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O golpe não marchou por covardia dos golpistas

As investigações da PF revelam quão longe foram os golpistas em seus preparativos: teriam à sua disposição, possivelmente, dezenas de milhares de tropas
Pedro Marin
O ex-presidente da República Jair Bolsonaro, durante audiência ao Ministro de Estado da Defesa, General Braga Netto. 28/03/2022. (Foto: Clauber Cleber Caetano/PR)
As 135 páginas da petição nº 12100, que embasaram a Operação Tempus Veritatis da Polícia Federal, deflagrada na última quinta-feira (8) contra uma série de alvos, incluindo militares graduados, ex-ministros de Estado e o ex-presidente Jair Bolsonaro, demonstram inequivocamente que o alto escalão do governo Bolsonaro operou antes, durante e após as eleições de 2022 como um órgão golpista.

A PF identifica seis núcleos distintos que agiram em diferentes frentes e com variadas táticas, com o propósito de impedir as eleições e, depois, reverter seus resultados, prender autoridades e chamar novas eleições, sob o argumento de fraude no pleito presidencial.

Os núcleos de atuação, de acordo com a PF, seriam: 1 – Núcleo de desinformação e ataques ao sistema eleitoral, voltado à produção, divulgação e amplificação de mentiras sobre as eleições de 2022 e as urnas; 2 – Núcleo responsável por incitar militares a aderirem ao Golpe de Estado, voltado a disseminar ataques pessoais contra militares em posição de comando, com o objetivo de influenciá-los a tomar parte no golpe; 3 – Núcleo jurídico, responsável por elaborar a fundamentação jurídica e doutrinária do golpe de Estado; 4 – Núcleo operacional de apoio às ações golpistas, voltado a mobilizar, financiar e possibilitar a logística de militares das Forças Especiais (Kids Pretos) em Brasília e a planejar e manter as manifestações em frente aos quartéis; 5 – Núcleo de inteligência paralela, responsável por coletar dados e informações que pudessem auxiliar no golpe, bem como monitorar e espionar autoridades da República; 6 – Núcleo de oficiais de alta patente com influência e apoio a outros núcleos, formado exclusivamente por oficiais de alta patente, responsável por granjear o apoio militar para a consumação do golpe.

Relacionando as provas – as conversas de Mauro Cid com vários interlocutores militares – com a atuação do governo em reuniões diversas, fica evidente que de fato se formou um organismo golpista sob o qual vários fatos pincelados que vimos se desenrolar por semanas – bloqueios de estradas, retórica contra as urnas, espionagem de autoridades, acampamentos golpistas, anuências de comandantes, etc. – compunham um quadro maior, cuja resultante, ao menos segundo o que pretendiam alguns de seus membros, era o golpe de Estado. O que a PF ainda há de demonstrar é até que ponto estes núcleos estavam cientes da atuação uns dos outros, se mantinham algum contato operacional nesse sentido, e quem, além de Mauro Cid, tinha conhecimento das várias frentes de atuação golpista.

Por que o golpe não marchou, por que não foi adiante? Esta parece ser a questão chave agora.

Enquanto os preparativos golpistas se desenrolavam, eram muitos os que garantiam que o golpismo era coisa do passado, impossível de ser replicado nos dias de hoje: ignoravam, por exemplo, o caso de nossos vizinhos bolivianos, que passaram por um golpe de Estado em 2019; mas não o ministro da Justiça e Segurança Pública, Anderson Torres, que dizia: “E o exemplo da Bolívia é o grande exemplo pra todos nós. Senhores, todos vão se foder! Eu quero deixar bem claro isso. […] Quero que cada um pense no que pode fazer previamente porque todos vão se foder”.

Enquanto muitos garantiam que “dar golpe é até fácil, o problema é sustentar” – como se um Estado de exceção permanente fosse inevitavelmente o passo seguinte à conjura –, a investigação da PF dá razão aos que lembravam que o golpismo tem formas variadas, já que o pretendido por Bolsonaro e seus asseclas seria a convocação de novas eleições.

Enquanto outros atribuíam à pressão de autoridades norte-americanas a impossibilidade do golpismo, o que revela a PF é que o dispositivo insidioso nunca parou de operar, por mais pressão externa que houvesse.

Enquanto muitos promulgam, especialmente agora, que foi a ação das instituições quem foi capaz de barrar o golpismo e “salvar a democracia”, o que a PF revela é que autoridades como Alexandre de Moraes eram espionadas em tal magnitude que os golpistas sabiam de e para onde viajava, quando chegava ou partia, o monitorando continuamente para “consumar a subversão do regime democrático, procedendo a eventual captura e detenção do Chefe do Poder Judiciário Eleitoral”. O juiz pode julgar posteriormente à derrota da conspiração, mas há de se perguntar se sua toga era à prova de balas naqueles momentos em que os golpistas o acompanhavam de perto.

Há, por fim, a versão derradeira: a de que o que impediu o golpismo foi a posição dita “legalista” e “democrata” de uma maioria nas Forças Armadas. Esta versão, além de supor que os golpes são necessariamente iniciados com uma maioria decidida, e além de atribuir “legalismo” àqueles que simplesmente não aderiram ao golpe e deixaram os seus camaradas prosseguirem com seus planos em silêncio, implica em certas contradições: 1 – os então comandantes do Exército, Marco Antônio Freire Gomes, e da Aeronáutica, Almeida Baptista Junior, que são agora chamados de legalistas (como num reflexo condicionado, por terem sido anteriormente chamados por Braga Netto de “cagões”), assinaram, em conjunto com o sempre-disposto ao golpismo Almir Garnier (Marinha), a nota “Às instituições e ao povo brasileiro”, emitida em 11 de novembro de 2022, na qual faziam ameaças veladas às instituições, em defesa da manutenção dos acampamentos golpistas. Teria Garnier, que disse a Bolsonaro que suas tropas estavam à disposição do golpe, tido um lampejo legalista? Ou, ao contrário, é o legalismo de Freire Gomes e Baptista Junior – que não delataram as maquinações golpistas – que melhor seria descrito se chamado de “não comprometimento”? É a própria investigação da PF que aponta como essa nota, emitida pelos três comandantes, foi vista pelos que planejavam o ardil: “Dentro desse contexto, a PF aponta a relevância da nota assinada, em 11/11/2022, pelos Comandantes das três forças, o Almirante de Esquadra, ALMIR GARNIER SANTOS, o General de Exército, MARCO ANTONIO FREIRE GOMES e o Tenente-Brigadeiro do Ar, CARLOS DE ALMEIDA BAPTISTA JUNIOR, reputada como importante por MAURO CID, para fins de manutenção e intensificação das manifestações antidemocráticas, em vista do suposto respaldo das Forças Armadas ao movimento”. É bom que se reflita, também, que o ex-comandante do Exército, general Júlio César Arruda, apontado por Lula e escolhido por Múcio, acabou demitido após ter defendido os golpistas que se refugiaram no Quartel General do Exército em Brasília após o 8 de janeiro. Seria boa a conclusão de que Bolsonaro escolheu um comandante do Exército legalista – Freire – e Lula um golpista – Arruda?

Ora, se os golpes dependessem do apoio majoritário dos comandantes das Forças para que pudessem marchar, muitos poucos golpes haveria na história brasileira. Olímpio Mourão, quando iniciou sua marcha em Juiz de Fora, não tinha garantido o apoio majoritário das Forças Armadas. De fato, Amaury Kruel até demorou a decidir. Eduardo Gomes, quando decidiu virar herói da República do Galeão, não contava com a confirmação de que, ao fim do processo, granjearia o apoio de seus camaradas na Marinha e no Exército para derrubar Getúlio. Este foi, no entanto, o desfecho. O próprio Getúlio, ao lançar sua bem-planejada (e muito adiada) Revolução de 30, escrevia em seu diário: “Não terei depois uma grande decepção? Como se torna revolucionário um governo cuja função é manter a lei e a ordem? E se perdermos? Eu serei depois apontado como o responsável, por despeito, por ambição, quem sabe? Sinto que só o sacrifício da vida poderá resgatar o erro de um fracasso.

Não se joga num golpe, assim como não se entra na guerra, tendo a vitória garantida. Tal qual a guerra, o golpe supõe um alto grau de risco, alguma suscetibilidade ao acaso, e uma alta dependência em que os que possam resistir não o façam. Daí porque a teoria maquiaveliana tão certeiramente apontava que o momento mais arriscado do golpe é o da execução: o golpista pode conspirar sem ser revelado; e, uma vez vitorioso, se escuda na própria autoridade ou Estado que despojou. Mas o golpista não pode ao mesmo tempo agir sobre sua decisão e ficar sob a proteção das sombras, e, no momento da ação, por tratar-se de ofensiva subterrânea, não proclamada, conhece apenas as forças com que conta, e não pode ter certeza das que haverá de enfrentar. É nesse momento, nos lembra o florentino, que os golpistas são tomados por falsos terrores, como aquele que tomou Brutus: “Mesmo quem tem o espírito vigoroso, está acostumado a usar armas e dá pouca importância à vida humana, sente uma certa perturbação em momentos como esse. […] o executor perde a coragem por respeito à autoridade ou por simples covardia. […] Estas circunstâncias podem travar o braço do atacante.”

Este temor, este travamento no braço, parece ter tomado a calhorda golpista. É curioso que Bolsonaro, Heleno, e mais alguns membros da patota repetissem tantas vezes que “haverá uma hora em que teremos de parar de falar, e começar a agir”, evocando constantemente a lembrança do terror que lhes acometia, como se a reiteração desta lembrança, por si, pudesse tirá-los do estado de temor que os paralisava. Braga Netto encontrou um alvo para culpar: Freire Gomes. Chamando o então comandante do Exército de cagão, a obsessão de Netto era tanta que fez questão de enviar ao capitão reformado Ailton Barros também uma foto da casa de Gomes, dizendo: “Em frente à residência do general Freire Gomes agora”. É um caso clínico a ser estudado: “cagão”; mirava Gomes como que a um espelho; dava prova de sua coragem indo à casa do comandante, e no entanto acabava por se refugiar na pusilanimidade, sem adentrar a residência ou confrontar o general. Há certas coisas que o povo diz sobre homens que planejam fazer com partes do corpo de terceiros o que caberiam às suas próprias – me refiro, obviamente, a Braga Netto querendo que Freire pusesse seu peito à prova, embora fosse ele o agitador golpista.

Está demonstrado que os golpistas foram bem longe na fase dos preparativos. Segundo o que a PF encontrou no celular de Mauro Cid, teriam chegado mesmo a ter a palavra do então comandante do COTER (Comando de Operações Terrestres) e responsável pelo Comando de Operações Especiais (COpESP), general Estevam Theophilo Gaspar de Oliveira, de que, se Bolsonaro assinasse o decreto golpista, poderiam contar com ele. Também teriam tido o apoio do comandante da Marinha, almirante Almir Garnier Santos, que “anuiu com o Golpe de Estado, colocando suas tropas à disposição do Presidente”.

Se os golpistas tivessem a audácia de avançar dos preparativos à execução, contando somente com as forças que Estevam Theophilo e Almir Garnier conseguissem colocar à sua disposição, a quem caberia detê-los em combate? Estamos falando, possivelmente, de dezenas de milhares de tropas. Se tivessem passado à execução, é incerto que os golpistas venceriam; mas é certo que só seriam derrotados se outras forças militares, amplos setores do Exército e da Aeronáutica, lhes fizessem frente. Fariam-no? Esta é a consideração à qual deveríamos nos atentar, ao invés de nos dizermos “aliviados” porque “o golpe foi derrotado”.

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