Desde o início do genocídio de Israel em Gaza, as forças dos EUA realizaram vários ataques em Bagdá e no oeste do Iraque, chegando inclusive a matar os principais comandantes militares das Forças de Mobilização Popular do país. As Hashd al-Shaabi do Iraque, ou “Forças de Mobilização Popular” (FMP), foram manchetes em todo o mundo nos últimos meses, especialmente porque as forças dos EUA na região aumentaram consideravelmente os ataques contra alvos associados a elas. A mídia ocidental quer que os leitores acreditem nas alegações de que as FMP são um “agente iraniano”, da mesma forma que caracterizam o Hezbollah do Líbano ou o Ansar Allah do Iêmen (também conhecido como “Houthis”) – mas quem são as FMP na realidade?
Um movimento orgânico de resistência iraquiana
As FMP têm suas origens na resistência à ocupação dos EUA após a invasão do Iraque em 2003, que derrubou o governo central e derrotou o exército iraquiano. Foi esse movimento que conseguiu desferir duros golpes nas forças de ocupação, tendo sido essencial para a eventual redução da presença dos EUA no Iraque. As forças que viriam a se tornar as FMP aprenderam muitas lições na luta contra a ocupação dos EUA – a mais importante delas, como combater com eficácia um inimigo equipado com um poder de fogo muito superior.
A opressão e a ocupação sempre inspiram resistência. Durante a Guerra do Iraque, a mídia ocidental e os porta-vozes militares dos EUA atacaram as forças de resistência acusando-as de serem inspiradas pela “al-Qaeda, [com] lealdade a Saddam Hussein ou ao ‘Islã radical’, só para citar alguns”. Mas a realidade é que a resistência do povo iraquiano contra o imperialismo foi desenvolvida ao longo de três décadas de guerra, sanções e ocupação nas mãos dos EUA e das forças da coalizão.
Nos últimos 15 anos, as FMP se tornaram um termo genérico para qualquer um dos grupos armados formados para combater o chamado Estado Islâmico no Iraque e na Síria (ISIS, também conhecido como “Daesh” em árabe). Dezenas de facções e dezenas de divisões, brigadas e outras formações, representando a natureza ampla, multiétnica e multiconfessional do Iraque, compõem as FMP.
As Forças Armadas iraquianas não estavam suficientemente equipadas para defender o país contra o ISIS e, em 2014, o grupo havia capturado grandes áreas do norte do Iraque, inclusive a principal cidade do norte, Mosul. Nesse período, os combatentes do ISIS atacaram minorias étnicas e religiosas – principalmente o povo yazidi – das formas mais brutais, inclusive por meio de assassinatos em massa, escravidão sexual e outros atos que constituem genocídio.
Em 2017, a jornalista independente Rania Khalek se integrou às unidades Yazidi das FMP na província de Sinjar, no norte do Iraque. Khalek descreveu como as forças iraquianas e curdas apoiadas pelos EUA basicamente se retiraram de muitas dessas áreas à medida que o ISIS avançava, levando suas armas consigo e deixando inúmeros civis enfrentando sozinhos os combatentes do ISIS. Essa traição inspirou centenas de combatentes yazidis a recorrer às FMP para defender sua terra e seus entes queridos. A história dos yazidis é uma das centenas que definem a história das FMP nos últimos 20 anos de ocupação e resistência.
Sectarismo: a estratégia imperialista de dividir e conquistar
Caracterizar as FMP como “agentes iranianos” ignora e nega a história profunda e orgânica de resistência do povo iraquiano. Caracterizar as FMP como uma organização exclusivamente xiita é factualmente falso. Por um lado, o Iraque é um país de maioria xiita e há várias tendências ideológicas e formações políticas diferentes entre os xiitas iraquianos. Mas, além disso, sunitas, cristãos e minorias étnicas, como yazidis, shabakis, turcomanos e outros, também estão representados nas unidades das FMP. O que une essas forças distintas é o compromisso com a resistência contra o imperialismo e o sectarismo.
O sectarismo tem sido usado há muito tempo pelos imperialistas para dividir e conquistar o Oriente Médio. Desde os imperialistas britânicos e franceses que traçaram as fronteiras do Oriente Médio moderno como parte do acordo Sykes-Picot, passando pelo sistema parlamentar confessional imposto no Líbano, até os esquemas da era Bush para dividir o Iraque em três países, de acordo com as regiões sunitas, xiitas e curdas, as lutas étnicas e religiosas sempre foram uma ferramenta fundamental da dominação imperialista. E, apesar de seu apoio a Saddam Hussein na década de 1980, no período que antecedeu a invasão do Iraque em 2003, o governo dos EUA cinicamente invocou a linguagem dos direitos humanos para retratar seu governo como o de uma minoria árabe sunita que “silenciava” e “reprimia” outros grupos religiosos e étnicos, angariando apoio para a guerra. Então, depois de derrubar o governo baathista de Saddam, a narrativa acabou mudando para a de “milícias apoiadas pelo Irã” ou até mesmo de “agentes” “capturando” o Iraque. Está claro que o governo dos EUA nunca se importou com as minorias religiosas ou étnicas da região, mas apenas as usa como peões em seu tabuleiro de xadrez imperialista.
E embora a implicação aqui seja que o Irã está controlando as forças xiitas em toda a região e que isso é uma ameaça existencial para os sunitas e outras vertentes na região, o histórico real do Irã nesse sentido não poderia ser mais oposto.
O papel real do Irã
Em 2 de janeiro de 2020, os militares dos EUA assassinaram o general iraniano Qasem Soleimani e Abu Mahdi al-Muhandis, líder de um dos mais importantes grupos afiliados às FMP, o Kata’ib Hezbollah, com um ataque aéreo em Bagdá. Soleimani, general das Forças Quds, grupo de elite do Corpo da Guarda Revolucionária Iraniana, passou as duas últimas décadas organizando o que hoje é conhecido como “Eixo de Resistência”, uma rede de atores militares autônomos e organizados localmente, unidos em torno da resistência ao imperialismo e ao sionismo dos EUA na região.
O Irã fornece níveis variados de apoio a grupos dentro do Eixo de Resistência – conselheiros e treinadores, armas e munições e outros tipos de apoio – mas não mantém nenhum comando operacional sobre essas forças. Da Resistência Palestina e do Hezbollah ao Ansar Allah e às FMP, o Irã tem apoiado consistentemente a criação de capacidade de resistência e coordenação nativa em toda a região.
Isso fica claro na engenhosidade das forças de resistência palestinas, que desenvolveram a capacidade de produzir seus próprios mísseis e armas sob as mais rigorosas condições de cerco em Gaza. O Irã não está procurando criar subordinas, mas entende que seus interesses estão alinhados com os interesses dos movimentos orgânicos anti-imperialistas e anti-sionistas em toda a região. Para os imperialistas dos EUA, que consideram tudo uma transação, é quase impossível imaginar que as forças de resistência no Líbano, Iêmen e Iraque se colocariam em risco para defender o povo palestino sem receber ordens e financiamento de Teerã.
O império americano é o verdadeiro terrorista
Longe dessas forças representarem uma rede de “organizações terroristas”, na verdade, o império dos EUA é o real Estado terrorista da região. Entre o financiamento e a viabilização do colonialismo israelense e o genocídio na Palestina, o regime de sanções brutais imposto a inúmeros países, o financiamento secreto de elementos extremamente reacionários, desde os Mujahideen afegãos até os cristãos libaneses fascistas, e as campanhas de assassinato em massa contra o povo do Afeganistão, Iraque, Iêmen e Líbia, o governo dos EUA alimentou o sectarismo, impôs o subdesenvolvimento neocolonial e certificou-se de difamar e atacar qualquer resistência a esses projetos imperialistas como “terroristas”.
(*) Tradução de Raul Chiliani