A discussão gerada em torno dos BRICS e as paixões despertadas por sua atuação são generalizadas, especialmente nos últimos anos, quando o confronto Ocidente-Oriente se tornou mais evidente, ao ser promovido explicitamente pelos Estados Unidos desde as presidências de Barack Obama – contra a Rússia – e Donald Trump – contra a China.
Aspectos específicos que vêm se materializando desde o primeiro encontro formal do bloco na cidade de Ecaterimburgo, na Rússia, em 2009, questionam e contestam a liderança que o Ocidente em geral, mas particularmente os Estados Unidos, vêm exercendo desde o fim da Guerra Fria. Esses aspectos podem ser resumidos em duas áreas em que as disputas dos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) com a posição de liderança do Ocidente se tornaram mais evidentes nesses quase 15 anos de atuação: uma na dimensão econômico-comercial e outra na dimensão político-diplomática.
Lembremos que essas conquistas decorrem dos objetivos que o bloco se propôs naquela primeira reunião na cidade russa e que foram estabelecidos na Declaração Conjunta dos líderes dos BRIC – sem a África do Sul – com foco em: a) reforma do sistema financeiro internacional (parágrafo 3) e b) reforma das Nações Unidas e das relações internacionais (parágrafo 14).
Por uma maior representação: reforma do sistema financeiro internacional
Coloquemos isso em contexto. Após a crise financeira de 2008, a economia global apresentou complexos desafios de recuperação, e os países emergentes – com a China na vanguarda – tinham diferenciais que poderiam impulsionar, e de fato impulsionaram, a recuperação econômica mundial.
Entretanto, dado seu peso na economia global e o impacto que tiveram nos primeiros anos após a crise, os BRICS exigiram mudanças no sistema financeiro internacional, principalmente no Fundo Monetário Internacional (FMI) e no Banco Mundial (BM). Em termos gerais, as reformas visavam modificar a estrutura de cotas e de governança do FMI e do BM; exigências reiteradas dos membros do bloco.
Embora as medidas tenham sido adotadas no âmbito do FMI durante o ano de 2016 e os BRICS tenham alcançado parte das demandas que vinham apresentando, o grupo optou não apenas pela reformulação da estrutura existente, mas também pela criação de uma arquitetura financeira própria, adaptada às realidades da financeirização, do comércio exterior e do investimento intragrupo.
Entre as reformas conquistadas no FMI, destacamos:
– Aumento das cotas dos 188 países nos Direitos Especiais de Saque (SDRs) – equivalentes a cerca de 659 bilhões de dólares.
– Uma redistribuição de mais de 6% das cotas relativas para os países de mercados emergentes.
– Quatro países de mercados emergentes – Brasil, China, Índia e Rússia – foram incluídos entre os dez principais países-membros do FMI.
– Entrada do yuan chinês (CNY- 元) no grupo de moedas que o Fundo Monetário Internacional usa como referência para calcular o valor de seu SDRs, o equivalente a uma moeda virtual com a qual a instituição internacional gerencia seus pagamentos.
Entretanto, não houve grandes avanços na estrutura de direção dos executivos do Fundo, e as reformas foram mínimas ou muito tênues; por exemplo, a Europa continua, até hoje, a controlar a administração do Fundo, enquanto os Estados Unidos dominam a do BM.
Contudo, o aspecto mais perturbador e o avanço mais sólido e visionário que o grupo realizou foi a criação de suas próprias instituições financeiras e de investimento, fora da lógica do sistema financeiro internacional emergido dos acordos de Bretton Woods. Especificamente, estamos nos referindo ao Novo Banco de Desenvolvimento (NDB), cujo objetivo é mobilizar recursos para financiar projetos de infraestrutura e desenvolvimento sustentável não apenas nos países do Brics, mas também em outras nações emergentes; e ao Fundo de Reserva, concebido como um mecanismo preventivo para apoiar a liquidez da balança de pagamentos dos países membros. Ambas as instituições são uma contribuição para enfrentar a volatilidade e promover a estabilidade financeira do grupo e da própria economia global.
O Fundo de Reserva e o Banco já estão em funcionamento e, embora seu escopo ainda seja modesto, eles representam avanços importantes na consolidação estruturas financeiras próprias, distantes das condicionantes e obrigações do Ocidente. Além disso, a possibilidade de países de fora do bloco poderem participar dessas experiências, como alguns Estados árabes estão fazendo atualmente no NDB, constitui uma opção real fora das condições prejudiciais impostas pelas atuais instituições financeiras.
Deve-se fazer uma menção especial ao Mecanismo de Cooperação Interbancária do BRICS, por meio do qual, nos últimos 13 anos, os bancos membros assinaram acordos de ação multilateral em áreas como empréstimos em moeda local, desenvolvimento sustentável e financiamento de infraestrutura, fintech e finanças responsáveis. Essa realidade se traduziu em uma forte força motriz para a cooperação financeira e a facilitação de comércio e investimento dos BRICS.
Disputando a narrativa: por uma nova ordem internacional
Talvez menos palpável, mas com um impacto geopolítico igualmente poderoso, juntamente com a criação de novas estruturas financeiras internacionais, seja o questionamento que a plataforma faz da ordem internacional que foi estabelecida após a queda do Muro de Berlim e o fim da Guerra Fria, defendida pelo Ocidente sob a promoção da chamada “ordem baseada em regras” como uma bússola de navegação.
“Ordem” que, dada a ambiguidade de sua definição, só pode ser interpretada como a materialização dos interesses dos Estados Unidos e de seu séquito ocidental em escala planetária. Sobre isso, o vice-ministro das Relações Exteriores da China, Xie Feng, disse durante suas conversas com a vice-secretária de Estado dos EUA, Wendy Sherman, em 2021, que essa “ordem internacional baseada em regras” era “uma tentativa de um pequeno número de países ocidentais, incluindo os Estados Unidos, de empacotar seus ‘preceitos familiares e regras laterais’ como normas internacionais”.
Uma análise cuidadosa das várias declarações feitas pelos BRICS recentemente no âmbito de suas reuniões anuais deixa claro que o bloco está comprometido com uma abordagem que muitos classificam como neo-vestfaliana (Brosig, 2021 e Villamar, 2016), expressa na ênfase na igualdade soberana de todas as nações, na integridade territorial, na não-intervenção, em um estilo não-coercitivo de diplomacia internacional e na rejeição do comportamento neo-imperial.
Em resumo, um retorno ao conceito de soberania como um valor e à não-intervenção como um princípio amparado no respeito ao direito internacional e à Carta das Nações Unidas, segundo os quais a aplicação de medidas coercitivas unilaterais, amplamente empregadas pelo Ocidente contra países que são incômodos aos seus interesses, não tem lugar.
Daí o interesse nesse espaço para futuras adesões; um grupo intergovernamental que valoriza o diálogo e a consulta entre os membros, lida com questões em que os interesses confluem e não discute política interna. Isso é atraente em um contexto em que as sanções e a diplomacia coercitiva estão presentes.
Também vale a pena destacar o grau de cooperação e diálogo político que o grupo conseguiu estabelecer apesar das profundas diferenças existentes entre seus membros e que, apesar disso, está comprometido em continuar aprofundando os espaços de encontro e a construção de posições comuns, tudo isso reforçado pela presença da Índia e do Brasil no Conselho de Segurança da ONU durante os períodos de 2021-2022 e 2022-2023, que poderá influenciar as discussões do fórum, pois terão quase um terço dos votos.
Novas tarefas para realizações futuras
Ao que parece, duas questões dominarão a agenda da próxima cúpula dos BRICS, a ser realizada em Joanesburgo, África do Sul, nesta semana: 1) a viabilidade – ou não – do uso de uma moeda do grupo com vistas à desdolarização do comércio e da economia do bloco; 2) a expansão do número de membros do grupo. Conforme apresentamos no início desta nota, essas questões dizem respeito, respectivamente, à área econômico-comercial e à área político-diplomática.
No que se refere à desdolarização e ao uso de uma moeda única para as transações econômico-comerciais do grupo, seja ela concretizada ou não, a realidade vivida por membros do bloco como a Rússia e a China, que estão sujeitos a sanções econômicas por parte do chamado Ocidente – especialmente a Rússia –, leva-os a buscar soluções que proporcionem mecanismos para burlar essas medidas, materializadas fundamentalmente nas restrições ao sistema Swift e ao uso do dólar como moeda de troca. É importante observar que essas alternativas já existem fora dos BRICS como um bloco.
Apesar do ceticismo que alguns think tanks têm atribuído aos esforços desse órgão para se afastar do predomínio do dólar, devido à complexidade de desacoplá-lo do comércio internacional, atualmente dominado em cerca de 90% por essa moeda, a verdade é que os BRICS têm demonstrado capacidade de chegar a acordos em aspectos tão complexos quanto os envolvidos no NBD e no Fundo de Reserva, de modo que poderíamos estar à beira de uma nova moeda de troca, pelo menos no comércio dos BRICS, como afirma Joseph Sullivan.
Por outro lado, longe de ser menos complexo, o alargamento da plataforma não pode ser dado como certo; implica uma oportunidade para que o grupo exponha toda a sua capacidade de chegar a consensos sobre posições que concorram para o seu fortalecimento, levando em conta as áreas de influência por região e o exercício da soberania e da independência, especialmente na política externa, dos Estados aspirantes.
É provável que da reunião saia um roteiro que os países aspirantes terão de seguir antes de aderir, ou que vejamos novos membros nas instituições financeiras já criadas e que são um ativo para o bloco, como o NBD e o Fundo de Reserva. O certo é que, independentemente do resultado concreto dessa possível ampliação, a intenção manifestada por mais de 30 países de fazer parte dessas iniciativas reflete o peso e o prestígio que os BRICS estão adquirindo no desenho da nova ordem internacional, que emerge com ritmo e dinâmica próprios.
De qualquer forma, independentemente de se avançar ou não nas propostas apresentadas antes da cúpula de Joanesburgo, não há dúvida de que o bloco vem aumentando constantemente sua influência em escala geoeconômica e geopolítica, e continuará a fazê-lo no futuro próximo.