebe 600 reais, e outro que é de 3 horas diárias, recebendo 400 reais. E o horário da merenda inviabiliza para essa merendeira trabalhar em outro lugar, porque ela vai trabalhar no horário do almoço, que encavala em outro período e ela não consegue acumular outros trabalhos. Veja: isso é regularizar trabalhos que recebem menos de um salário mínimo. Essa que é a verdade. E a merenda na escola sempre cumpriu um papel de enfrentamento à fome no nosso País.

E do ponto de vista do professor também um processo de precarização gritante. Desde 2013 não tem concurso público! Isso em casa tem um impacto direto grande, porque meu filho nasceu em 2013, e a minha companheira é bióloga e ia fazer a prova. Mas a prova foi às vésperas do meu filho nascer, então ela não conseguiu fazer a prova – na época falamos “tudo bem, ano que vem, no máximo em dois anos, abre o concurso de novo e você faz”. Até hoje não teve outro concurso público: foi se expandindo a lógica da categoria O.

Revista Opera: Chegou-se a um nível em que muitas vezes o cara se forma para ser professor, mas a precarização é tão forte que ele acaba indo atuar em outra área, a ponto de agora o Estado estar querendo permitir que professores de outras áreas dêem aulas de Geografia e História – além do governador Rodrigo Garcia (PSDB) declarando, frente ao fato de 20% das aulas não terem ocorrido por falta de professores, que “temos que ver pelo lado bom, que são as 80% de aulas que aconteceram”.

Gabriel Colombo: É um absurdo, e se torna aceitável falar absurdos. E de fato, agora entra também a lógica do “notório saber” no Ensino Médio, que está começando a ser implementada em alguns lugares. Que antes se pensava que poderia ser algo que caminharia junto do Escola Sem Partido, ou seja, abrir espaço para a extrema-direita dentro da sala de aula, mas que na prática, hoje, tem cumprido um papel de cobrir um déficit de contratações.

E a reforma do Ensino Médio tem como consequência um programa de ensino integral. E o professor de categoria O fica preso em uma escola, e se não há o professor de uma determinada disciplina ou ele falta não é possível chamar, fazer aqueles contratações de professores avulsos. Então vai alguém de outra área; é muito comum um professor de Física dar aula de História, por exemplo. Tem acontecido cada vez mais, o que para a qualidade do ensino é terrível.

Agora, com o Projeto de Lei Complementar 3 de 2022 do Dória, há outros elementos que mudam a situação do professor da categoria O. A questão da aula dia, por exemplo: você dá cinco aulas em um dia, mas se falta em uma delas, a primeira ou a última, porque morreu alguém da sua família ou o que quer que seja, o professor perde todo o dia de pagamento. Se ele não chega a tempo da primeira aula, ele pode até dar as outras quatro, mas perde o dia de pagamento. E outro elemento na saúde: restringe a um só dia de afastamento por saúde e uma hora para consulta médica. Quem consegue fazer consulta médica em uma hora? Mesmo se o postinho for do lado da sua casa. Isso levou agora, nesta quarta onda de Covid, a que muitos professores fossem trabalhar contaminados, com Covid. Porque não poderiam perder o pagamento de cinco dias ou de quatro dias, se tivessem ainda o direito de afastamento de um dia. Isso foi denunciado, mas não ganha espaço na imprensa. É um absurdo um negócio desses! 

Isso na educação básica; então é necessária uma reabertura dos concursos públicos, assumir publicamente a produção de materiais didáticos – isso tem de ser feito junto das universidades; tem que ser parte do papel de formação das escolas de Letras, Educação, produzirem os materiais didáticos. Por outro lado, comentei sobre o papel da alimentação escolar no combate à fome, a importância da contratação da merendeira. A merendeira é inclusive uma figura de lembrança carinhosa da nossa infância. Até isso perde o papel, porque agora é uma terceirizada. Provavelmente numa mesma semana não vai ser nem a mesma merendeira, no ano certamente não vai ser a mesma. Até esse vínculo afetivo foi destruído. E é necessário atuar pela revogação da reforma do Ensino Médio. Porque além das questões de conteúdo, de esvaziamento da parte de humanas – Geografia, Sociais, etc., – tem o elemento de impôr na escola, e muito, uma lógica de ideologia empreendedora, a ideia do “projeto de vida”, que acabam por responsabilizar a juventude pela situação de desemprego e de baixa condição de vida em que se encontra. Esse é um projeto criminoso, é um absurdo, inaceitável. Com o Ensino Médio organizado com essa reforma, se criam os “itinerários interativos”; você vai ter o itinerário em Ciências, o itinerário de Letras, etc., e junto com esses há os “itinerários profissionalizantes”. E o aluno pode substituir, por exemplo, o itinerário de ciências por um itinerário profissionalizante – o estudante não vai ter acesso ao conteúdo básico, que é inclusive requerido no ENEM, para substituir por alguma coisa para ele supostamente se formar profissionalmente. Mas nesse itinerário profissionalizante há desde cursos básicos de mídias sociais, curso básico de Excel, até coisas de estética; cabeleireiro, pedicure, etc. Mas tem coisas absurdas, alguns camaradas estavam denunciando itinerários profissionalizantes para o estudante fazer bolo de pote. Ou seja, se vai naturalizando a divisão social do trabalho, é dizer “você não precisa nem estudar, meu amigo, universidade não é para você. Você precisa é se profissionalizar logo nisso aqui para contribuir com a renda da sua família”.

Revista Opera: A própria escola.

Gabriel Colombo: Exatamente, a própria escola afirmando isso. Isso é cruel. A escola afirmando isso, em um momento de desemprego altíssimo, os salários desvalorizados. Para a família do jovem, ou para ele mesmo, ele pensa “poxa, é a maneira de eu ganhar meu dinheirinho, minimamente ir num rolê, ajudar minha mãe a comprar um gás, comprar a cesta que ela não está conseguindo”. É cruel porque no imediato tem tido adesão da própria juventude. Porque o conteúdo é sucateado, não têm o mesmo professor o ano todo, em algumas matérias até falta o professor, a apostila lida com ele como se ele fosse um burro, o conteúdo rebaixado, não atrai ninguém – esses projetos acabam tendo adesão do estudante. Parece que ninguém liga para a escola: o estudante vai, a merenda é ruim, os prédios estão depredados, a bola que ele vai jogar futebol está toda surrupiada. Se ninguém liga, para quê o estudante vai ligar? Se ele sabe que vai se formar e a possibilidade de ter um emprego por ter se formado é baixíssima? Que o que importa é só mais ou menos saber ler e escrever e, agora, saber mexer em redes sociais? Então é cruel.

A reforma do Ensino Médio foi implementada pelo Temer, o ministro da Educação era o Rossieli Soares, que é o atual secretário da Educação – era do Dória, agora se mantém com o Rodrigo Garcia. E a reforma do Ensino Médio veio pouco depois da tentativa de reorganização do Alckmin aqui no Estado. Não dá para falar em educação no Estado de São Paulo sem falar no papel importantíssimo da luta dos secundaristas no final de 2015, que em uma semana explodiu em 200 ocupações de escolas em São Paulo. Foi algo que mobilizou o conjunto da sociedade, fez com que o Alckmin revisse a política, demitisse o secretário estadual de educação – mas também levou isso para o plano nacional. Eles pensaram lá em cima, digamos assim: “precisamos fazer alguma coisa, porque a juventude vem forte”. A reforma do Ensino Médio tem essa base; em 2016, quando foi aprovada, também houve ocupações de escolas, mas não com a mesma força e capacidade – já tinha vindo o golpe, já tinha outra conjuntura que jogou para baixo o movimento e não permitiu uma vitória ali. 

É importante relembrar também que, antes da tentativa de reorganização do Alckmin, houve a maior greve dos professores da rede estadual, que foi a greve de 90 dias em 2015. Que não conseguiu ser vitoriosa, mas deu muito gás para a ocupação secundarista, que veio logo a seguir. Isso reforçou a necessidade deles não abrirem concursos, e reforça a necessidade desses impeditivos para a categoria O – a questão do aula-dia, por exemplo, para o cara não faltar e ir participar de uma mobilização, de uma greve. Se ele falta alguns dias, vai perdendo bônus e uma série de coisas. Então desestimula o professor a participar da organização da sua categoria, desidratando o sindicato.

Esta é a lógica dessas reformas e do Programa Ensino Integral (PEI). Há até uma polêmica, perguntam: “então vocês defendem o ensino integral?” Sim, nós defendemos, mas no modelo do que foram os CIEPS do Brizola, no Rio, não esse PEI, que hoje é inclusive uma promotora da invasão escolar. No Estado, mais da metade dos municípios têm só uma escola estadual. Se a escola desses municípios adota o PEI, o estudante que trabalha em algum período não têm alternativa: não vai conseguir trabalhar mais, ou vai ter de deixar a escola e trabalhar. Então é necessário dar força à luta pela revogação da reforma do Ensino Médio. E é bom lembrar que essa reforma foi uma pauta do “Todos pela Educação”, que é um absurdo. Quando falaram do balcão de negócios dos pastores no Ministério da Educação o que pensei é que ninguém fala que o Ministério da Educação é balcão de negócios há muito tempo – inclusive com o Haddad – dos setores privados da educação. Não só os conglomerados de faculdade, mas também o Todos pela Educação, Fundação Lehmann, Instituto Ayrton Senna, Fundação do Bradesco, do Itaú. Foram estes os que ditaram esses itinerários profissionalizantes, disseram: “meu amigo, o que a gente precisa é só Português, Matemática, redes sociais, saber planilhar algumas coisas e saber atender bem no telefone. É isso que precisamos para explorar essa juventude”. Em um mercado precário, flexível. Um absurdo, um escândalo.

E, por fim, precisamos pensar também no ensino superior. As universidades estaduais paulistas estão muito sucateadas, é preciso ter um processo de reinvestimento. Há menos professores hoje nas três estaduais paulistas do que tinha em 1995, ao mesmo tempo que houve uma expansão das vagas: uma expressão clara do sucateamento. As universidades estão colocadas e subordinadas aos interesses privados, com muito poucos projetos que pensem as nossas demandas em termos de sociedade, da classe trabalhadora. E precisamos acabar com o vestibular. É algo que temos batido na tecla: vestibular é uma coisa bizarra, é o sintoma da falta de vagas na universidade pública no País. E nos debates tenho enfatizado, porque me perguntam: “mas o vestibular não é questão de medir conhecimento?”. Não, não é questão de medir conhecimento. É uma lógica concorrencial, há uma nota de corte, e para o estudante ir para a segunda fase vai depender do quanto os outros estudantes tiraram. É o funil para adequar a demanda de universidade pública ao número de vagas que existem. E para expandir as vagas é preciso contratar professor, contratar profissional técnico-administrativo, mas sobretudo uma transformação radical na sociedade que dê conta de encontrar um papel social e econômico para as pessoas que saem formadas depois. Porque hoje a universidade cumpre muito um papel de retardar a entrada do jovem no desemprego. É aquela brincadeira: “saí da estatística universitária para entrar na estatística do desemprego”. Era isso que se falava na época em que me formei, e isso é muito real; tão real que engloba inclusive a pós-graduação, entre mestre e doutores há mais de 25% de desempregados no País. É preciso que tenha vagas, é inadmissível que a única alternativa que sobre para um professor, ou um doutor em engenharia da produção, seja trabalhar para a Uber. É um desperdício social e humanitário absurdo, e para combater isso a universidade tem de caminhar junto a uma perspectiva de desenvolvimento.

Agora, não é possível dar esse caráter para a universidade, para a educação pública estadual, e mesmo pensar em uma universalização do acesso à creche integral, não é possível pensar nada disso fora de um processo revolucionário. A nossa burguesia não tem nenhum interesse em, digamos, aproveitar bem o material humano que há na nossa sociedade. O vínculo dela é só garantir uma exploração e uma superexploração da força de trabalho, e passam longe de uma perspectiva de reindustrialização e desenvolvimento do Brasil enquanto um país soberano em que as necessidades da maioria da população sejam atendidas. É muito fácil entender, por exemplo, que o vestibular é só um funil. Mas na prática isso demanda um enfrentamento àqueles que impõem esse funil, que é a burguesia brasileira. Então todas essas propostas não são nada se não tivermos uma perspectiva de poder político, de tomada de poder pela classe trabalhadora e construção do poder popular e da revolução brasileira.

*Esta é a primeira de uma série de entrevistas realizadas pela Revista Opera com pré-candidatos nas eleições de 2022. Clique aqui para acompanhar as entrevistas.

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Ratzel e o embrião da geopolítica: os anos iniciais
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