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O jornalismo asséptico é incapaz de lidar com vermes

Frente a uma estratégia em que não só veracidade e fatos não importam como também não importa sequer conquistar apoio – mas sim neutralizar antipatias –, o cinismo de fraque, as risadas irônicas, o tom desdenhoso e as pausas teatrais de Bonner durante a sabatina não são suficientes.
Frente a uma estratégia em que não só veracidade e fatos não importam como também não importa sequer conquistar apoio – mas sim neutralizar antipatias –, o cinismo de fraque, as risadas irônicas, o tom desdenhoso e as pausas teatrais de Bonner durante a sabatina não são suficientes. Por Pedro Marin | Revista Opera
(Manaus – AM, 23/04/2021) Presidente da República Jair Bolsonaro, durante entrevista ao apresentador Sikêra Júnior.Foto: Alan Santos/PR

A astúcia, a mentira e as falsas aparências sempre fizeram parte da política. Desde que os homens se reuniram e estabeleceram entre si alguma forma de comunicação, a teatralidade planejada, a construção do espetáculo e o engano passaram a ser usados para granjear apoio, seja para si, uma causa ou uma posição.

Nas democracias liberais modernas, no entanto, especialmente após a Segunda Guerra e, depois, com a queda do bloco soviético, um certo tipo de espetáculo tornou-se hegemônico no mundo da política, impregnando-o todo e, por extensão, também a comunicação: uma espécie de positivismo da razoabilidade, defensor de uma razão única – a liberal –, da técnica, da neutralidade e dos bons modos.

Ora, derrotado o grande inimigo do mundo ocidental, num mundo vivendo seu “momento unipolar”, por que não dar vazão total à “neutralidade”? Por que não deixar de lado a instabilidade das paixões e substituí-la pela estabilidade da razoabilidade? Se não há mais inimigos, por que não recuperar aquele otimismo intrínseco ao positivismo? Por que não louvar a razão, quando uma só “razão” havia sobrado sobre a terra? É dessa forma que essas taras típicas do “fim da história” passaram do campo político ao comunicacional e, a partir deste, espalharam-se globalmente, mesmo naqueles recônditos lugares onde ter dentes brancos e cabelos bem penteados não fazia sentido ou sequer era possível.

Esta era brilhante de um mundo sem conflitos, camisas passadas, gadgets tecnológicos e discursos bonitos afiados na bruta pedra dos profissionais de marketing deu forma a uma nova subjetividade política e uma nova forma na comunicação. Na imprensa, a obsessão compulsiva por um tipo de neutralismo iluminado, iniciada no final do século 19, chegou a tal ponto que se popularizou, entre os estudantes de jornalismo dos anos 1990 em diante, a procura por fonoaudiólogos qualificados para ensinar e treinar um tal “sotaque neutro”, supostamente agradável a todos os ouvidos e capaz de evitar interferências e ruídos na transmissão das notícias.

A negação da comunicação como um campo intrinsecamente político, iniciada naquele século 19, chegou a um patamar em que qualquer indício disso foi eliminado na estética, na forma. Fundou-se, para além do jornalismo “neutro”, “imparcial”, “factual” que havia surgido no século 19, o jornalismo asséptico; baseado numa intenção comunicativa cuja forma mimetizava o conteúdo do jornalismo anterior. Nesta nova forma, se buscou enquadrar toda a política naqueles valores mencionados: a razoabilidade, o republicanismo ingênuo, a neutralidade, o liberalismo como valor universal, não só como conteúdo, mas também como estética.

Assim, a interação dos políticos com os jornais e os jornalistas – representantes do “quarto poder” e da “sociedade civil” – passou a se organizar num ambiente discursivo e comunicacional em que o liberalismo era triunfante, e o republicanismo ingênuo a sua forma ideal. Obviamente, havia aqueles políticos que fugiam um pouco à pose, mas dificilmente conquistavam grande importância. Isso não quer dizer tampouco que a política se tornou de fato “limpa” ou “asséptica” tal qual as redações de jornais pareciam ou fingiam ser. Continuou tão “suja” quanto sempre foi, mas a face pública do político, o seu discurso frente às câmeras e sua postura nos debates, haveria de se orientar por esse neutralismo iluminado. Arroubos “populistas” não eram uma opção para os candidatos competitivos. Líderes, os políticos poderiam ser longe das câmeras. Na frente delas, deveriam ser comportados aspirantes a burocratas.

Primeiro round: Globo nas cordas

O dia 28 de agosto de 2018 marca uma data histórica. Não por fatores anteriores – por exemplo, por Jair Bolsonaro, uma figura lateral advinda do “baixo clero”, estar naquele momento na bancada do Jornal Nacional como candidato a presidente – nem por fatos posteriores – que a figura, poucos dias depois, tenha sofrido um atentado que deu novo impulso passional à cena política, ou que depois tivesse ainda conquistado a presidência. Foi uma data histórica por ser talvez a primeira vez, desde Brizola, que um político bateu-se tão frontalmente com a Rede Globo, de dentro dela mesma.

Em nenhum momento, naquela entrevista, Bolsonaro abriu mão de uma postura ofensiva. Suas respostas não tinham uma intenção comunicativa que rezava o terço desse pacto da razoabilidade; pelo contrário, eram regidas por uma intenção incomunicativa ativa (ofensiva). É dizer: não lhe interessava oferecer uma face pública “comportada”, de acordo com os valores políticos e comunicacionais prevalecentes nos últimos 20 anos, enquanto, nas sombras, usava daquelas aparências, mentiras e astúcias. Lhe interessava, pelo contrário, usar dessas aparências, mentiras e astúcias precisamente como sua face pública; tirar a “sujeira” da política debaixo do tapete e oferecê-la na luminosa bancada do Jornal Nacional. Foi assim que, naquela ocasião, deu alfinetadas em torno do casamento de Bonner e da contratação de funcionários pela Globo como Pessoas Jurídicas (PJ), questionou a diferença salarial entre Renata Vasconcellos e Bonner; lembrou que a Globo é uma concessão pública que vive de recursos da União; passou minutos falando de “criancinhas de 6 anos de idade” sendo “convertidas” à homossexualidade nas escolas; falou de excludente de ilicitude e de policiais e o Exército darem “20, 30, 50 tiros” contra elementos armados nos morros cariocas “e depois vê o que faz”; citou Roberto Marinho, presidente do Grupo Globo, para defender a ditadura militar, etc.

Sem contar com o amparo dos jornalistas, talvez até tendo sua antipatia, a sabatina constituiu na prática numa campanha de relações públicas sua, reforçando a imagem de um candidato “anti-sistema”. Bonner e Vasconcellos pouco puderam fazer; passaram os 27 minutos aturdidos, no máximo formulando novas perguntas e direcionando a entrevista a outros temas, incapazes, no entanto, de enquadrar o candidato no pacto de razoabilidade.

Durante todo o governo Bolsonaro, esse mesmo exercício se repetiu na relação do presidente com os veículos de comunicação. Obcecados pela construção dessa ágora de razoabilidade, os jornalistas pensavam que divulgar as estrepulias presidenciais atingiriam sua popularidade; embebidos na concepção do “jornalismo factual” nascida no século 19, tinham como doutrina divulgá-las, por mais irrelevantes ou estúpidas que fossem, por serem realizadas por alguém “importante”; trabalhando numa época em que o espaço do jornal não é mais uma restrição, foram colocados na armadilha de noticiar tudo, mesmo o que não importa. Em resumo: a obsessão factual do jornalismo asséptico é tal que até aqueles fatos cuidadosamente produzidos pelo presidente eram irresistíveis aos jornais. “Falem mal, falem bem, falem de mim” foi a doutrina de Bolsonaro, enquanto o melhor “remédio” que o jornalismo profissional pôde receitar para as mentiras descaradas e as manipulações foi o chamado “fact-checking” (checagem de fatos), sem que esses profissionais se dessem conta de que mesmo as mentiras checadas e sinalizadas com tal selo – “fake news” – ganhavam espaço no debate público, apesar de sua irrelevância de facto. Além disso, este jornalismo profissional, fixado como é na dimensão factual desde a emergência do modelo anglo-americano de comunicação no século 19, não percebeu, precisamente, que os “fatos” pouco importam frente a tal inimigo. Rejeitá-los, oferecer outra interpretação, conduzir a discussão para outro ponto, vociferar e gritar vale muito mais do que ater-se ao factual – tudo isso reforça no mínimo a imagem de um líder, alguém em permanente confronto com algo, e no máximo a imagem de um líder anti-sistema, em confronto com “tudo aquilo que está errado”. De certa forma, a grande invenção de Bolsonaro no seu trato da mídia foi reconhecê-la como parte da política; não como uma “representante da sociedade civil” neutra, mas como um espaço em si político – coisa que ela, por todas as artimanhas estéticas, busca negar. De certa forma, sua grande invenção foi levar a política, e toda a “sujeira” inerente à ela, de volta àqueles ambientes que se pretenderam assépticos.

 Leia também – Notas sobre a guerra de Bolsonaro contra o Brasil 

O retrato perfeito da falência desse modelo de jornalismo profissional se deu no dia 4 de março de 2020. Naquele dia, no “cercadinho” em frente ao Palácio da Alvorada, onde o presidente costumava tirar fotos com apoiadores e responder a perguntas da imprensa, Bolsonaro colocou um humorista fantasiado de presidente para responder aos jornalistas, no mesmo dia em que foram divulgados os números do PIB de 2019 – com crescimento de somente 1,1%. Uma parte dos jornalistas encerrou a palhaçada, abandonando o local. Mas seus próprios veículos tiveram de noticiar este abandono e, por extensão, aquela mesma palhaçada da qual negaram-se ser parte. Naquele dia, esta notícia – a de que os jornalistas abandonaram o cercadinho após o espetáculo presidencial – foi uma das mais lidas em muitos portais de imprensa: precisamente o efeito contrário sugerido ou pretendido pelo abandono das câmeras e microfones.

Segundo round: Bolsonaro nas cordas?

A sabatina de Bolsonaro no Jornal Nacional, na última segunda-feira (22), se deu em condições muito diferentes daquela de 2018. Por um lado, porque as táticas midiáticas de Bolsonaro já eram, agora, conhecidas. Por outro, porque o presidente desta vez teria que responder por um legado absolutamente negativo seu, não vociferar em torno de problemas atribuídos a outros.

Este fato fez com que muitos esperassem ansiosos por um “embate”. Como a figura responsável por quase 700 mil mortos durante a pandemia se comportaria frente às câmeras? Que resposta poderia oferecer para 33 milhões de brasileiros famintos? Com que cara negaria escândalos de corrupção tal qual esquema no qual foi implicado o pastor Milton Ribeiro, ministro da Educação?

E, ainda assim, Bolsonaro não saiu da sabatina só ileso – saiu com sua imagem mais “limpa” do que entrou. Não só isso: mesmo os mais batidos estratagemas midiáticos, como a “colinha” na mão, foram amplamente replicados nas redes sociais. A cantora Anitta, elevada ao mister de uma espécie de consultora de comunicação em mídias sociais pela campanha petista, foi uma das figuras a cair no engodo – mas não só ela.

A figura Bolsonaro, conscientemente ou não, aprendeu a manejar um elemento hoje já bastante conhecido dos veículos de comunicação: o entorpecimento. Na entrevista de 2018, o entorpecimento do público era ativo, na medida em que, aturdido com tantas informações sobre tudo o que estaria errado no Brasil, emitidas por uma voz aparentemente insurgente, o público tendia a inclinar-se em apoio à voz. Era uma incomunicação ofensiva: tal qual um inseto alimentando-se dos próprios detritos. Na entrevista de 2022, o entorpecimento do público é passivo, na medida em que, aturdido com o ruído com a qual a velha voz insurgente responde a todas as constatações sobre o que fez de errado, tende a ter neutralizada um pouco da antipatia que passou a ter com Bolsonaro. Uma incomunicação defensiva. De fato, num cenário em que a disputa se divide entre ele – manchado pela memória recente de seu nefasto governo – e Lula – beneficiado por uma memória positiva na economia, mas manchado pelo escândalo midiático em torno da corrupção –, tudo o que Bolsonaro precisa é amortecer a antipatia contra si daqueles que tendem a rejeitar também Lula. Tudo o que busca é instalar em uma parte do eleitorado, decepcionado com seu governo, a ideia de que tal ou qual fato vexatório “não foi bem assim”, ou, ainda, que a lembrança ou a memória sobre um de seus muitos atos nefastos seja dissipada numa nuvem de ruídos. Oferecer justificativas, mesmo que implausíveis, quando possível; fomentar o caos na comunicação quando as justificativas faltarem. Este foi o central da participação de Bolsonaro na sabatina de 2022.

Por óbvio, os jornalistas do Jornal Nacional não pressionaram Bolsonaro pela fome, o desemprego e pela tragédia que o projeto econômico de seu ministro, Paulo Guedes, representa ao povo brasileiro. Nisto foram simplesmente coerentes com aquilo que seu veículo prega; não poderíamos esperar outra coisa. Ocorre que tampouco tiveram a capacidade de insistir em nenhuma das questões polêmicas por eles mesmos levantadas. Não puderam chegar ao fundo de nenhuma das declarações do presidente, que de fato não serviram só de “esquiva” frente a perguntas polêmicas mas, na medida em que foram pronunciadas sem levarem a uma pressão adicional, serviram de justificação, ajudaram a “limpar sua barra”.

No debate sobre a questão das urnas, algo verdadeiramente incrível ocorreu. Bolsonaro pronunciou claramente que “quem vai decidir essa questão de transparência [das urnas] ou não serão, em parte, as Forças Armadas, que foram convidadas a participar da Comissão de Transparência Eleitoral”. Bonner responde: “As Forças Armadas são uma das partes desse grupo que analisa a segurança. A grande questão não é nem a presença das Forças Armadas. A grande questão é que o senhor se coloca como patrono das Forças Armadas, e a forma como o senhor ataca o sistema eleitoral é que causa ruído e causa uma certa intranquilidade.” Bolsonaro: “Teremos eleições, o ministro Alexandre de Moraes acabou de assumir, amanhã ele terá um encontro com o ministro da Defesa para tratar desses assuntos sobre transparência eleitoral. […] Pode ter certeza que teremos eleições limpas e transparentes no corrente ano”.  Bonner então convida o presidente a “tirar o estresse, a intranquilidade” do momento eleitoral e a respeitar o resultado das urnas seja qual ele for – e se comprometer a orientar seus apoiadores a  fazer o mesmo. Bolsonaro responde: “Seja qual for, eleições limpas devem e têm que ser respeitadas. Eleições limpas e transparentes têm que ser respeitadas”. Bonner insiste então que as eleições são limpas e transparentes, e que as urnas são auditáveis, e refaz o convite a Bolsonaro assumir o compromisso de respeitar os resultados “diante de milhões de brasileiros”. Resposta literal do presidente: “Serão respeitados os resultados das urnas, desde que as eleições sejam limpas e transparentes. […] Mas tudo bem, vamos botar um ponto final nisso? Vamos pra outro assunto?”. Bonner então de fato põe o ponto final e passa a outra questão, dizendo que “temos uma declaração importante do candidato Bolsonaro assumindo publicamente o resultado das urnas de outubro”.

Evidentemente, não foi o que o candidato Bolsonaro disse, e Bonner só emprestou sua voz de razoabilidade a uma mentira – mentindo ele, portanto. O presidente deixou claro que serão “em parte” as Forças Armadas quem decidirão a “questão da transparência”. Se comprometeu a respeitar o resultado das urnas “desde que as eleições sejam limpas e transparentes”. A lógica de seu discurso atesta que Bolsonaro disse, na prática, que reconhecerá os resultados das urnas se assim o fizerem as Forças Armadas. Ao invés de pressionar o presidente, Bonner o auxilia. Uma postura ativa significaria perguntar, por exemplo: “Se todas as instituições disserem que as eleições foram limpas, com exceção das Forças Armadas, o senhor reconhecerá os resultados ou, ao contrário, estimulará um golpe?”

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Este comportamento é repetido por Bonner quando questiona o candidato em torno dos resultados econômicos de seu governo. Na sua própria pergunta, traz a costumeira justificativa do presidente para a questão – talvez imaginando assim “se proteger” de sua retórica. Pergunta ele: “Em 2018, como candidato, o senhor disse assim numa entrevista: ‘eu sei o que o povo precisa; inflação baixa, taxa de juros menor, dólar menor.’ Aí veio o seu governo, os juros básicos da economia dobraram, a inflação mais que dobrou, o dólar que estava em R$ 3,90 está em mais de R$ 5,00. É verdade que tudo isso se deu num cenário de pandemia e num cenário também de guerra na Ucrânia. Ocorre que este cenário não mudou,  a pandemia não acabou, infelizmente, e a guerra da Ucrânia é uma realidade. Pergunto […] qual é o seu plano, uma vez reeleito, para cumprir num segundo mandato as promessas que o senhor fez em 2018 para a economia?”. Ao invés de responsabilizar Bolsonaro sobre o que lhe compete nos últimos anos – mesmo que levando em consideração a pandemia – Bonner, de antemão, o justifica, oferecendo a ele o espaço para vender sonhos futuros. É bom que se lembre, a propósito, que a guerra na Ucrânia – com todos seus impactos na cadeia global de suprimentos – só começou no início deste ano, não podendo justificar portanto resultados anteriores – por exemplo, os do crescimento do PIB em 2019. Mas mesmo tomando em conta os dois eventos – guerra e pandemia –, é atribuição do presidente lidar com a conjuntura que a ele se apresenta, não com uma imaginada. A tendência à alta da inflação num cenário como o que enfrentamos é um fato – a questão é porquê produtos que produzimos, tal qual petróleo e seus derivados ou alimentos, tiveram aumentos tão grandes. Seria atribuição do presidente adotar medidas para, ao menos, proteger os preços dos produtos aqui produzidos, evitando que 33 milhões de brasileiros passem fome. O mesmo vale para a taxa básica de juros, a propósito definida pelo COPOM: em princípio nada tem a ver com a ausência ou existência de medidas de distribuição de renda. Quanto ao dólar, a tendência à sua valorização, igualmente, não é necessariamente uma má notícia para a economia brasileira. Pode ensejar, por exemplo, e se assim o governo decidir, um processo de industrialização, de aumento do consumo interno, etc.  

A cada pergunta feita, Bolsonaro dirige sua resposta a um campo diferente. Frente a uma pergunta de Renata Vasconcellos sobre a “falta de compaixão” do presidente ao imitar pessoas morrendo sem ar durante a pandemia, Bolsonaro fala durante um minuto e meio de visitas a favelas de Brasília, de Auxílio Emergencial, de um imaginado caos social, de recursos enviados para governadores e prefeitos, de desvios desses recursos que não foram investigados na CPI da Covid, de “politicamente correto”, do que considera como “trabalho essencial”. Em nenhum momento é interrompido pelos jornalistas e trazido de volta à questão: se não considera falta de compaixão ter imitado pessoas morrendo e se arrependeu-se disso. É, na verdade, Bolsonaro quem interrompe os jornalistas. Diz continuamente que tal ou qual afirmação “não é verdade”. Os jornalistas não o enfrentam, procurando sustentar as suas próprias palavras – e, portanto, dão sustentação às dele.

Os jornalistas continuamente tentam levar Bolsonaro de volta à sua limpa esfera de razoabilidade. Pedem que ele “se comprometa”, perguntam se “se arrepende”. Em momento nenhum o faz. Fazê-lo significaria reconhecer que seus inimigos podem ter, por pequena que seja, alguma razão. Firmar o pacto de razoabilidade significaria desfazer a imagem de líder, a de “anti-sistema”, a de mito. Ao não fazê-lo, ao confrontar continuamente seus interlocutores, se justifica frente ao público. “Então não era bem assim”, pensarão uns. “Ele tem as suas razões”, dirão outros. 

Frente a uma tal estratégia, em que não só veracidade e fatos não importam como também não importa sequer conquistar apoio – mas sim neutralizar antipatias –, o cinismo de fraque, as risadas irônicas, o tom desdenhoso e as pausas teatrais de Bonner não são suficientes. Tampouco o é a postura de “neutralidade” e “imparcialidade” e sua estética asséptica. Em nome de permanecer como uma voz imparcial fazendo perguntas do Olimpo – e com sotaque neutro –, em nome de não comprometer-se como um ator político de fato e como guardião de um espaço iminentemente político, o jornalista é um incapacitado frente àquele que não quer responder à sua pergunta, mas sim promover um espetáculo capaz de atenuar seu mau-cheiro. Tal qual no episódio do humorista no cercadinho.

Perceba o leitor que não se trata somente do Jornal Nacional querer ou não colocar Bolsonaro nas cordas. Se trata de ser incapaz de fazê-lo, porque para tal teria de tomar uma postura ativa como ator político e, ao fazê-lo, haveria de correr o risco de abrir mão da mentira auto-imposta da neutralidade, imparcialidade, assepsia e razoabilidade. Os jornalistas não enfrentam a insensatez – convidam-na de volta à razão; não dissecam o verme – convidam-no à assepsia.

A boa notícia é que o Jornal Nacional não é mais suficientemente relevante para que a sabatina sirva para limpar os rastros pegajosos de Jair Bolsonaro e reelegê-lo. A má é que o presidente não é suficientemente impopular para que sua estratégia de comunicação, estendida a outros meios pelos próximos 39 dias, não dê resultados. O fato é que para enfrentar vermes, há de se tomar o jornalismo numa dimensão há muito abandonada: o combate. Mas, para nosso asséptico jornalístico, sequer mencionar vermes já será pecado.

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