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Um legado colonial brutal é a origem do fogo que varre a França

A revolta pelo assassinato do jovem Nahel M. compõe um quadro mais amplo de agitação contra o colonialismo francês a nível mundial.
A revolta pelo assassinato do jovem Nahel M. compõe um quadro mais amplo de agitação contra o colonialismo francês a nível mundial. Por Vijay Prashad | Globetrotter
Protestos dos Coletes Amarelos na França, em 2019. (Foto: Norbu Gyachung)

No sábado, 1º de julho de 2023, uma grande multidão se reuniu dentro e ao redor da Mesquita Ibn Badis, em Nanterre, na França, onde um rapaz de dezessete anos, Nahel M, foi velado e depois enterrado. Nahel M, de origem argelina e tunisiana, foi morto a tiros por um policial durante uma parada de trânsito. Ficou claro que o policial não agiu em legítima defesa, mas atirou no jovem a sangue frio. Uma onda de indignação tomou conta do país, com protestos e tumultos em toda a França. O presidente francês Emmanuel Macron enviou forças de segurança para conter os protestos, o que inflamou os manifestantes, cuja revolta contra a polícia está em níveis muito altos. A antipatia pela polícia foi reforçada pela linguagem adotada pelos sindicatos da polícia (Alliance Police Nationale e UNSA), que chamaram os manifestantes de “vermes” e “hordas selvagens” e disseram que “não é mais suficiente pedir calma; ela deve ser imposta”. Esse é um ato de guerra da polícia francesa contra a população francesa que vem das antigas colônias da França.

O presidente Macron chamou a morte de Nahel M de “inexplicável”, mas essa não é uma resposta na qual se possa confiar. O racismo contra pessoas de ascendência árabe e africana na França se tornou quase banal, algo que acontece sem que nenhuma sobrancelha se levante. Quando o Ministério do Interior da França divulgou os números de ataques racistas e assassinatos de 2021, a Comissão Consultiva Nacional de Direitos Humanos da França (CNCDH) disse que a situação era “alarmante”. Sophie Elizéon, chefe da delegação interministerial para a luta contra o racismo, o antissemitismo e o ódio anti–LGBT (DILCRAH), disse: “o que está sendo relatado no terreno é a exacerbação de um [comportamento] descarado”. O assassinato de Nahel M, nesse contexto, foi absolutamente explicável – foi o resultado de uma toxicidade social geral em relação às minorias e que se expressa por meio da força policial. Não é de se admirar que o Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos tenha declarado: “Este é um momento para o país abordar seriamente as graves questões de racismo e discriminação na aplicação da lei”.

Profundas questões coloniais

A França nunca se conformou com sua herança colonial ou sua mentalidade colonial. Os colonizadores franceses foram para as Américas no século XVI e, cem anos depois, estabeleceram várias plantações no Caribe, operando uma economia baseada na escravidão. No centro do empreendimento colonial francês estava a ilha de Hispaniola, metade da qual é o atual Haiti, de onde o Império Francês extraiu um enorme volume de sua considerável riqueza. A atitude da França em relação às suas colônias e ao seu desejo de liberdade está resumida na história do Haiti. Quando a população afrodescendente do Haiti se levantou em uma grande rebelião em 1791, a França – borbulhando com sua própria Revolução de 1789 – negou aos haitianos sua liberdade e lutou até 1804 para privar o Haiti de sua independência. Mesmo depois de o Haiti ter derrotado os fazendeiros franceses, o Estado francês – com o total apoio dos Estados Unidos – forçou o governo haitiano em 1825 a pagar uma enorme indenização de 150 milhões de francos franceses, que o Haiti só pagou em 1947 ao Citibank (que comprou a dívida depois de 1888).

A reticência da França em permitir que suas próprias pretensões universais (Liberté, Egalité, Fraternité – a frase da revolução que foi o centro da Constituição da Terceira República de 1958) fossem ouvidas nas colônias ocorreu desde 1804 no Haiti até as guerras contra a libertação nacional pelos franceses, da Argélia ao Vietnã, nas décadas de 1950 e 1960. Essa história é tão terrível que os estudantes franceses não a aprendem de maneira clara. Se perguntarem a um estudante francês quantos argelinos morreram devido à brutalidade do regime francês durante a guerra de libertação (1954–1962), dificilmente ele saberá o número real, que é de mais de um milhão; tampouco saberá que, quando trinta mil argelinos marcharam em Paris em 17 de outubro de 1961, a polícia francesa matou pelo menos cem deles e jogou seus corpos no rio Sena, enquanto prendia pelo menos quatorze mil pessoas. Essa é uma história não reconhecida, e uma história colonial não reconhecida confunde o público francês que, portanto, não está preparado para as estruturas coloniais que se afirmam por meio das forças policiais e das contínuas aventuras coloniais da França no mundo.

Ao longo dos últimos seis meses, os governos de Burkina Faso e Mali expulsaram as tropas francesas de seus territórios. Eles argumentaram que a intervenção francesa de 2013, supostamente contra a al-Qaeda, na verdade intensificou a instabilidade na região, e que a França, na verdade, se associou a grupos secessionistas contra os estados nacionais. Um crescente sentimento antifrancês e antiocidental se estende desses países do Sahel da África rumo ao norte, até a Argélia e o Marrocos, onde o presidente Macron foi hostilizado em suas recentes visitas. A confiança está crescendo na região do norte da África, onde as pessoas agora têm clareza de que as intervenções francesas não são realizadas para o bem do povo africano, mas para os interesses restritos da França. Por exemplo, os franceses continuam a guarnecer a cidade de Arlit, no Níger, não por motivos de Mission civilisatrice [missão civilizadora], mas para alimentar os reatores nucleares franceses; um terço de todas as lâmpadas da França são alimentadas pelo urânio de Arlit. Há uma onda geral de sentimento antifrancês nas antigas colônias do país, agora inflamado pelo assassinato de um menino de origem tunisiana e argelina.

A dívida e o fardo francês

Apenas alguns dias antes do assassinato de Nahel M, o presidente Macron organizou a Cúpula de Paris para um Novo Pacto Financeiro Global. A ideia dessa cúpula surgiu com a primeira–ministra de Barbados, Mia Mottley, que sugeriu que os países especialmente vulneráveis ao clima – principalmente os estados insulares de baixa altitude – precisavam ter acesso mais fácil a financiamento para compensar os perigos da elevação das águas do mar. Mottley argumentou que o custo da mitigação – construção de muros marítimos – e os custos de desastres, bem como o alto custo de empréstimos para energia verde, tornavam impossível para países como Barbados se protegerem ou realizarem o tipo de transição necessária à medida que os desastres climáticos aumentavam. “O que é exigido de nós”, disse Mottley, “é a transformação absoluta, e não a reforma, de nossas instituições”.

A cúpula de Macron sobre o Pacto Financeiro foi tão vazia quanto as promessas de reformar a polícia francesa ou as atitudes coloniais da França em relação aos estados africanos. Akinwumi Adesina, chefe do Banco Africano de Desenvolvimento, disse que “só a África perde de 7 a 15 bilhões de dólares por ano por causa das mudanças climáticas, e isso vai aumentar para… quase 50 bilhões de dólares por ano até 2040. Portanto, o mundo precisa cumprir seu compromisso, os países desenvolvidos, a promessa de 100 bilhões de dólares” que eles fizeram. As obrigações e promessas do tratado feitas desde pelo menos 2009, disse Adesina, foram descumpridas. ” Quer dizer, é uma quantia muito pequena em comparação com a escala do problema, mas, ao não cumpri-la, criou–se uma crise de confiança nos países em desenvolvimento.”

Macron e o novo presidente do Banco Mundial, Ajay Banga, fizeram discursos que soaram como se pudessem ter sido feitos há mais de uma década. A mesma linguagem, as mesmas promessas cansadas. “Esperança e otimismo”, disse Banga, para um público que não estava se sentindo esperançoso ou otimista. Pelo menos Macron colocou algumas sugestões tangíveis na mesa, como um imposto global sobre o transporte marítimo, sobre a aviação e sobre os ricos para arrecadar 5 bilhões de dólares para um fundo de perdas e danos. É improvável que o setor corporativo, que tem influência na Organização Marítima Internacional (que cuidará dos impostos sobre a navegação), permita o aumento da tributação nesse setor.

O secretário-geral da ONU, Antonio Guterres, apontou o dedo para o resquício da mentalidade colonial e da estrutura neocolonial quando se trata de financiamento. Os Direitos Especiais de Saque (SDRs) do Fundo Monetário Internacional estão disponíveis para amenizar o impacto negativo da crise permanente da dívida e para levar as tão necessárias finanças emergenciais aos países mais pobres. Mas mesmo nisso, disse Guterres, a União Europeia – com uma população total de 447 milhões de pessoas – recebeu 160 bilhões de dólares em SDRs, enquanto o continente africano – com uma população total de 1,2 bilhão de pessoas – recebeu apenas 34 bilhões de dólares em SDRs. “Um cidadão europeu recebeu, em média, quase 13 vezes mais do que um cidadão africano”, destacou Guterres. “Tudo isso foi feito de acordo com as regras. Mas vamos encarar os fatos: essas regras se tornaram profundamente imorais.” Ele poderia estar falando sobre o regulamento da polícia francesa.

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