O primeiro barulho que soa nos fones de ouvido na introdução do álbum Illmatic, de 1994, é o dos vagões das linhas de metrô de Nova York percorrendo os trilhos. Fundado em 1904, quatro linhas do sistema passam pelo distrito do Queens, onde o rapper Nasir bin Olu Dara Jones, mais conhecido como Nas, nasceu e viveu a maior parte da sua vida. Ao fundo, se ouve o pequeno Nasir, então com 20 anos, cantar: “Discípulo das ruas, meus raps são insignificantes / Eu atiro balas do meu cérebro como um rifle”. Num outro trecho da faixa, Nas afirma que “foi para o inferno por cheirar Jesus”.
A faixa se chama Gênesis, o mesmo nome do primeiro capítulo da Bíblia. Mas a gênese de Nas não foi como no Paraíso bíblico. Em uma entrevista para a The Source, em 1994, o rapper dá um breve relato sobre a vida em Queensbridge, o maior conjunto habitacional da América do Norte:
“Quando eu era criança, ficava apenas nos conjuntos habitacionais […] aquela merda é como uma cidade. A mentalidade de todo mundo gira em torno dos conjuntos habitacionais. Todo mundo tem que comer. É apenas a atitude lá fora, é apenas a vida. Você não pode ser otário.”
Illmatic, lançado em 1994, é considerado o maior álbum da história do rap, ou, como diria a mídia especializada, um “clássico instantâneo”. A obra de Nas ajudou a resgatar o espírito nova-iorquino, sequestrado pelo Gangsta Funk de Los Angeles, no começo dos anos 90. Foi o trabalho que melhor retratou o Zeitgeist[1], ou espírito da época, da Nova York dividida entre guetos e mansões, entre o Queens e Upper East Side, da barreira quase intransponível entre os negros e os brancos.
Era a Nova York dos anos 90, a cidade compartimentada, como foi também Argel, Luanda, Bissau, e tantas outras cidades que, durante o século XX, lidaram com o problema colonial. Cidades onde, segundo Frantz Fanon, “a polícia e o soldado, pelas suas intervenções diretas e frequentes, mantêm o contato com o colonizado e aconselham-no, com golpes de coronha ou incendiando as suas palhotas, que não faça qualquer movimento”.[2]
A região hoje conhecida como Queens foi fundada em novembro de 1683, ainda sob a administração colonial britânica. Durante a Guerra de Independência dos Estados Unidos, terminada em 1783, o Queens ainda era ocupado pelas forças coloniais. Em 1939, o conjunto habitacional Queensbridge foi inaugurado e, durante a década de 1950, grande parte das famílias com renda superior a 3 mil dólares por ano que habitavam nesse projeto habitacional foram transferidas para moradias de classe média. Não é segredo que a maioria das famílias com essa renda eram brancas, o que conferiu a Queensbridge um rosto e uma vivência majoritariamente negra. Dados apontam que, em 2013, Queensbridge tinha uma população total de 6.105 pessoas. 61,4% eram negros, 30,1% eram hispânicos e latinos, 1,9% eram asiáticos, 1,0% eram indigenas americanos e 2,4% se consideravam multirraciais. Apenas 2,3% eram brancos.
Os anos 70 foram especiais para a história de Nova York. O bairro do Bronx enfrentou um grande incêndio, causado de forma criminosa por proprietários de imóveis na região, como forma de lidar com o colapso social e a fuga de trabalhadores e famílias brancas, tornando as casas do Bronx extremamente desvalorizadas. O Harlem, outrora habitado por imigrantes judeus, irlandeses e italianos, se tornou outro gueto negro, também como resultado de uma bolha imobiliária que assolou a região. Vários prédios e residências do bairro foram compradas por Philip Payton Jr. – à época, um agente imobiliário negro –, e depois vendidas para famílias negras que fugiam do sul americano, já um território de completo apartheid. O apagão de 1977, ocorrido na cidade de Nova York, foi um ponto de virada na tragédia que acometeu o povo negro norte-americano. Em 1971, dois terços da vida econômica do Harlem dependiam do jogo clandestino; nos anos seguintes, esse posto seria ocupado pelo tráfico de heroína e crack. Entre 1976 e 1978, o Central Harlem perdeu 30% de sua população.
A socióloga Tricia Rose dá um panorama sobre a situação de Nova York, e quais foram os ingredientes para o surgimento do hip-hop na cidade:
“Nos anos 1970, as cidades de todo o país estavam perdendo gradualmente o financiamento federal para serviços sociais, as empresas de serviços de informação começaram a substituir as fábricas industriais e os construtores comerciais compravam imóveis para convertê-los em moradias de luxo – deixando os residentes da classe trabalhadora com habitação acessível limitada, encolhimento do mercado de trabalho e diminuição dos serviços sociais. Os bairros mais pobres e os grupos com pouco ou nenhum poder eram os menos protegidos e tinham as menores redes de segurança.”[3]
Noutro trecho, a autora explica o processo de devastação que o Bronx enfrentou:
“Entre o final da década de 1960 e meados da década de 1970, as taxas de desocupação na parte sul do Bronx, onde a demolição foi mais devastadora, dispararam. Proprietários desesperados venderam suas propriedades o mais rápido possível, geralmente para slumlords[4] [‘proprietários de favelas’] profissionais, o que acelerou a fuga de inquilinos brancos para as seções do norte do Bronx e para Westchester. Lojistas igualmente ansiosos venderam suas lojas e estabeleceram negócios em outros lugares. Ao anunciar a via expressa de Moses como um sinal de progresso e modernização, a administração da cidade não estava disposta a admitir a devastação que ocorrera. Como muitos de seus projetos de obras públicas, a via expressa Cross-Bronx de Moses atendeu os interesses das classes superiores em detrimento dos interesses dos pobres e intensificou o desenvolvimento das vastas desigualdades econômicas e sociais que caracterizam a Nova York contemporânea. Os residentes negros e hispânicos recentemente ‘realocados’ no sul do Bronx ficaram com poucos recursos da cidade, liderança fragmentada e poder político limitado. Os efeitos desastrosos dessas políticas da cidade passaram relativamente despercebidos na mídia até o ano de 1977, quando dois eventos críticos fixaram Nova York e o sul do Bronx como símbolos nacionais de ruína e isolamento. Durante o verão de 1977, uma extensa queda de energia isolou Nova York, e centenas de lojas foram saqueadas e vandalizadas. Os bairros mais pobres (as áreas do sul do Bronx, Bedford Stuyvesant, Brownsville e Crown Heights no Brooklyn, a área da Jamaica no Queens e o Harlem) – onde a maioria dos saques ocorreu – foram descritos pelos órgãos de mídia da cidade como zonas sem lei onde o crime é autorizado e o caos ferve logo abaixo da superfície.”[5]
Nessa mesma época, Queensbridge testemunhou um aumento na criminalidade. Mas foi durante o auge da epidemia de crack, em 1986, que as coisas pioraram na região. Naquele ano, Queensbridge teve mais assassinatos do que qualquer complexo habitacional na cidade de Nova York. Em 1990, dois em cada três assassinatos na cidade estavam ligados às drogas, principalmente ao crack.
Mas essa violência teve outras consequências. Brendan Frederick, colunista da aclamada revista XXL, escreveu:
“Desde a década de 1980, o Projeto Habitacional Queensbridge, na cidade de Nova York, foi documentado talvez melhor do que qualquer outra localização geográfica. Começando com o dominante Juice Crew do super produtor Marley Marl nos anos 80 até os pilares dos anos 90 como Nas, Cormega e Capone, a Bridge produziu o maior talento per capita de qualquer bairro de Nova York”.
De fato, o Queens de Nas não era somente uma das regiões mais perigosas de Nova York, mas o bairro mais prolífico em toda a história da música – algo como o Estácio de Sá, no Rio de Janeiro.
Feitas as devidas apresentações, vamos entrar no mundo colonial de Nova York, a cidade dividida em duas.
New York: estado mental
A tradução da palavra “Illmatic” é algo como “sinistro”, “medonho”, “bizarro”. Literalmente, algo mais sinistro do que qualquer outra coisa muito sinistra. Mas a inspiração para o nome do álbum veio de Illmatic Ice, conhecido morador dos projetos habitacionais do Queens.
O estado mental narrado na segunda faixa do disco, N.Y. State of Mind, é reflexo das condições sociais e econômicas do bairro. A História das mentalidades, ramo da teoria da história difundido pela Escola dos Annales durante o século XX, trata dessa questão como “a relação dialética entre, de um lado, as condições objetivas da vida dos homens e, de outro, a maneira como eles a narram e mesmo como a vivem.” Foi a mentalidade de uma parcela da cidade de Nova York, do Queens e de seus conjuntos habitacionais, que ajudaram Nas a contar uma fração da história de sua vida que, apesar de uma micro-história[6], faz parte de um projeto concreto de maior amplitude.
“Eu guardo um pouco de E&J, sentado na beirada da escada
Ou nas esquinas apostando uma grana num jogo de dados
Tirando sarro dos viciados tentando vender uns alto-falantes quebrados
Bolos de granas descolados ligeiros, neguinhos sempre falando merda
Me lembrando da última vez que a força-tarefa apareceu
Neguinho passou voado pela quebrada atirando
Hora de começar uma revolução, matar alguém, e vazar para Houston.”
A revolução à qual Nas se refere não é a revolução no sentido marxista do termo, ainda que, indiretamente, o rapper faça alusão ao Partido dos Panteras Negras. A mentalidade dos projetos e a postura de grande parte de seus habitantes, era de pura violência, da busca pela sobrevivência e da própria inserção no sonho americano. Karl Marx afirmava que “há um primeiro pressuposto de toda a existência humana, a saber, que os homens devem estar em condições de poder viver a fim de ‘fazer história’’[7]. Mas, para viver, é necessário antes de mais nada beber, comer, ter um teto onde abrigar-se, vestir-se, etc”. Como fazer a história, cumpri-la ou traí-la, em tais condições?[8] E como AZ, no primeiro verso da terceira faixa do disco, “Life is a bitch”, nos faz notar:
“Foda-se quem é o melhor,
Uma pessoa sempre depende de grana
E minha mentalidade é orientada nela.
Tô destinado a viver o sonho de todos
os meus parceiros que não conseguiram,
Porque nós éramos jovens na quebrada,
Tipo os Five Percenters, mas algo deve ter
nos dominado, porque todos nós viramos pecadores.”
Quando resgata o espírito dos Five Percenters[9], AZ nos faz retornar à Bíblia. Assim como no pecado original[10], algo os distanciou dos ensinamentos divinos, dando início à imperfeição humana. Imperfeição essa que, poeticamente, explica a condição de completa violência vivenciada em Nova York.
Retornando a Marx, a fuga da realidade em “Life is a bitch” se dá, no plano idealista, pelas crenças religiosas, e no plano material, pelo tráfico, pela violência, pela sobrevivência “por qualquer meio necessário”. A realidade concentrada, essa de pura violência, não deixa espaço para fé, milagres e sorte. Ela é tão latente quanto explícita. E então, a solução aparente é versada: “até o dia que desaparecermos e virarmos pó, eu e meus manos estaremos em algum lugar descolando grana.”
Essa mentalidade de construir o dia de amanhã, custe o que custar, é não apenas o reflexo de uma miséria constante, mas, num plano ideológico, a tentativa de retirar das pessoas negras qualquer possibilidade de vivenciar uma adolescência “normal” nos padrões ocidentais. A violência e a miséria batem cedo na porta, fazendo com que esses sujeitos adentrem mais cedo o mercado de trabalho – ou, na pior das hipóteses, as fileiras de gangues, facções e outras atividades criminosas. Não é incomum perceber, em nossas mentes, a sensação de que vivemos muito mais do que parece. Essa sensação é fruto, em certa medida, de uma construção objetiva de perdas, mudanças abruptas, histórias interrompidas de forma precoce.
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Nas, com 19 anos, consegue narrar histórias de amigos assassinados com a mesma facilidade com que atravessa a rua. A “alameda da memória” do rapper é uma alameda pavimentada com sangue negro; sangue colonizado. A divisão racial de um país como os Estados Unidos – que fez com que o Partido dos Panteras Negras passassem a chamar a polícia de “Gestapo” –, era tão evidente que, até mesmo quando Nas invoca os Deuses, ele o faz no sentido do Deus Negro, algo que os Five Percenters professaram no começo dos anos 60, e que foi peça fundamental no surgimento do hip-hop. Deuses esses que, em tempos de Jim Crow, representavam algo como um Robin Hood Negro. Entre as práticas do Kung-Fu para a autodefesa e os assaltos de mercados brancos – nos quais, após a ação, deixavam sacolas com mantimentos nas portas das casas de mulheres negras –, esses jovens eram as respostas do povo negro, ainda que longe de ser um movimento de massa, para a situação colonial. Era o espírito de Malcolm X materializado. Eram, de forma embrionária, a tese 11 sobre Feuerbach.[11]
One for the money, two for the pussy and foreign cars: revolução e contra-revolução negra
Os anos 90 foram palco de grandes revoltas negras nos Estados Unidos. A Marcha de 1 milhão – organizada por Louis Farrakhan[12], líder da Nação do Islã, retratada no filme “Get on the Bus”, de Spike Lee –, foi uma das grandes demonstrações de organização negra no século XX. Os incidentes de Los Angeles em 1992[13] também constituíram outro caso emblemático dessa efervescência que teimava em florescer no seio do povo negro estadunidense. Quando Nas canta em “The World is Yours”, quarta faixa do álbum, que “o mundo é de vocês”, é como um rito de apoio, uma noção de que só a “correria” pode os ajudar. É claro que, durante toda a história, sabemos que a meritocracia tem cor e endereço. E a grande questão de Illmatic gira em torno dessa questão: como fugir do sistema de opressão com as armas do corre, o crime e as únicas possibilidades existentes?
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É de se notar não apenas uma visão individualista do problema e de sua solução, mas também uma completa falta de esperança em qualquer outra possibilidade. E se a cultura, as crenças e as mentalidades são ditadas pela classe em poder, é difícil enxergar um horizonte para além do que está posto. É importante lembrar ainda que, após o assassinato de Malcolm X e a destruição do Partido dos Panteras Negras, o movimento negro americano entrou em um hiato. A falta de uma grande liderança e de um grande movimento de massas, muito por conta da herança do Macartismo[14], destruíram as bases de qualquer tentativa de organização por parte do povo preto. E quando não há um movimento que consiga aglutinar as massas oprimidas, o que sobra é a sobrevivência individual. O ponto de referência se torna o mundo branco, a violência branca, a conquista branca, a vitória branca, – e, por branco, me refiro ao colonizador, ao estado que fundamenta a barbárie racista. A descrição de Nas sobre o seu sonho de libertação e ascensão pode ser colocado dentro do que Fanon chamou de “inveja do colonizado”[15], ou seja, que o que se almeja, por parte do colonizado, é a posse do mundo do colonizador: suas riquezas, seus bens, a sua vida.
Huey Newton, em seu texto “O manejo correto de uma revolução”, traz boas reflexões sobre essa dialética entre a luta de massas e a organização do povo:
“O primeiro homem que jogou um coquetel molotov não é conhecido pessoalmente pelas massas, mas ainda assim a ação foi respeitada e seguida pelo povo. Da mesma forma, as ações do Partido serão imitadas pelo povo – se o povo respeitar estas atividades. A principal tarefa do Partido é fornecer liderança para o povo. Deve ensinar pela prática e pela teoria os corretos métodos de estratégia de resistência prolongada. Quando o povo aprender que não é mais vantajoso resistir indo para as ruas em grande número, e quando ver as vantagens das ações do método da guerra de guerrilhas, irá rapidamente seguir este exemplo. Mas, primeiramente, eles devem respeitar o Partido que está transmitindo esta mensagem.”[16]
Illmatic acaba sendo não apenas o relato de um colonizado desiludido, mas também o produto de um povo que carece de organização E, assim como grande parte da produção do rap, é retrato de uma cultura altamente afundada na lógica capitalista, de um povo abandonado à sua própria sorte.
Como Albert Memmi bem pontuou, “a ideologia de uma classe dirigente, sabemos disso, faz se adotar em grande parte pelas classes dirigidas.[…] Ao concordar com essa ideologia, as classes dominadas confirmam, de certa maneira, o papel que lhes foi atribuído.”[17]
Essa violência desenfreada, narrada em “One love”, sétima faixa do álbum, é tanto causa como consequência. São os amigos presos, assassinados e os caguetas que dão o tom quase claustrofóbico ao bairro do Queens e ao álbum. A polícia, face do colonialismo, é o ator principal, mas não o único. A violência que invadiu as comunidades, como os ibéricos que invadiram a África, não só divide os povos colonizados, como também os extermina entre si.
E é dentro desse contexto material-psicológico que a violência retratada em Illmatic se faz a norma. Foi por meio da violencia que os Estados Unidos se libertaram do colonialismo britânico, mas foi também por meio da violencia que o país fez a sua “expansão para o Oeste”, massacrou negros, indígenas e latinos, e se tornou a maior potência imperialista da história.
I rap for listeners, bluntheads, fly ladies, and prisoners: a prisão como escravidão moderna
Os estudiosos liberais afirmam que a causa da diminuição da criminalidade em Nova York se deu por meio de medidas mais severas com relação a pequenos crimes – como assaltos, arrombamentos de casas, roubos de veículos, dentre outros delitos. Outra abordagem, conhecida como “Teoria das janelas quebradas”, foi utilizada pelo Estado na cidade de Nova York, para, supostamente, influenciar na diminuição da criminalidade na cidade.
Num nível ainda mais obscuro, alguns cientistas afirmaram que o nível de criminalidade – e sua diminuição –, estavam atrelados ao nível de chumbo[18] presente no sangue de jovens americanos. Segundo esse estudo, o contato com esse elemento químico causaria “dificuldades de aprendizagem, diminuição do QI, transtorno de déficit de atenção e hiperatividade.” Não é difícil conectar esse estudo com a pseudo-ciência que prevaleceu em países construídos sobre o racismo e a eugenia. Os negros foram cobaias em diversos estudos, o mais conhecido sendo o “Estudo de Sífilis de Tuskegee”, onde mais de 100 afro-americanos foram mortos.
De toda forma, o que se viu após os projetos citados acima foi uma explosão do encarceramento na cidade de Nova York e nos Estados Unidos como um todo. O direito burguês se passa como um grande crítico dos “campos de trabalho forçado”, das políticas adotadas por países socialistas com relação à prisões, mas não vê outra saída para o criminalidade que não seja a cadeia ou o assassinato de pessoas. E a cadeia, no sistema de capitalismo racial, é só mais uma ferramenta de manutenção do colonialismo interno.
São essas figuras que Nas traz em sua memória ainda jovem, mas cheia de personagens marcantes. Seja o seu amigo Will, morto em uma briga, ou as “ladies and prisoners”, Nasir retrata um momento histórico em que as grades são extensões das ruas. “One love” e “Memory lane” são esses documentos históricos, onde Nas fala das prisões de rappers como Lakey The Kid e Cormega, fazendo uma ponte entre sua vida nas ruas e as cadeias onde seus amigos estão encarcerados.
Resgatar a memória das prisões americanas é resgatar a memória de George Jackson. O revolucionário e membro do Partido dos Panteras Negras – que, após um assalto à mão armada, levando 70 dólares de uma pessoa, foi levado à prisão perpétua –, revolucionou todas as cadeias americanas, abarrotadas de negros e hispânicos. O “autêntico dragão”[19], após o contato com o marxismo, e em especial, o maoísmo, se tornou um dos maiores símbolos da luta anti-cárcere no século XX – recebendo homenagens até mesmo de Bob Dylan[20].
A importância de George Jackson pode se exemplificar mesmo no ato de sua morte. A Revolta de Attica – a “comuna de Paris dos prisioneiros”, ocorrida em 1971 –, dentre outros motivos, teve o seu estopim no assassinato de Jackson.
A prisão do Autêntico Dragão, após roubar uma quantia de 70 dólares, é um símbolo ímpar do sistema prisional norte-americano. Muitas das figuras retratadas em Illmatic cumpriram pena por motivos semelhantes. A maioria em detrimento das condições desumanas a que eram submetidas. A prisão, para George Jackson, era um espaço dialeticamente transformador. Ele, que aprendeu o marxismo atrás das grades, via no movimento prisional uma das chaves para a libertação nacional do negro.
“Bem, todos nós estamos familiarizados com a função da prisão como uma instituição que atende às necessidades do regime totalitário. Temos que destruir essa função; a função tem que não ser mais viável, no final. É uma das instituições mais fortes de apoio ao regime totalitário. Temos que destruir sua eficácia, e é disso que se trata o movimento prisional. O que estou dizendo é que eles nos colocam nestes campos de concentração aqui da mesma forma que colocam pessoas em jaulas de tigres ou ‘aldeias estratégicas’ no Vietnã. A ideia é isolar, eliminar, liquidar as seções dinâmicas do movimento geral, os protagonistas do movimento. O que temos que fazer é provar que isso não vai funcionar. Temos que organizar nossa resistência uma vez dentro, não lhes dar paz, transformar a prisão em mais uma frente de luta, derrubá-la por dentro.”[21]
Ao mesmo tempo, a cadeia ainda é, concentradamente, um lugar de adoecimento e de não-ressocialização. Craig Haney, PhD e psicólogo da Universidade da Califórnia, tem conduzido estudos sobre a relação entre as condições psicológicas de prisioneiros e o próprio conceito de prisão. Em uma entrevista para a American Psychological Association, o pesquisador dá um parecer sobre o adoecimento causado pelo sistema prisional americano:
“Haney tem estudado as chamadas prisões ‘supermax’ – unidades de alta segurança nas quais os prisioneiros passam até 23 horas por dia em confinamento solitário por anos seguidos. A pesquisa de Haney mostrou que muitos prisioneiros em unidades supermax experimentam níveis extremamente altos de ansiedade e outras emoções negativas. Quando liberados – muitas vezes sem qualquer período de ‘descompressão’ em instalações de segurança inferior – eles têm poucas das habilidades sociais ou ocupacionais necessárias para ter sucesso no mundo exterior.”
Ainda segundo a pesquisa de Haney, a política de reabilitação no sistema prisional norte-americano, que era parte fundamental da ressocialização de presos, deu lugar a uma abordagem de “endurecer com o crime”, e a reabilitação ficou em segundo plano. Essa mudança causou um crescimento explosivo na população carcerária, tendo no máximo um efeito modesto nas taxas de criminalidade.
Um outro estudo, publicado na Harvard Political Review, nos mostra que, após três anos de libertação do sistema prisional, 2 em cada 3 ex-prisioneiros retornam às masmorras americanas. Um processo de reincidência que, dentre outras coisas, faz girar o capital do infame projeto de prisões privadas. Como bem disse Bezerra da Silva: “A cadeia é igual show: tem que estar lotada para dar dinheiro.”
Tudo isso se sintetiza na 13ª emenda da Constituição dos Estados Unidos, aprovada em 8 de abril de 1864, que, ao mesmo tempo em que abolia a escravidão em todo o territorio norte-americano, manteve esse processo de desunaminzação como forma de punição para crimes. A alienação do estado burguês em sua forma mais pura, a extração de mais-valia sobre corpos racializados, uma das gêneses do capitalismo.
E é com maestria que Nas, em seu último verso, na última faixa de Illmatic, afirma que “seus raps deveriam ser trancados em uma cela.” É o relato brutal e poético de uma Nova York projetada para matar a todos que, em sua pele, carregam as marcas de uma democracia fundada sobre sangue, suor, lágrimas e violência. Uma cidade compartimentada.