O conceito de “economia bimonetária” foi usado pela primeira vez pela ex-presidenta e atual vice Cristina Fernández de Kirchner no dia 27 de dezembro de 2017, durante uma sessão na Câmara de Senadores da Nação, e descrita como um dos principais problemas estruturais da Argentina. Daí em diante, ela repetiu o conceito em quase todas as aparições públicas que fez, com o propósito de ordenar as infinitas discussões conjunturais que aparecem e desaparecem (veja a nota final complementar para mais detalhes destas menções).
É impossível abordar rigorosamente os problemas do dia-a-dia da economia argentina, como salários, inflação, tipo de câmbio, escassez de divisas, taxa de juros, dívida interna e externa e estrutura produtiva desequilibrada sem entender que o país vive há muito tempo um fenômeno estrutural como o do bimonetarismo.
Neste texto não pretendemos explicar como a economia bimonetária afeta o restante das variáveis micro e macroeconômicas. Tampouco vamos rever quais são os motivos que nos levaram a esse traço característico. Esses serão eixos que trataremos em trabalhos futuros.
Neste documento vamos nos limitar a apresentar alguns dados irrefutáveis que mostram que na Argentina uma moeda nacional e outra moeda internacional coexistem, com uma presença muito forte em múltiplas dimensões. Simplificando, aqui estão alguns números que falam por si sobre por que devemos supor que a economia argentina é bimonetária:
1 – Em 2022, o estoque de poupança dos argentinos fora do sistema local, quase todos guardados no “Colchão Bank” (ou seja, em casa), somava 258.077 milhões de dólares. O montante equivale a mais de 5 mil dólares por habitante; a mais da metade do PIB ou ao investimento de toda a economia de dois anos e meio.
2 – 70% da dívida pública são compromissos dolarizados; no Brasil, apenas 12% da dívida pública é exterior.
3 – No mercado imobiliário, os preços são divulgados em dólares, e as transações também são feitas em dólares.
3.1 – Praticamente todos os imóveis divulgados no Mercado Livre, principal plataforma do tipo no país, são oferecidos em dólares. A Direção Geral de Estatísticas e Censos da Cidade de Buenos Aires (Ministério da Fazenda e Finanças GCBA) mostra o preço médio por m2 dos apartamentos oferecidos na cidade com base no preço em dólares publicado pelo site de oferta de imóveis Argenprop.
3.2 – Até o mercado de aluguéis de imóveis está dolarizado, especialmente para os de maior valor. Cerca de 70% dos imóveis para aluguel mais caros do mercado são oferecidos em dólares na plataforma do Mercado Livre, contra 5% no caso dos imóveis mais baratos.
3.3 – Por exemplo, diferentemente de outros grandes países da região, como México, Brasil, Colômbia, Peru, Uruguai e Chile, a plataforma de aluguéis de imóveis turísticos Airbnb publica os preços em dólares, inclusive para os argentinos que alugam no país.
4 – A Argentina é o país latino-americano que apresenta a maior diferença entre o dólar oficial e o dólar paralelo, mais de 110% no final de junho.
5 – Grande parte dos veículos também são comercializados em dólares, independentemente de seu valor. Cerca de 18% dos 2 mil carros mais caros vendidos na plataforma Mercado Livre são oferecidos diretamente em dólares, e cerca de 19% dos 2 mil carros mais baratos também.
6 – A Argentina é o único país latino-americano credor líquido do resto do mundo e um dos três países em desenvolvimento não petrolíferos que tem mais ativos no exterior do que dívidas no exterior. Em 2020, os ativos dos argentinos no exterior superavam as dívidas com o exterior em cerca de 120 bilhões de dólares.
6.1 – No planeta há 105 países que são devedores líquidos e 35 que são credores líquidos; entre estes, a Argentina ocupa a 16ª posição.
6.2 – Argentina, África do Sul e Tailândia são os únicos países em desenvolvimento não-petrolíferos que são credores líquidos do resto do mundo. À diferença destes, na Argentina o maior credor externo não é o Estado, com suas reservas internacionais, e sim o setor privado.
7 – O Federal Reserve (sistema de bancos centrais) dos EUA estimava em 2006 que a Argentina liderava o ranking mundial de posse de dólares em notas de papel por habitante; na realidade, calculava cerca de 4,5 mil dólares em cédulas por argentino, valor superior ao dos próprios Estados Unidos, onde em média cada habitante tem 3 mil dólares em cédulas. A instituição também estimava que a Argentina era o segundo país estrangeiro com maior quantidade de dólares em cédulas em seu poder, atrás da Rússia (que ocupava o primeiro lugar) e no mesmo nível da China, com quem compartilhava o segundo. Estimava ainda que a posse de dólares na Argentina era 50 vezes a do Brasil e do Equador, e dez vezes a do México e Peru. Atualmente se estima que os argentinos possuam cerca de 10% de todas as cédulas de dólar circulando fora dos EUA.
8 – Em um ano normal, entre 3 e 4 milhões de cidadãos argentinos adquirem dólares no mercado formal. Em anos de corridas cambiais e especulativas, como foi 2019, a cifra pode superar os 5,5 milhões de cidadãos, que neste ano compraram em média quase 4 mil dólares per capita. 1,5 milhões de pessoas a mais que nos anos anteriores.
9 – O indicador “Reservas internacionais / Dívida externa” da Argentina, que mostra a solvência dos países para enfrentar compromissos externos com recursos líquidos, é a mais baixa de todos os países da América Latina e do mundo que têm moeda própria e não têm guerras. Somente Burundi, Mongólia, Laos, Sri Lanka, Zimbábue e Zâmbia têm indicadores piores que a Argentina.
10 – Os esforços exportadores do país são persistentemente neutralizados pelo déficit gerado pela balança de rendimentos de investimentos, ou seja, pela saída líquida de dólares para remunerar o capital estrangeiro investido no país. Nos últimos 16 anos, o país teve superávits comerciais em onze períodos, graças aos quais conseguiu acumular um superávit de 94 bilhões de dólares. No entanto, esse valor representa apenas metade do déficit de 200 bilhões de dólares que o saldo de rendimentos de investimentos gerou em todos esses anos. A atual rodada de privatizações e estrangeirização da estrutura produtiva construída no passado é justificada pelo fato de que algo entre 13% e 30% das exportações anuais devem ser utilizadas para pagar o déficit no saldo das receitas de investimento. Tudo, obviamente, em dólares.
Nota final complementar sobre as ocasiões em que Cristina Fernández de Kirchner falou sobre a economia bimonetária da Argentina
– No diário de Sessões da Câmara de Senadores, durante a 19ª Reunião – 1ª Sessão extraordinária, de 27 de dezembro de 2017, ela disse: “[…] Uma delas é, na minha concepção e segundo a experiência que tivemos em doze anos e meio de gestão, o tema da restrição externa, o tema do dólar, de uma economia bimonetária, que além disso está vinculada diretamente com outro problema estrutural da Argentina em termos econômicos, que é a inflação”.
– Também em sessões da Câmara de Senadores (em novembro de 2018, boletim das sessões 1.577): “Naquela oportunidade disse que o grande problema estrutural da economia argentina era a restrição externa, a escassez de dólares para sustentar de forma equilibrada e permanente a atividade, o desenvolvimento e o crescimento da economia. Este é o grande problema que a Argentina tem, além de sua economia bimonetária”.
– Em seu livro Sinceramente (2019), disse: “Sinto que o país se acerca perigosamente de um tipo de caos em que ninguém sabe qual é o verdadeiro valor das coisas, se vai manter seu trabalho no dia seguinte ou quanto valerá o dólar, que numa economia bimonetária como a de nosso país adquire uma importância desmedida e quase incontrolável […]”.
– Também mencionou esse termo na carta publicada em seu site oficial no dia 27 de outubro de 2018, “Dez anos sem ele e um após a vitória eleitoral: sentimentos e certezas”, em um discurso na Universidade del Chaco, em 7 de maio de 2022, no discurso no estádio Avellaneda em 20 de junho de 2022 e, por último, no discurso de 1 de julho de 2022 em Ensenada.