“O fato de os movimentos de independência serem em geral marcados, logo na sua fase inicial, por um surto de manifestações de carácter cultural, fez admitir que esses movimentos são precedidos por um ‘renascimento cultural’ do povo dominado. Vai-se mesmo mais longe, admitindo que a cultura é um método de mobilização de grupo e até uma arma na luta pela independência.” [1]
Quando, em 1492, Colombo desembarcou nas Antilhas, começava ali – ao menos para os europeus – uma história de sucesso e riqueza. É claro que já havia povos, histórias e cultura, mas, para a historiografia europeia, tudo o que existiu antes das botas ibéricas pisarem nos ricos solos do Novo Mundo seria colocado numa mesma caixa, sob a etiqueta “pré-colombiano”.
Existem várias denominações para a região chamada de Ilha de São Domingos, nome que causou calafrios até nos mais sanguinários escravocratas europeus. Os nativos que ali estavam há pelo menos sete mil anos – povos Arauaques e Caraíbas –, conheciam a ilha como Quisqueya. Colombo denominou a ilha de La Española. Embora a discussão sobre o real nome que os povos originários deram à ilha seja bastante complexo, C.L.R James nos conta que o nome Haiti era um vocábulo de origem caribenha, que significava “montanha”, termo oriundo de Ahti.[2]
A região foi disputada a ferro e fogo por espanhóis, ingleses e franceses, com a contenda chegando ao fim em 1697, com o Tratado de Ryswick, que deu a Luís XIV de França o poder sobre a parte ocidental da Ilha de Saint-Domingue, a “A Pérola das Antilhas”.
O apelido se explica pela importância da região no contexto do desenvolvimento capitalista, apoiado pelo trabalho escravo no Novo Mundo. Quase 800 mil africanos foram enviados para essa ilha de 76.192 km, banhada pelo Mar do Caribe e pelo Oceano Atlântico, e com um solo tão rico que, em alguns anos, faria daquela terra a menina dos olhos do Império colonial francês.
Dois anos antes da Revolução Haitiana estourar, a ilha era responsável por dois terços do comércio exterior francês[3], produzia cerca de 40% do açúcar e 60% do café importado para a Europa[4] e era o maior mercado individual de tráfico de africanos escravizados. Era a maior e mais rica colônia de todo o mundo.
Mas a mistura entre a crueldade escravagista, a luta por libertação negra e palavras de ordem oriundas de uma Paris revolucionária mudariam para sempre a história da outrora Ilha de São Domingos, hoje República do Haiti – a primeira República fundada por ex-escravos, a única revolução anti-escravagista vitoriosa, onde o Vodu comandou a festa dos oprimidos e dos explorados.[5]
Dos Voduns aos Loas: cultura ancestral e cultura revolucionária
O culto aos Voduns tem origem nos povos Jejes, Fons e Maís da África Ocidental. Todos esses povos se agrupavam no grande Reino do Daomé, à época uma potência regional que, dentre outras coisas, foi importante fonte de africanos que, no Novo Mundo, se tornaram escravos. Esses escravos eram, em geral, prisioneiros das guerras entre o Reino do Daomé com o Império de Oyo, seu antigo inimigo. Eram trocados com os europeus por mercadorias, relação que fazia parte do chamado comércio triangular. Foi assim que os primeiros daomeanos chegaram à Ilha de São Domingos.
É importante frisar que essas relações de troca não tinham cunho racial, como a historiografia caribenha tem observado há décadas. Outra questão importante é que, para além das guerras contra outros povos africanos, os Daomeanos lutaram por décadas contra os franceses, quando foram finalmente derrotados, em 1894, no curso do imperialismo europeu sobre a África, decidido na Conferência de Berlim, entre 1884 e 1885.
O canto é um dos pilares da cultura do antigo Daomé – na realidade, é um elemento básico da cultura africana em geral – e isso pode ser visto em diversos relatos escritos de viajantes europeus que faziam trocas com os povos da Costa da Mina. Um desses relatos, registrado na obra de Luis Nicolau Parés[6], dá conta da relação entre os cânticos e as façanhas do Reino do Daomé, musicalizando sua história, vitórias militares e estruturas de classe:
“Os cantos Nesuhue condensam o ethos bélico do Daomé e a ideologia de expansão militar que caracterizou sua história. Nos cantos Hoga constam diversas alusões à guerras contra povos vizinhos, como os Agonlis, os Mahis, os Uemenus, ou os reinos iorubás de Oyó e de Save. Também há referências às guerras contra os franceses, no início da dominação colonial, e às disputas intestinas, como entre Guezo e Adandozan, ou, já sob controle francês, entre Behanzin (Gbɛhanzìn) e Agoli-Agbo (Agoliágbò).”
Ainda na obra de Parés, podemos notar como na expressão da incorporação dos Voduns as danças e os cânticos constituíam uma expressão da historicidade e memória para os daomeanos:
“Os corpos atuados dos médiuns trazem momentaneamente para a visibilidade do presente a invisibilidade do passado. Por sua vez, os espíritos, na sua capacidade de atuar papéis sociais, constituem matéria privilegiada para a produção de história e de significado cultural. Junto às marcas inscritas nas danças, nos gestos e nas atitudes, outros códigos rituais, como os cantos, o vestuário ou a música, contribuem para a expressão, transmissão e transformação da memória coletiva. Os rituais de possessão seriam, assim, não apenas ‘teatro vivido’, mas história vivida, história atualizada e reescrita continuamente na performance.”
Não é necessário fazer uma explicação geral do que é o culto aos Voduns – algo que pode ser estudado a fundo em obras como “A Formação do Candomblé” e “O rei, o pai e a morte: A religião vodum na antiga Costa dos Escravos na África Ocidental”, do já citado Luis Nicolau Parés. O que nos importa é entender que, da religião à guerra, a música sempre esteve presente nos povos daomeanos, e essa essência é de suma importância para entender a sua modificação na Ilha de São Domingos, quando os Voduns se tornam Loas, e os cânticos de guerra se tornam cânticos revolucionários.
Assim como na África – onde as culturas e religiões se modificaram diante da materialidade das trocas culturais, oriundas ou não das guerras –, em São Domingos, e já sob o contexto da escravidão, esses povos adotaram novas formas de adorar seus Deuses, assim como novas formas de guerrear. Mudanças nos nomes, nos rituais e o sincretismo com santos católicos foram maneiras oferecidas pelo momento histórico para a sobrevivência espiritual e material desses negros subjugados.
(Cantiga para o vodum Mawu, Ser Supremo dos povos Eués–Fons.)
E foram durante reuniões como essas, entre pessoas, tambores e deuses, que nasceria o ideal do Haiti, que só se materializou após uma sangrenta guerra revolucionária de doze anos. A necessidade de se libertar colocou os homens e os deuses lado a lado, por um bem comum: o fim da escravidão.
Sem o objetivo de explicar a Revolução Haitiana de forma completa, mas, sim, ligando alguns dos mais importantes eventos da insurreição com a cultura dos negros – dialeticamente sintetizadas com formas de cultura francesa, espanhola e nativa –, quero mostrar como a força material, a escravidão, transformou a cultura desse povo, e como sua música, dança e religião se materializaram como uma das armas responsáveis por expulsar os franceses, possibilitando a declaração do Haiti livre.
Tambores de Vodu e trombetas do Apocalipse
Quando, em 1789, os negros, há muito escravizados em São Domingos, viram a revolução tomar conta da metrópole, foi um susto e um prenúncio de novos tempos. Os ideiais de Liberdade, Igualdade e Fraternidade poderiam acometer os negros e mulatos? Os acontecimentos na França influenciaram diretamente a movimentação dos escravos. Em contrapartida, a movimentação dos escravos em São Domingos também influenciou o processo da Revolução Francesa, principalmente em sua fase mais radical, ocorrida entre 1792 e 1795 – a fase jacobinista. Existem muitos debates acerca dos motivos que levaram a Constituição Jacobina a abolir a escravidão em todas as colônias do império francês[7], mas mesmo essa medida não foi o suficiente para frear o movimento insurrecional dos escravos. Era preciso parir um novo capítulo da história por meio das armas.
No livro do Apocalipse de João, o último da Bíblia, escrito por João de Patmos, o fim do mundo é anunciado pelo toque das trombetas de sete anjos[8]: após o toque de cada uma delas, ocorria algum tipo de catástrofe. Na São Domingos colonial, foram os tambores e atabaques do culto ao voduns que anunciaram o fim daqueles tempos – tempos de escravidão.
O historiador C.L.R James faz um relato de uma reunião[9], e nos dá pistas de como os cânticos religiosos faziam o anúncio da guerra que estava por vir:
“Mas não é preciso nem educação, nem coragem para nutrir um sonho de liberdade. Nas suas cerimônias de vodu, seu culto africano, à meia-noite, eles dançavam e cantavam geralmente esta canção predileta:
“Ê! E! Bomba! Heu! Heu! Canga, bafio té!
Canga, mouné de lé! Canga, do ki la!
Canga, li!”
A cantiga, que pode ser traduzida em algo como “Juramos destruir os brancos e tudo o que possuem; que morramos se falharmos nessa promessa!”, foi uma adaptação ao culto dos voduns. Podemos, assim, entender como a música e a cultura são modeladas pelo momento histórico. A causa revolucionária mudou o caráter das cerimônias religiosas, nas quais, ao invés de apenas louvar os deuses, os negros escravizados passaram a jurar os brancos de morte.
Nem mesmo a repressão ao Vodu pelas autoridades, devida à sua importância na organização da vanguarda revolucionária, foi capaz de frear o movimento da história. O Vodu, já haitiano, se tornou o principal meio pelo qual os líderes e as massas se reuniam para planejar o assalto aos céus.
Em uma reunião no dia 14 de agosto de 1791, nas montanhas do norte da ilha, Dutty Boukman, importante sacerdote do Vodu Haitiano, organizou uma cerimônia religiosa que, na verdade, era mais uma das reuniões entre os revolucionários haitianos. Foi a reunião que deu início à insurgência, a famosa Cerimônia no Bois Caïman.
O médico francês Antoine Dalmas dá detalhes dessa reunião no trecho abaixo, retirado do livro “História da Revolução de Saint-Domingue”, de 1814:
“Estava chovendo e o céu estava furioso de nuvens; as mulheres e os homens começaram então a confessar seu ressentimento de sua condição. Uma mulher começou a dançar languidamente na multidão, tomada pelos espíritos dos loas. Com uma faca na mão, cortou a garganta de um porco e distribuiu o sangue para todos os participantes da reunião, que juraram matar todos os brancos da ilha. Um porco preto – cercado pelos escravizados, que acreditavam ter poderes mágicos -, foi oferecido como um sacrifício para o espírito todo-poderoso (…).”
Ainda referenciando o relato de Antonie Dalmas, durante essa reunião, algumas cantigas de Vodu foram entoadas, ao som de tambores:
“O Senhor está oculto nos céus e ali nos vigia. O Senhor vê o que os brancos fizeram. Seu deus comanda os crimes, o nosso nos dá bênçãos. O bom Deus ordenou a vingança. Ele dará força aos nossos braços e coragem aos nossos corações. Ele nos sustentará. Derrube a imagem do deus dos brancos, porque ele faz as lágrimas fluírem dos nossos olhos. Ouça a Liberdade que fala agora em todos os seus corações.”
Essa reunião foi o estopim de uma guerra que duraria mais de uma década. Entre idas e vindas, vitórias e derrotas, invasões estrangeiras, alianças e lutas contra os franceses, os escravos partiram para o enfrentamento. Alguns meses após o início do levante, o sacerdote Boukman foi assassinado pelos franceses, tendo sua cabeça exposta, na tentativa de provar que o grande Hungã (sumo-sacerdote)[10] não era invencível. Mas o povo era, pois uma revolução não se dá em torno de figuras, mas pelo movimento de massas e pelas massas. A importância de Boukman para a independência do Haiti e o fim da escravidão na ilha foi tão grande que ele mesmo se tornaria um Loa, um espírito ancestral de extrema importância para a religiosidade haitiana, algo semelhante aos Egunguns iorubas.
A cultura tinha tanta relevância no moral dos revolucionários negros que suas crenças, por vezes, assumiram um papel mais importante do que o desfrute da liberdade que viria. O relato de C.L.R James[11] dá dimensão do significado do Vodu, o amor à pátria mãe, e da certeza da vitória.
“Os escravos eram quase todos nativos africanos. Armados apenas com facas, lanças, enxadas e paus com pontas de ferro, eles foram para a batalha. Liderados por Hyacinth, lançavam-se contra as baionetas dos voluntários de Porto Príncipe e dos soldados franceses sem medo ou preocupação pelas descargas dos canhões de Pralotto que rasgavam as suas fileiras: se fossem mortos, acordariam novamente na África.”.
Esse relato representa, de certa forma, a ideia se tornando força material.
Com a morte de Boukman, e diversas contradições internas e externas no movimento revolucionário, surge a ascensão da liderança de Toussaint Louverture, reconhecido como o grande líder da vitoriosa Revolução Haitiana. Ainda que sua figura esteja envolta de contradições[12] – e que sua morte tenha se dado menos de um ano antes da vitória dos haitianos – não se pode falar na libertação dos negros em São Domingos sem falar do “Napoleão negro”.
A luta de libertação ainda duraria alguns anos, e isso se deve, de certa forma, à ascensão de Napoleão Bonaparte como o grande general e cônsul francês, após o golpe de 18 de Brumário, que, dentre outras coisas, mudou os rumos da revolução, trazendo a monarquia de volta à França. O agora Napoleão I entendia que, sem a colônia de São Domingos, a França perderia uma importante fonte de matérias primas, e decide enviar uma expedição para a ilha, massacrando a revolta e retomando o trabalho escravo negro na colônia.
Foi uma grande expedição, que contou com algo em torno de 20 mil soldados veteranos e alguns dos melhores oficiais de Bonaparte. Insuficiente para lidar com um exército com uma causa legítima, armados de baionetas, pedras, armas de fogo, os venenos criados pelas curandeiras do Vodu e a certeza de que a luta pela liberdade é uma luta justa.
Nem mesmo o assassinato de Toussaint, em 1803, foi capaz de acabar com a revolta.
“A notícia da prisão de Toussaint foi um choque para toda a população. Não obstante o que Toussaint houvesse feito, ele se batia pela liberdade. Em volta de Ennery e nas montanhas, os tambores soavam e conclamavam o povo à revolta.”[13]
Jean Jacques Dessalines, liderando as massas e um exército quase imbatível, seguiu com a luta. Várias foram as investidas contra os franceses, e nelas, os tambores estavam sempre presentes, assim como os apitos soavam de oficiais soviéticos durante a Grande Guerra Patriótica, na marcha contra o colonialismo:
“Os franceses, que já haviam lutado em tantos campos de batalha, jamais presenciaram uma batalha como aquela. De todos os lados vinha uma tempestade de grito:
– Bravo! Bravo!
E os tambores rufavam …”
Não havia, e nem poderia haver, uma luta sem sua sinfonia. A música não soava apenas da ponta de canhões, armas de fogo e gritos de socorro. Havia uma cultura se desenvolvendo no meio do campo de batalha, e a história oral marcou o orgulho do povo haitiano, que até hoje relembra aqueles dias de 1804.
E foi assim, no dia 18 de novembro de 1803, ao som de tiros de canhões e tambores, que a Batalha de Vertières se tornou a última grande batalha da guerra de libertação dos negros em São Domingos, com o rendimento dos franceses. Os relatos da batalha dão conta de que os negros “avançavam cantando, pois os negros cantam o tempo todo, fazem música para todas as coisas.”
Os brancos remanescentes da batalha tiveram seu destino selado no chamado Massacre de 1804 – não seria, na verdade, a última espada da revolução? –, evento que assustou o mundo, não pela sua crueldade, mas pela possibilidade das demais burguesias escravocratas terem um fim parecido. O Haiti era o centro do mundo colonial, e seus ecos se espalharam pelo mundo.
Várias foram as condições materiais que levaram São Domingos a se tornar Haiti, e que permitiram que esses ex-escravos pudessem vencer as tropas de Napoleão, um dos maiores generais da história. Mas quem seria louco de negar que Papa Legba – Loa da ligação entre os homens e os loas, o primeiro a ser saudado nas cerimônias de Vodu – foi quem abriu caminho para a vitória?
República, luta de classes e memória musical
Apesar dos golpes, lutas pelo poder e mudanças que seguiriam na Haiti liberta do jugo europeu, o fato é que a Revolução Haitiana causou espanto. Como poderiam aqueles negros ousarem investir contra os europeus e vencê-los?
A memória oral, a cultura e a música desempenharam importante papel na manutenção do legado desse grande momento da história do Terceiro Mundo. A música da revolução, os sons que embalaram a libertação, se tornaram formas de lembrar aqueles tempos, e não só as músicas do campo de batalha, mas também o Vodu, se tornaram a base de grande parte da música haitiana, que reverberou por todo o continente – influenciando até mesmo o Carnaval de Trinidad e Tobago, lar de Eric Williams, C.L.R James e outros grandes nomes do pensamento negro e marxista do Novo Mundo.
A começar pelo hino do Haiti, La Dessalinienne, de autoria de Justin Lhérisson, que o escreveu ainda durante a luta de libertação do país. O hino foi adotado como oficial em 1904. Escrito em crioulo haitiano, o idioma mais falado no país, é uma homenagem a Boukman, o sacerdote que deu início à revolução:
“Pela Pátria, Pelos ancestrais]
Marchemos unidos, Marchemos unidos
Em nossas fileiras não há traidores!
Da terra, sejamos os únicos senhores”
Uma das primeiras formas de música que surgiram no Haiti foi o Rara. Ainda que existam evidências de que o gênero existia ainda na época da escravidão na então São Domingos, a música Rara é, em sua forma contemporânea, uma maneira de celebrar os ancestrais, os Vodus e os feitos da revolução. É acompanhada de uma procissão, que geralmente ocorre durante a semana santa do calendário católico, resultado do sincretismo religioso que existe no país. Mas é também uma música que, durante o século XX, protagonizou grandes denúncias e protestos contra as lutas pelo poder que acometeram o país. A chama revolucionária dos haitianos se mantém, independente de quais sejam os seus opressores.
Um dos maiores cantores do gênero Rara – Manno Charlemagne, morto em 2017 – deixou uma canção que evidenciava o caráter da intervenção militar americana no Haiti, ocorrida entre 1994 e 1995.
Fato é que a tradição afro-haitiana, e suas origens no Vodum, deram origem a uma série de estilos musicais que podemos chamar de música popular haitiana. Do Rara ao Hip-hop – passando pela música gospel, o Vodu Rock e outros infinitos gêneros –, o país conformou a sua cultura e uma música que, dentre outras coisas, continua a influenciar aqueles que, anos depois da revolução, lutam pela liberdade – a liberdade frente à nova forma de colonização, caracterizada pelas intervenções do capital e daqueles que tem as mãos encharcadas de sangue, jorrados como mercadorias.
Como afirmou Sasha Frere-Jones, no artigo “Roundtable: Haitian Music, Part 2: “What Does Revolution Sound Like?”:
“Ao tentar entender a música do Haiti, me pego adotando uma abordagem transnacional, porque, como continuo argumentando, a revolução haitiana foi uma explosão generativa para a música popular do hemisfério.”
Seja com Halou[14], pela canção Vodou Adjaye, as iniciativas como a Rádio Haiti-Inter e da banda Boukan Ginen, ou pelo Rap Kreyòl – hip-hop com um forte caráter de denúncia das novas condições de opressão enfrentadas pelos haitianos –, a música haitiana atravessou os mares, chegou aos Estados Unidos por meio do Vodu praticado na Luisiana e New Orleans, virou poema no Brasil, e se mantém como um lembrete aos colonialistas de que a arma da crítica jamais poderá substituir a crítica das armas.
A nova realidade do Haiti, afundado em uma burguesia corrupta, lacaia dos interesses norte-americanos, necessita de novas análises, para que sua nova independência venha com o mesmo êxito que teve em 1804. E a música cumprirá, novamente, a função de denúncia, organização e, quem sabe, celebração. Tudo isso para que o povo haitiano possa cantar novamente a marcha em direção ao inimigo: “Ao ataque, granadeiro, quem morrer, problema seu. Esqueça a mãe, esqueça o pai. Ao ataque, granadeiro, quem morrer, problema seu.”
(*) Marco Aurélio, mais conhecido como Marcola, é nascido e criado na zona sul de São Paulo. Estudante de história e fotógrafo documental nas horas vagas, há sete anos escreve e pesquisa o rap, samba e outros temas da cultura popular brasileira. Em 2022, participou, como pesquisador, do projeto “A Timelife of Brazilian Hip-Hop” junto ao Spotify Global, e, em 2023, tem participado do projeto “Clube de leitura do Rap”, no Centro Cultural São Paulo. É colunista da Revista Opera.