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A revolução genética de Mendel e o legado do racismo científico

Os avanços científicos nem sempre são lineares: eles ziguezagueiam em formas inesperadas. Isso é particularmente verdadeiro para a genética, que tem uma obscura história de cooptação pelo eugenismo e pelo racismo “científico”.
Os avanços científicos nem sempre são lineares: eles ziguezagueiam em formas inesperadas. Isso é particularmente verdadeiro para a genética, que tem uma obscura história de cooptação pelo eugenismo e pelo racismo “científico”. Por Prabir Purkayastha | Globetrotter e Newsclick – Tradução de Pedro Marin para a Revista Opera
Carrie Buck e sua mãe, Emma Buck, em 1924. A Suprema Corte dos EUA decidiu que a jovem deveria passar por esterilização forçada após dar luz a um bebê fruto de um estupro.

Em julho, o mundo celebrou os 200 anos do nascimento de Gregor Mendel, amplamente considerado como o “pai da genética moderna” por sua descoberta das leis da hereditariedade. Seus experimentos com ervilhas, publicados em 1866 sob o título “Experimentos na hibridização de plantas”, identificaram traços dominantes e recessivos, como estes traços recessivos reaparecem em gerações futuras e em qual proporção. Seu trabalho permaneceria sem reconhecimento e ignorado até outros três biólogos o replicarem em 1900.

Embora o trabalho de Mendel seja central para a genética moderna, e seu uso de métodos experimentais e observações seja um modelo para a ciência, eles também motivaram fenômenos obscuros ao qual a genética esteve estritamente ligada: a eugenia e o racismo. Mas a eugenia era muito mais do que uma “ciência” racial. Ele foi usado para arrazoar uma superioridade das elites e raças dominantes, e em países como a Índia também foi utilizado como uma justificação “científica” para o sistema de castas.

Aqueles que acreditam que o eugenismo foi uma aberração temporária na ciência e que ele morreu com a Alemanha nazista se chocarão ao saber que até as maiores instituições e publicações que incluiam a palavra “eugenia” em nomes continuaram a operar, simplesmente alterando seus títulso. Os Anais da Eugenia se tornaram os Anais de Genética Humana; a Eugenics Review se tornou o Jornal de Ciência Biosocial; a Eugenics Quarterly mudou seu nome para Biodemografia e Biologia Social; e a Sociedade Eugênica foi renomeada para Instituto Galton. Diversos departamentos de grandes universidades, que antes se chamavam “departamento de eugenia”, ou se tornaram “departamento de genética humana” ou “departamento de biologia social”.

Todos eles aparentemente deixaram de lado seu passado eugênico, mas a recorrência do debate sobre QI e raça, a sociobiologia, a teoria da substituição e o crescimento do nacionalismo branco são todos marcadores de que o eugenismo está bastante vivo. Na Índia, a teoria racial toma a forma da crença de que arianos são “superiores”, e a pele clara é vista como um sinal de ancestralidade ariana.

Enquanto as câmaras de gás de Hitler e o genocídio de judeus e ciganos na Alemanha nazista tornaram difícil falar sobre a superioridade racial de certas raças, o racismo científico persiste na ciência. Ele é parte da justificação buscada pela elite para arrazoar sua posição superior com base em seus genes, e não no fato de terem herdado ou roubado sua riqueza. Trata-se de uma forma de retocar a história de saques, escravidão e genocídio que acompanhou a colonização do mundo por um punhado de países da Europa ocidental.

Mas por que, sempre que tratamos de genética e história, a única história repetida é sobre como o biólogo Trofim Lysenko e o Partido Comunista da União Soviética colocaram a ideologia acima da ciência, rejeitando a genética? Por que as menções à genética na literatura popular só dizem respeito à Alemanha nazista e nunca sobre como as leis eugênicas da Alemanha foram inspiradas diretamente nos Estados Unidos? Ou como o eugenismo na Alemanha e nos EUA estavam profundamente interligados? Ou ainda como o legado de Mendel sobre a genética se tornou uma ferramenta na mão de estados racistas que incluíam os EUA e a Grã-Bretanha? Por que é que a genética é repetidamente utilizada para apoiar teorias de superioridade da raça branca?

Mendel demonstrou que havia traços que eram herdados e, portanto, que temos genes que carregam certos marcadores que podem ser medidos, como a cor de uma flor ou a altura de uma planta. A biologia de então não fazia ideia de quantos genes nós tínhamos, quais traços poderiam ser passados à frente e quão geneticamente misturada é a população humana, etc. O próprio Mendel não tinha ideia alguma sobre os genes como portadores de herança, e isso foi conhecido muito mais tarde.

Da genética para a sociedade, a aplicação desses princípios foi um grande salto, que não era apoiado por nenhuma evidência científica empírica. Todas as tentativas de demonstrar a superioridade de certas raças partiram de uma presunção a priori de que tais raças eram superiores, e então partiam para tentar encontrar quais evidências poderiam ser selecionadas para sustentar tal tese. Muito do debate sobre QI e sociobiologia veio dessa abordagem na “ciência”. Em sua resenha do livro The Bell Curve, Bob Herbert escreveu que os autores Charles Murray e Richard Herrnstein haviam escrito uma peça de “pornografia racial”: “[…] colocando um manto de respeitabilidade sobre as visões obscenas e há muito desacreditadas dos racistas mais raivosos do mundo”.

Sobre esse tema, um pouco de história é necessário. O eugenismo era bastante popular no começo do século 20, tendo o apoio de grandes partidos e figuras políticas do Reino Unido e EUA. Não surpreendentemente, o ex-primeiro-ministro britânico Winston Churchill era um notável apoiador do racismo científico, apesar do eugenismo também ter tido o apoio de alguns progressistas.

O fundador do eugenismo na Grã-Bretanha foi Francis Galton, primo de Charles Darwin. Galton foi pioneiro no uso de métodos estatísticos como distribuição regressiva e normal, assim como seus colaboradores e sucessores na Sociedade Eugênica, como Karl Pearson e R.A. Fisher. Aubrey Clayton escreve, em um ensaio para a revista Nautilus, sobre a conexão entre raça e ciência que “o que nós hoje entendemos como estatística veio em grande parte do trabalho de Galton, Pearson e Fisher, cujos nomes apareceram em termos práticos como ‘coeficiente de correlação de Pearson’ e ‘informações de Fisher’. O conceito de ‘significância estatística’ em particular – por décadas usado como medida sobre o valor de publicação de pesquisas empíricas – é diretamente ligado ao trio”. 

Também foi Galton quem, com base em evidências supostamente científicas, defendeu a tese da superioridade dos britânicos em relação a africanos e outros povos nativos, bem como o argumento de que raças superiores deveriam substituir raças inferiores por meio da seleção artificial. Pearson ofereceu sua própria justificativa para o genocídio: “a história me mostra um caminho, e apenas um, pelo qual um alto estado de civilização foi produzido, a saber, a luta de raça com raça e a sobrevivência da raça física e mentalmente mais apta.”

O programa eugenista tinha dois lados: em um deles o estado deveria buscar encorajar a seleção artificial para melhorar o “estoque” populacional. No outro, o estado deveria tomar passos ativos para “eliminar” populações indesejáveis. A esterilização de “indesejáveis” fazia parte das sociedades eugênicas tanto quanto encorajar os povos à seleção artificial.

Nos EUA, o eugenismo esteve centrado no Departamento de Registros Eugênicos de Cold Spring Harbor. Enquanto o Laboratório Cold Spring Harbor e suas publicações de pesquisa ainda ocupam um lugar importante nas ciências contemporâneas, originalmente ele veio do Departamento de Registros Eugênicos, que era operado como o centro intelectual do eugenismo e da “ciência” racial. Esse departamento foi sustentado por meio de doações filantrópicas da família Rockefeller, o Instituto Carnegie e muitos outros. Charles Davenport, um biólogo de Harvard, e seu companheiro Harry Laughlin, se tornaram figuras-chave para a aprovação de um conjunto de leis estaduais nos EUA que levaram à esterilização forçada de populações “impróprias”. Eles também contribuíram ativamente para a Lei de Imigração de 1924, que definia cotas para raças, sendo os nórdicos priorizados enquanto europeus do leste (eslavos), asiáticos, árabes, africanos e judeus eram virtualmente barrados de entrar no país.

As leis de esterilização nos EUA, à época, eram controladas pelos estados. O juiz da Suprema Corte dos EUA, Oliver Wendell Holmes, o decano da jurisprudência liberal nos EUA, deu seu infame julgamento na Virgínia justificando a esterilização compulsória: “três gerações de débeis mentais são suficientes”, ele disse no caso Buck v. Bell. Carrie Buck e sua filha não eram débeis mentais; elas pagaram pelo pecado de serem pobres e consideradas ameaças à sociedade (uma sociedade que falhou com elas). Mais uma vez, o Departamento de Registros Eugênicos e Laughlin tiveram um papel importante ao prover “evidências científicas” para a esterilização dos “inadequados”.

Embora as leis raciais da Alemanha nazista sejam amplamente condenadas como a base para as câmaras de gás de Hitler, o próprio Hitler afirmou que sua inspiração para as leis raciais da Alemanha foram as leis estadunidenses sobre esterilização e imigração. As ligações estreitas entre os eugenistas estadunidenses e a Alemanha nazista são amplamente conhecidas e documentadas. O livro War Against the Weak: Eugenics and America’s Campaign to Create a Master Race, de Edwin Black, descreve como “o ódio racial de Adolf Hitler se sustentava no trabalho de eugenistas estadunidenses”, de acordo com um artigo publicado no The Guardian em 2004. A Universidade de Heidelberg, enquanto isso, deu a Laughlin um título honorário por seu trabalho na “ciência da limpeza racial”.

Com a queda da Alemanha nazista, a eugenia foi desacreditada. Isso resultou na renomeação de institutos, departamentos e publicações que tinham afiliações com a eugenia, mas eles continuaram a fazer o mesmo trabalho. A genética humana e a biologia social se tornaram os novos nomes para a eugenia. The Bell Curve foi publicado em 1990 como uma justificação do racismo, e um recente bestseller escrito por Nicholas Wade, ex-correspondente de ciências do jornal The New York Times, também apresenta teorias que há muito foram descartadas cientificamente. Cinquenta anos atrás, Richard Lewontin demonstrou que uma porção de apenas 6% a 7% das variações genéticas humanas existem entre os chamados “grupos raciais”. À época, a genética ainda estava no seu nascedouro. Mais tarde, os dados só fortaleceram a pesquisa de Lewontin.

Por que, enquanto criticamos as pesquisas científicas da União Soviética e os pecados de Lysenko há 80 anos, esquecemos da ciência racial e seu uso da genética? 

A resposta é simples: atacar os princípios científicos e as teorias desenvolvidas pela União Soviética como um exemplo de ideologia posta acima da ciência é fácil. Isso torna Lysenko a norma para a ciência soviética; a ideologia superando a ciência pura. Mas por que a eugenia, com seu passado destrutivo e sua presença contínua na Europa e nos EUA, não é reconhecida como uma ideologia – uma que persistiu por mais de 100 anos e que continua a prosperar sob a roupagem moderna de debates sobre QI ou sociobiologia?

A resposta é que ela oferece ao racismo um lugar dentro da ciência: mudar o nome de eugenia para sociobiologia a faz parecer uma ciência respeitável. O poder da ideologia não está nas ideias, mas na estrutura de nossas sociedades, nas quais os ricos e poderosos precisam de uma justificação para suas posições. É por isso que a “ciência” racial como ideologia é um corolário natural do capitalismo e de grupos como o G7, o clube dos países ricos que busca criar uma “ordem internacional baseada em regras”. A “ciência” racial da sociobiologia é uma justificativa mais gentil do que a eugenia para o domínio do capital em casa e em estados ex-coloniais e sob ocupação no exterior. A luta pela ciência na genética deve ser travada dentro e fora da ciência, pois as duas dimensões estão intimamente conectadas.

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