No filme Gravidade (2013), Sandra Bullock e George Clooney caminhavam como campeões e, de repente, um projétil atinge a nave deles. Em seguida, outro, e finalmente uma chuva de lixo espacial atinge a nave com tanta força que os deixa presos no espaço.
Poderia algo semelhante acontecer na vida real? No momento em que este artigo foi publicado, havia quase 5 mil satélites artificiais orbitando nosso planeta.
Contando navezinhas
Aproximadamente metade desses satélites estão localizados em órbitas baixas, entre 180 e 2000 km acima do nível do mar. Essas órbitas são frequentemente abreviadas como LEO (Low Earth Orbit em inglês). Chamá-las de “baixas” é relativo: elas estão a uma altitude cerca de 20 vezes mais alta que o Monte Everest.
As órbitas LEO cobrem um espaço de aproximadamente 33 bilhões de quilômetros cúbicos. Para cerca de 2 mil satélites, isso nos dá aproximadamente um espaço de 300 quilômetros de diâmetro para cada um.
As chances de que eles se cruzem deveriam ser baixas, mas nem tudo é tão simples. Para começar, existem inúmeros outros satélites inativos que seguem e seguirão em órbita por muitos anos. Além disso, existem órbitas que são muito mais úteis que outras e, portanto, acumulam mais tráfego de satélites.
Como se não bastasse, o número de satélites está crescendo – e muito. Há dois anos, eram apenas metade disso. Se trata de um verdadeiro aumento exponencial.
A rede Starlink
Isso vai continuar acontecendo. E a responsabilidade é praticamente toda da empresa aeroespacial privada Space Exploration Technologies. Mais conhecida como SpaceX, esta empresa está em processo de construção de sua rede de satélites Starlink. Até o momento, ela conta com cerca de 2,4 mil satélites, enquanto que dois anos atrás tinha apenas 600.
Repassemos: um em cada dois satélites ativos faz parte da rede Starlink. E isso não é nada: a SpaceX já tem aprovação para aumentar a Starlink para 12 mil unidades. E ainda tem um pedido pendente de aprovação para adicionar mais 30 mil à rede.
Grande parte dos Falcon 9, o principal foguete da empresa, são usados e reaproveitados para lançar até sessenta satélites Starlink por vez.
E do que se trata a Starlink? O objetivo dessa rede é fornecer conectividade de Internet em escala global. E isso já não havia sido inventado? Sim, mas os atuais satélites de comunicação estão em órbitas geoestacionárias (36 mil km). Nessas órbitas, o satélite viaja na mesma velocidade que a rotação da Terra. Do nosso ponto de vista, estão “parados”.
Esses satélites geoestacionários têm várias vantagens. Para começar, a antena terrestre não precisa se mover para rastreá-los. Apontando para o satélite uma vez, funcionará para sempre. É assim que funciona, por exemplo, a DirectTV.
Outra vantagem é que você não precisa de tantos satélites. Estando a uma altitude de 36 mil km, a área de cobertura é muito ampla. Com menos de dez satélites é possível cobrir quase todas as áreas povoadas do mundo.
Mas vejamos as desvantagens: 36 mil km é uma distância muito, muito longa. É quase um décimo da distância até a Lua. Mesmo na velocidade da luz, levaríamos um quarto de segundo para ir e voltar, como limite teórico. Na prática, isso pode ser tão lento quanto alguns segundos de latência.
Para vários usos, como o streaming, é uma latência aceitável. Mas para outros, como videochamadas e festas de aniversários no Zoom, torna-se inutilizável.
Cuidado pro delay não te pegar
E como a Starlink resolve isso? Simples: aproximando os satélites. Se os colocarmos a 550 km, a latência é de apenas 25 milissegundos, comparável ao atraso que experimentamos ao usar internet a cabo.
Mas as leis da física nos dizem que quanto mais longe um satélite está, mais lento ele se move. A Lua está a 400 mil km de distância e leva 28 dias para dar uma volta em nosso planeta. Os satélites geoestacionários estão a 36 mil km de distância e demoram um dia (por isso estão “parados”). Satélites em órbitas baixas levam apenas algumas horas para dar a volta.
Sem entrar em fórmulas complicadas, vamos imaginar um laço de corda balançando sobre nossa cabeça. A força na corda em tensão seria a gravidade exercida pela terra. Se a corda for curta, teremos que girá-la muito rapidamente ou ela cairá. Se a corda for longa podemos permitir movimentos mais lentos sem que ela caia.
Voltando à rede Starlink, do ponto de vista de uma antena no solo, o satélite passa tão rápido que são necessários milhares deles para nunca perder a conectividade. É como se estivéssemos indo rápido em uma estrada falando no celular. À medida que nos afastamos de uma antena, temos que passar para a próxima ou então a chamada cai. No caso do Starlink é a mesma coisa, só que ao invés de nós nos movermos, o que está se movendo são as antenas (ou satélites).
Emporcalhando a vizinhança espacial
É assim que caminhamos para ter um céu cada vez mais coberto pelos satélites do sr. Elon Musk, CEO da SpaceX. Os astrônomos estão reclamando, porque mesmo com “apenas” 2,4 mil satélites circulando, eles já estão estragando muitas observações.
Ainda mais, em 1978, o astrofísico Donald Kessler projetou um cenário onde, com tantos satélites, uma colisão de dois deles gera uma reação em cadeia de detritos. Em outras palavras, os detritos do primeiro acidente continuarão girando até que colidam com outros satélites, o que gerará mais detritos e assim por diante até que não haja um único satélite vivo.
Esse fenômeno é chamado de Síndrome de Kessler, e é o que inspirou o filme de Sandra Bullock e George Clooney.
Este fenômeno não é apenas uma teoria, podendo acontecer na realidade. Por exemplo, em 2009, os satélites Iridium 33 e Kosmos-2251 colidiram a 42 mil km/h, deixando milhares de destroços, muitos deles ainda em órbita hoje. Se a constelação Starlink estivesse em órbita, o que aconteceu com Sandra e George em Gravidade talvez tivesse acontecido na realidade.
E como lidamos com tudo isso? Existem tratados que obrigam os satélites a serem movidos após cumprirem sua missão. Uma opção é deixá-los cair e queimar na atmosfera. Outra é enviá-los para órbitas inúteis chamadas “órbitas cemitério”. Algumas empresas estão desenvolvendo tecnologia para reduzir o impacto desse fenômeno. O que é certo é que, assim como conseguimos contaminar a água, o ar e o solo de nosso planeta, agora estamos a caminho de arruinar suas órbitas também.