O vídeo impressiona. O negro céu se acende de uma hora para outra, enquanto o assobio da morte se aproxima ferozmente. Em questão de segundos, o clarão chega ao chão e o assobio silencia, dando lugar aos graves da explosão e ao fulgor das chamas.
O alvo atingido é um hospital, o mais antigo da Faixa de Gaza. Fundado em 1882, o Hospital Árabe al-Ahli foi aberto pela organização Church Mission Society, ligada à Igreja Católica inglesa. Passou para a administração da Igreja Batista do Sul, dos Estados Unidos, em 1954, até chegar enfim às mãos da Igreja Episcopal de Jerusalém e do Oriente Médio, ligada à Igreja Anglicana, hoje responsável pelo que é o único hospital cristão da região. Como os outros 21 hospitais operando no norte de Gaza, o al-Ahli vinha passando por dificuldades desde que a ofensiva israelense em resposta aos ataques do Hamas no dia 7 deste mês teve início. Além de lidar com as ondas de feridos, o hospital se enfrentava com a perspectiva de falta de medicamentos e com várias ordens de evacuação por parte do Estado de Israel.
No dia 14 deste mês, dois foguetes cujos disparos foram atribuído a Israel pelo arcebispo de Canterbury, Justin Welby, bem como pelo arcebispo Hosam Naoum, já haviam atingido o Centro de Diagnóstico do Câncer do hospital, ferindo quatro funcionários e impactando especialmente as alas de ultrassom e mamografia, no segundo e quarto andares do edifício.
Três dias depois veio a explosão mais grave. Com centenas de palestinos abrigados nos arredores do hospital no momento do estrondo do dia 17, 471 pessoas foram mortas, de acordo com o Ministério da Saúde da Faixa de Gaza, no que a ONG Médicos Sem Fronteiras descreveu como um “massacre”. O Hamas, que governa Gaza, acusou Israel pelo ataque, e manifestações explodiram na Cisjordânia e em países da região, como Jordânia, Turquia, Líbano, Iêmen, Marrocos e Iraque, com a Frente Popular para a Libertação da Palestina (FPLP) inclusive convocando um amplo levante em toda a Palestina ocupada.
No entanto, à medida que a situação se agravava, o governo israelense deu uma versão alternativa do ocorrido: negando ter sido responsável pela explosão, Israel apontou os dedos para o grupo Jihad Islâmica, dizendo que a organização havia disparado um foguete que apresentou falhas no meio de sua trajetória, atingindo o hospital e causando as mortes. Por vários fatores – o número de mortos, as aparentes características da trajetória do objeto explosivo no primeiro vídeo divulgado do ataque, o tom contido do presidente Joe Biden na nota que emitiu após a explosão, o fato de um influenciador íntimo do governo israelense haver informado que se tratava de um ataque israelense antes de apagar sua declaração e pedir desculpas –, diversos analistas colocaram a versão sob dúvidas. Não seria a primeira vez que o governo israelense mentia sobre sua responsabilidade em ações do tipo – muitos se lembram do assassinato da jornalista da Al Jazeera Shireen Abu Akleh em 2022, por exemplo, cuja morte Israel atribuiu a “atiradores palestinos”. Mais tarde, o Centro Israelense para Direitos Humanos nos Territórios Ocupados, B’Tselem, confirmou, por meio de uma investigação, que as autoridades israelenses mentiram sobre o caso. “Meses depois, Israel admitiniu que havia uma ‘grande possibilidade’ de que um soldado israelense tenha matado a jornalista por acidente, mas a essa altura a crescente de protestos e de raiva pela morte da jornalista já havia passado, e seu assassinato, em boa medida, já havia sido esquecido”, escreve o jornalista Chris Hedges, ex-correspondente do The New York Times e ganhador de um Pulitzer. Também não seria a primeira vez que Israel atinge hospitais: o cientista político judeu-americano Norman Finkelstein, um duro opositor do sionismo, lembrou de alguns casos em que hospitais foram atingidos por Israel em 1982, 2008-2009 e 2014. Somente pelo breve levantamento de Finkelstein, foram 33 hospitais atingidos, além de centenas de unidades hospitalares básicas e ambulâncias.
Então quem, e o que, foram responsáveis pelo massacre do último dia 17? “Inicialmente, quando vi as [primeiras] imagens, eu pensei que fosse uma JDAM [Joint Direct Attack Munition, tipo de bomba produzida pelos EUA], pelo clarão, pela estrutura, em virtude do tamanho [da bomba]”, diz Augusto Teixeira, professor de Relações Internacionais da UFPB, professor visitante do King’s College em Londres e ex-pesquisador do Centro de Estudos Estratégicos do Exército (CEEX) e da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME). “Mas depois o que constatei na verdade é que a forma como a explosão se dá… Parece uma explosão a céu aberto, até pela bola de fogo que ela produz. Não tem uma perspectiva consistente com uma bomba que adentra um recinto, uma área reforçada, como seria uma bunker buster”, diz o pesquisador, se referindo a um tipo de bomba que penetra no solo ou outras superfícies duras antes de explodir, e que já foi usada por Israel na atual campanha contra Gaza, bem como em 2022, 2019 e 2009.
No dia seguinte à explosão, as autoridades israelenses fizeram uma coletiva de imprensa na qual apresentaram supostas evidências de suas alegações. Além de um vídeo do que aparenta ser um foguete terra-ar em mau funcionamento, e que – na versão israelense – seria o projétil que atingiu o hospital, apresentaram uma conversa telefônica de supostos combatentes do Hamas discutindo o ocorrido e o atribuindo à Jihad Islâmica, além de fotos aéreas comparando as crateras ao redor do hospital al-Ahli e as produzidas por algumas armas israelenses. Para Teixeira, isso seria plausível: “Há a possibilidade de ter sido um foguete que explodiu naquela área; ou um foguete que caiu, por desvio, perto de um paiol de munição, o que poderia aparentar algo como aquele tipo de explosão; ou ainda um foguete cujas partes, carregando combustível, caíram lá, incendiando alguma coisa. Porque de fato não há uma cratera expressiva”, diz.
Um ponto chave da posição israelense foi jogar dúvidas sobre o número de mortos na explosão. Em uma crítica à imprensa, o relatório das Forças de Defesa de Israel diz, sobre o número de mortos, que “as manchetes que vieram [após a explosão] no melhor dos casos eram seguidas pela ressalva ‘diz Ministério da Saúde de Gaza’. Não se enganem. O Ministério da Saúde de Gaza é o Hamas. E as credenciais do Hamas deveriam ser pobres, para dizer o mínimo. A organização é reconhecida como uma organização terrorista pela Austrália, Canadá, União Europeia, Israel (é claro), Japão, Paraguai, Reino Unido e Estados Unidos”.
O número de baixas no hospital é um aspecto relevante porque se os números do Ministério da Saúde de Gaza estiverem certos, a possibilidade de uma bomba de tipo airbust ter sido usada estaria na mesa. O armamento explode no céu antes de atingir seu alvo, produzindo um grande número de mortos com uma destruição de infraestrutura relativamente baixa, o que seria condizente com as pequenas crateras vistas nos arredores do hospital, como apontado numa reportagem do veterano e premiado jornalista Alex Thomson, correspondente-chefe do canal britânico Channel4. Ao pôr em xeque os números do Ministério da Saúde de Gaza, Israel afasta o outro cenário plausível para a explosão no hospital. “Sim, poderia ser uma munição airbust, nós vemos por exemplo a utilização de munições termobáricas na guerra da Ucrânia, e ela de fato tem uma explosão com onda de choque significativa, até por ter duas fases: a explosão com combustível e o incêndio deste combustível, gerando uma bola de fogo”, diz Teixeira. “Mas, por sua vez, se ela tivesse sido usada, acho que a escala de destruição interna [no hospital] seria muito maior”, completa.
A investigação de Thomson tem outros dois aspectos importantes: primeiro, ela destaca como, na conversa entre os supostos combatentes do Hamas, o local de disparo apontado para o suposto foguete terra-ar da Jihad Islâmica é um cemitério localizado logo atrás do hospital al-Ahli – o que não seria condizente com o vídeo do foguete apresentado pelas autoridades israelenses, nem com o local apontado por elas como a origem do disparo; muito mais distante, a sudeste do cemitério. O centro de Arquitetura Forense da Universidade Goldsmiths, de Londres, também pôs dúvidas sobre a trajetória do projétil apontada pelas Forças de Defesa de Israel. Em uma investigação preliminar, o centro diz que “os padrões de fragmentação podem indicar que o projétil veio do nordeste – a direção do lado do perímetro de Gaza controlado por Israel – e não do oeste, conforme alegado pelas Forças de Ocupação.” Em segundo lugar, Thomson aponta, citando “dois jornalistas árabes independentes”, que a própria ligação telefônica entre os supostos combatentes do Hamas não seria credível: “O Hamas disse que [a ligação] é uma falsificação óbvia. Dois jornalistas independentes árabes nos disseram o mesmo, por causa da linguagem, sotaque, dialeto, sintaxe e tom; nenhum dos quais – dizem eles – é credível”, diz a reportagem. Opera Mundi consultou uma professora de Língua e Literatura Árabe da Universidade de São Paulo (USP) que disse não ter dúvidas de que o diálogo é fabricado. Segundo ela, o sotaque utilizado na chamada de fato é palestino, mas a dinâmica do diálogo, especialmente a partir das falas do segundo participante, seria incomum.
Apesar da guerra de versões, das suspeitas e da névoa que ainda encobre a explosão do hospital da al-Ahli, o porta-voz do Departamento de Estado dos EUA, Matthew Miller, disse na quinta-feira (19) que uma investigação independente do ocorrido “não é apropriada agora”. Segundo ele, o governo de Israel “já lançou uma grande quantidade de evidências para apoiar a sua alegação”. Ele disse, porém, que o governo norte-americano segue fazendo sua própria investigação, enquanto Biden segue dando declarações distanciadas e reticentes sobre o ocorrido. Nesta sexta-feira (20), a Diretoria de Inteligência Militar da França divulgou uma investigação do caso, a pedido do presidente Emmanuel Macron, concluindo que “não há nada que nos permita dizer que foi um bombardeio israelense, o mais provável é que tenha sido um foguete palestino que teve um incidente de disparo”. Ainda assim, o Escritório de Direitos Humanos da ONU insiste na necessidade de uma investigação própria. “Evidentemente uma investigação é necessária, uma investigação independente sobre o que ocorreu”, disse a porta-voz do órgão, Ravina Shamdasani, também na sexta-feira.
O professor Augusto Teixeira concorda. “Uma investigação independente seria fundamental para asseverar com maior grau de certeza e culpabilizar os responsáveis, porque o que aconteceu, independente de qualquer um dos lados, é um crime de guerra; um ataque contra um alvo civil com uma proporção grande de mortos é algo que não é plausível de acordo com o direito humanitário internacional ou com o direito dos conflitos armados”. Mas ressalta: “O fato é que é isso é muito difícil de ser feito. Primeiro porque há um controle do acesso a Gaza feito pelo Hamas, em todo o território, segundo porque há uma vedação à entrada feita pelo Egito e por Israel. Na ausência de um corredor humanitário ou da permissão para a entrada de uma equipe de investigação independente para analisar o local, é muito difícil. É muito difícil batermos o martelo sobre quem foi, até porque, muito possivelmente, a área do estrago já foi ou está sendo contaminada; seja por bombardeios em regiões próximas, de Israel ou do Hamas, seja por necessidades humanitárias”.
Enquanto isso, sob a sombra da guerra de versões, a guerra real e seus bombardeios prosseguem em Gaza. Na última quarta-feira (18), 26 horas após o ataque ao hospital al-Ahli, uma explosão atingiu as proximidades de um outro hospital, o al-Quds, que já havia sido bombardeado por Israel em 2009. Nos últimos dias, segundo o Crescente Vermelho Palestino, organização humanitária federada à Cruz Vermelha, o hospital recebeu ameaças de militares israelenses. Não está claro que tipo de arma foi usada neste episódio mais recente no al-Quds, nem quem foi o responsável pela explosão – como também é o caso dos dois foguetes que haviam atingido o al-Ahli três dias antes do massacre, ou dos outros dez hospitais que, de acordo com o The Washington Post[1], foram danificados por bombas desde o início da ofensiva israelense.