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A imigração venezuelana e uma duvidosa acolhida de Bolsonaro

Muito além do “pintou um clima”: Bolsonaro usou a questão da imigração venezuelana como uma arma política, contrariando suas próprias posições anteriores.
Muito além do “pintou um clima”, Bolsonaro usou a questão da imigração venezuelana como uma arma política, contrariando suas próprias posições anteriores. Por Amanda Magnani | Crisis – Tradução de Pedro Marin para a Revista Opera
Fronteira do estado brasileiro de Roraima com a Venezuela, nas cidades de Pacaraima e Santa Elena de Uairén. (Foto: Amanda Magnani / Revista Crisis)

Era o Rondon 5, um dos maiores abrigos para migrantes venezuelanos do Brasil. Sob um largo toldo branco, ocultando-se do calor seco e aterrador das tardes que antecedem o verão em Boa Vista, mulheres e crianças venezuelanas pintavam as unhas e penteavam o cabelo uma da outra. Ao lado, um quadro com papéis coloridos em português com frases sobre beleza, amor próprio e empoderamento. Exceto por um, ao centro, onde se lia em espanhol: “Dia de beleza para mulheres”. Era 27 de setembro.

Com quase 340 mil imigrantes e refugiados, o Brasil é o quinto país que mais acolhe venezuelanos, desde que teve início no país a maior crise política e humanitária de sua história recente – e, com ela, a maior crise de deslocamento do continente americano. O dia de beleza para mulheres foi uma iniciativa da Operação Acolhida, a campanha de caráter militar que desde 2018 concentra a resposta humanitária à migração venezuelana no Brasil. Encabeçada pelos ministérios da Defesa, Cidadania e Casa Civil, e pelas Forças Armadas – ali conhecidas pelo nada militar nome de “força de tarefa logística humanitária” –,  em comunhão com o ACNUR (Alto-comissariado das Nações Unidas para os Refugiados), OIM (Organização Internacional para as Migrações) e quase duzentas ONGs, seu trabalho gira ao redor de três eixos: monitorar as chegadas na fronteira, abrigar migrantes e refugiados temporariamente, e integrá-los à sociedade brasileira.

Recém chegadas de Pacaraima, na fronteira com a Venezuela, e sob a mesma tenda onde ocorria o dia de beleza para mulheres, dezenas de pessoas, com suas dezenas de malas, ouviam uma palestra sobre internalização, um dos pilares da integração proposta pela Operação Acolhida. Lá, no abrigo Rondon 5, na capital roraimense de Boa Vista, vivem os e as venezuelanas que serão transferidos a outras partes do país – seja para estarem juntos de parentes e amigos, seja para buscar melhores oportunidades que aquelas disponíveis no estado amazônico de Roraima, por onde chegam.

Para quem exerce o jornalismo, entrar em um abrigo da Operação Acolhida não é simples. Foram quase dois meses de e-mails trocados com as autoridades, perguntas enviadas antecipadamente para aprovação, e mudanças constantes em datas, horários e inclusive nos abrigos a visitar (porque há vários). Tudo tinha hora marcada – de início e término – e a companhia constante de um representante militar da operação.

(Foto: Amanda Magnani / Revista Crisis)

Em meio à burocracia, o enorme grupo de recém chegados que assistia à palestra, e a música alta que enchia o ambiente para celebrar a semana de aniversário de um ano do abrigo Rondon 5, a imagem desta simples atividade do dia da beleza poderia ter passado despercebida, não fosse pela desafortunada declaração de Bolsonaro no dia 14 de outubro, dia seguinte da minha partida de Boa Vista: “Pintou um clima”. A frase, com implicações sexuais, foi dita pelo presidente do meu país durante uma entrevista em um podcast. Se referia ao que sentiu ao encontrar meninas venezuelanas nos arredores de Brasília: “meninas bonitinhas, de 14, 15 anos, se arrumando no sábado. Pra quê? Ganhar a vida”.

Dias depois dessa infame entrevista, foi revelado o que ocorria na casa onde viviam as meninas quando Bolsonaro as seguiu naquele dia: era uma ação comunitária na qual esteticistas brasileiras praticavam nas venezuelanas o que aprenderam sobre cabelo e maquiagem. Algo que soa exatamente como um dia de beleza para mulheres.

(Foto: Amanda Magnani / Revista Crisis)

O abrigo Rondon 5 tem dois níveis: um para os que vêm de outros abrigos de Boa Vista, e outro para os que chegam diretamente de Pacaraima para serem interiorizados. Entre eles, cercas. Ao redor do espaço das tendas, também. Um espaço marcado por militares fardados. Militares que, é preciso dizer, não se pareciam aos homens taciturnos que adulam Bolsonaro e aplaudem sua adoração pela ditadura que o Brasil viveu entre as décadas de 1960 e 1980. Pelo contrário, eram muito simpáticos, sorriam e brincavam com as crianças. Ainda assim, ali estavam: homens de uniforme, representando as Forças Armadas e o protagonismo que elas têm na resposta humanitária brasileira à crise migratória venezuelana.

“O caso do ‘pintou um clima’ ilustra perfeitamente a política migratória de Bolsonaro”, diz Márcia Maria de Oliveira, professora e pesquisadora de migração da Universidade Federal de Roraima (UFRR). “A acolhida não está estabelecida por respeito, afinidade ou afeto, nem por um compromisso com a questão migratória. Aparentemente, o governo brasileiro acolhe os e as venezuelanas. Mas quais são os elementos dessa acolhida? Promove e empodera o migrante, ou simplesmente o usa como uma moeda política? Se analisamos a Operação Acolhida, há nela muito mais elementos políticos e econômicos que sociais. Não existe uma postura de acolhimento. Ao categorizar essas meninas vulneráveis, sem provas, como prostitutas, Bolsonaro revela que não tem respeito aos migrantes – e às mulheres migrantes especialmente”.

Yudilia Larosa (à direita) e sua filha, indígenas da etnia Warao, vestidas com trajes tradicionais, dançam danças típicas de seu povo dentro de uma barraca onde vivem no albergue Jardim Floresta em Boa Vista; o menor abrigo indígena da Operação Acolhida. (Foto: Amanda Magnani / Revista Crisis)

Xadrez migratório

Em 2018, antes de ser eleito presidente, Bolsonaro deu uma entrevista onde propunha uma maneira de lidar com a migração venezuelana: revogar a lei migratória vigente, criar campos de refugiados e convocar de volta os embaixadores brasileiros no país vizinho. Em janeiro do ano seguinte, ainda no primeiro mês de seu mandato, Bolsonaro tirou o Brasil do Pacto Mundial para a Migração, assinado por 164 países em uma conferência internacional da ONU em Marrocos, em 2018. Seria demasiado ingênuo crer que esse mesmo homem, que usa constantemente a ameaça de que o Brasil se tornará a Venezuela como forma de assustar as pessoas para que não votem em partidos de esquerda, tenha mudado de posição tão rapidamente. Seria mais ingênuo ainda crer que alguém com ele seja realmente adepto de uma política acolhedora.

“Ao longo dos quase 16 anos em que o Partido dos Trabalhadores governou o país, houve uma aproximação entre o Brasil e a Venezuela”, diz J., pesquisador sobre migração na UFRR. Entre 2003 e 2016, o Brasil financiou na Venezuela obras de infraestrutura como as linhas 3 e 4 do metrô de Caracas e uma ponte sobre o rio Orinoco. Quando Hugo Chávez era presidente, Lula negociou ações conjuntas entre a Petrobras e a estatal de energia venezuelana PDVSA. Também nesse período, Lula discutiu a inclusão da república bolivariana no Mercosul. Mesmo quando Lula foi substituído no poder por Dilma Rousseff, as relações entre os dois países se mantiveram amistosas.

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“Quando Michel Temer chega à presidência, essa relação começa a estremecer”, segue J. Então, em 2018, o Brasil enviou as Forças Armadas para a fronteira com a Venezuela e estudou implementar um esquema de ‘tickets numerados’ para coordenar a entrada no território brasileiro. “Mas foi sob Bolsonaro que a relação entre os dois países foi rompida completamente”, completa.

O que Bolsonaro fez no seu primeiro ano de governo foi, sem dúvidas, uma provocação. Aliando-se a Trump, então presidente dos EUA, o país que mais impôs sanções à Venezuela, o presidente foi um dos primeiros a reconhecer Juan Guaidó como presidente do país vizinho. Pouco depois, insistiu em manter o envio de uma suposta ajuda humanitária para a Venezuela, mesmo após Maduro fechar a fronteira do lado venezuelano.

Lilia Betzaida Vargas Gómez e seu marido em sua barraca no abrigo Rondon 5, um abrigo destinado às pessoas que já iniciaram seu processo de interiorização. Lilia e sua família aguardam uma transferência para o Rio de Janeiro. (Foto: Amanda Magnani / Revista Crisis)

Que fique claro, no entanto, que nesta história não se aplicam maniqueísmos de vilões e heróis. O fechamento de uma fronteira como essa, especialmente com o objetivo de impedir que chegue ajuda humanitária à população é, por si só, uma catástrofe – mas que não se perca de vista que a oferta que partiu do governo brasileiro bolsonarista, muito mais do que dar apoio, tinha a finalidade de provocar e desmoralizar o Estado vizinho, buscando fazer os militares que guardam a fronteira darem as costas ao regime que representam.

“O discurso de Bolsonaro muda ao longo do tempo, e há uma contradição entre o que dizia antes e o que diz agora”, diz J. “Já que há um afastamento da Venezuela em termos da política externa brasileira, o presidente passa a usar os migrantes em seu benefício, como uma forma de se afastar ainda mais. Bolsonaro utiliza um discurso segundo o qual o socialismo exclui e o Brasil acolhe, para pintar uma dicotomia entre o vil socialismo e o benévolo capitalismo, que nos permite acolher nossos irmãos. Enquanto seu discurso era antes contrário à migração e contrário à entrada dos migrantes aqui, Bolsonaro se usou da Operação Acolhida como uma oportunidade para mostrar outra face do governo, uma que beneficia os migrantes – enquanto, na realidade, segue os tratando como cidadãos de segunda classe”.

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J. explica que Bolsonaro buscou, com isso, conseguir dividendos políticos. Em 2020, o presidente chegou ao ponto de fazer campanha para que a Operação Acolhida fosse nomeada ao Prêmio Nobel da Paz do ano seguinte. Uma operação que, na realidade, foi criada pelo governo anterior, do ex-presidente Temer. “A mensagem codificada do governo Bolsonaro ao acolher os venezuelanos em condição de refúgio é uma declaração de decadência do governo Maduro – uma mensagem altamente política”, diz Márcia. “Seu fascismo segue intacto, mas ele tolera os migrantes venezuelanos porque, ao fazê-lo, está atacando um governo de esquerda que não suporta”.

Euligio Baez, um dos cinco aidamos (líderes) Warao que ainda vivem em Pintolândia, antes um abrigo da Operação Acolhida e, atualmente, uma ocupação. (Foto: Amanda Magnani / Revista Crisis)

Convergência automática

O maior problema do discurso bolsonarista contra os migrantes é que ele não se limita às palavras. “Quando um discurso de ódio é adotado por uma liderança política, ele se torna um discurso político. E quando tal discurso é adotado como prática por esse mesmo líder, ele autoriza – e legitima – que seus liderados façam o mesmo. É uma convergência automática”, diz T., também pesquisador da UFRR. “Um discurso de ódio é o que estrutura a prática. Primeiro, ele legitima essa maneira de pensar. Depois, se legitima a maneira de atuar. Quando um líder de Estado usa esse discurso, todas as estruturas aderem a ele – e passamos a ter promessas políticas, e ideias de ódio que se convertem em ações de Estado. Se o princípio que alimenta a ação política é o ódio, o ódio é que vai se materializar”.

Ainda em 2019, antes mesmo de estourar a pandemia de Covid-19, o governo de extrema-direita de Jair Bolsonaro já começava a usar meios infralegais para aprovar portarias xenofóbicas. A Portaria 770, de autoria do então ministro da Justiça, Sérgio Moro, instituiu a deportação sumária, retomando à política brasileira a ideia de “pessoas perigosas”, uma reaproximação da perspectiva de segurança nacional que lembra muito mais o “Estatuto do Estrangeiro”, vigente no Brasil durante a ditadura militar, do que a atual lei de migração Nº 13.445 de 2017, que facilitou aos migrantes regularizar seu status no país, e lhes permitiu, pela primeira vez, manifestar-se politicamente.

Mas a partir de 2020 a situação ficou ainda mais difícil. A Portaria 120 implementou, em março daquele ano, a restrição temporária da entrada de estrangeiros procedentes da Venezuela, criminalizou aqueles que tentaram chegar ao país, suspendeu a solicitação de refúgio – violando todos os tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário – e ordenou que fossem deportados.

(Foto: Amanda Magnani / Revista Crisis)

Durante o período de sua vigência, segundo informações da Human Rights Watch, 2.091 pessoas foram deportadas – contra apenas 26 em 2019. Em março de 2021, um ano após a Portaria 120, durante uma tentativa de deportação, a Polícia Federal invadiu um abrigo religioso, com capuzes cobrindo suas armas e empunhando armas, onde viviam mais de 50 mulheres e crianças migrantes.

Para Márcia, uma das principais maneiras pelas quais o discurso de Bolsonaro se converteu em ação foi em como seu governo escolheu conduzir a resposta humanitária à migração venezuelana. “A ‘Operação Acolhida’ se iniciou em 2018, e até hoje não se discutem políticas públicas de longo prazo. Depois de quase cinco anos, não há interesse em evoluir a resposta brasileira para algo diferente da fase emergencial”.

Bolsonarismo venezuelano

Roraima é o estado mais bolsonarista do Brasil segundo o Tribunal Superior Eleitoral. Lá, a sombra do ódio exalado por Bolsonaro caminha pelas ruas. Os bolsonaristas de Roraima não odeiam só os venezuelanos, mas também qualquer um que esteja ao seu lado. Por essa razão, os nomes dos pesquisadores entrevistados foram resguardados. Após terminar cada conversa, perguntavam como eu pretendia usar nesta reportagem aquilo que haviam compartilhado. Temiam por suas vidas e as de seus familiares. O tema que escolheram estudar já causou, a cada um deles, ameaças e perseguições. O ódio em forma de violência é crescente no estado – e o resultado das eleições presidenciais, nas quais Lula foi eleito, não mudará isso. Ao menos, não de imediato.

Ali, naquele ambiente, a opressão mostra sua cara mais eficaz. Entre aqueles que apoiam o presidente de extrema-direita, está a imensa maioria dos e das venezuelanas. Uma pesquisa feita com alunos de estatística do grupo de estudos migratórios e fronteira da UFRR concluiu que cerca de 93% dos venezuelanos entrevistados votariam em Bolsonaro se pudessem.

“Ainda não publicamos o resultado dessa pesquisa para não arruinar a imagem dos venezuelanos e para não desmotivar as pessoas e organizações a trabalharem com eles”, conta Márcia. “É óbvio que não negaríamos a alguém ajuda humanitária por sua posição política, mas foi um resultado frustrante”.

Segundo Márcia, a maioria dos venezuelanos e venezuelanas que chegam na fronteira com o Brasil ou são evangélicos, ou católicos conservadores – dois grupos que se autoidentificam com a direita. O único grupo que escapa dessa posição são os migrantes indígenas.

(Foto: Amanda Magnani / Revista Crisis)

“Os venezuelanos que chegam aqui só conhecem a opressão. Não recebem outros modelos de civilidade e cidadania”, explica T. “O ciclo de expropriação que vivem vem desde a Venezuela. Sua raíz não está no socialismo, mas em um capitalismo de embargos econômicos e de classes de poder que não empobrecem, mas dão sequência a esse processo. Estas pessoas são vítimas de um circuito de força geopolítica internacional gigante – muito maior que a dinâmica de suas vidas cotidianas. Mas não há condições de compreender isso quando se está com fome”.

Um novo horizonte

“Esperamos mudanças profundas na política migratória”, diz Márcia. “É muito provável que Lula não reconheça os venezuelanos como refugiados, porque este é um tema eminentemente político, e não creio que Lula mantenha um posicionamento que reconheça ou confirme a incompetência do governo de Maduro. O entendimento que o presidente tem sobre a migração, creio, será muito mais amplo. É provável que invista mais em políticas públicas a longo prazo e em residência permanente para os e as migrantes. Conhecendo sua história, também é provável que dê mais atenção às causas da migração, em sua origem, na Venezuela, já que a migração per se não é a crise, mas a consequência de questões econômicas e políticas mal resolvidas”.

Para T., no entanto, a situação não é tão linear. “Os processos são lentos e os danos institucionais causados por Bolsonaro repercutem em contradições que não podemos controlar. As soluções para os problemas complexos nunca são simples, e não podem se dar em uma simplificação forjada em dogmas que não se sustentam no longo prazo”.

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