Nascida em Baltimore, em 1948, Susan Meiselas é uma das mais aclamadas fotojornalistas e documentaristas da história. Começou sua carreira ensinando fotografia em uma escola no sul do Bronx, Estados Unidos. Prince Street Girls e Carnival Stripes são duas de suas séries mais aclamadas, nas quais o foco é o gênero e o senso de coletividade. Tudo isso muda quando Susan decide mirar suas câmeras para os acontecimentos no continente americano.
A terceira onda revolucionária do século 20 varria a África e a América Latina e Central. Ao final da década de 1950 e início da década de 1960, Cuba e Argélia saíram vitoriosas em suas guerras de libertação nacional. A terceira onda trouxe a liberdade para Angola, Moçambique, Granada, Irã – ainda que esta não fosse uma revolução socialista –, e outras nações se estremeciam com os acontecimentos ao redor do planeta. Fato é que, onde há revolução, lá estará o imperialismo para tentar conter a primavera dos povos.
É nesse contexto que Susan politiza o seu trabalho ainda mais. É perceptível, ao analisar a sua obra completa, que Susan tem um propósito político ao fotografar. Sendo membro da Magnum Photos – lendária agência de fotógrafos fundada por Robert Capa e Cartier-Bresson -, poderíamos deduzir que seu trabalho se reduza ao simples ato neutro de documentar. Claro que não discuto, aqui, a questão moral dessa atividade. Toda fotografia, por mais neutra que tente ser, é importante no documento histórico, jornalístico e social. Outros trabalhos da fotógrafa, como a cobertura da Guerra Civil em El Salvador, o Massacre de El Mozote e as tensões na fronteira EUA-México, são de extrema importância para compreender seu papel, porém, meu recorte será feito entre os episódios no Curdistão e na Nicarágua.
O que proponho é uma reflexão sobre a atividade consciente do fotógrafo na política e na luta social. E Susan, do seu trabalho no Bronx ao atual projeto Kurdistan, mostra que, mais do que o registro dos acontecimentos e a tentativa de capturar o real, cabe ao fotógrafo – como ao intelectual e ao artista em geral –, a atuação política, a prática e a sua inserção no seio do povo.
Fotografia e verdade como relação dialética
As fotografias mais famosas da história dependem, em certa medida, do sucesso ou do fracasso da história contada para se imortalizarem. Das fotos de Notorious Big feitas por Chi Modu aos registros dos últimos dias do Kuomintang feitas por Cartier-Bresson, a fotografia desempenha um papel de extrema importância na memória – e aqui me refiro à memória política e social.
Quando abordamos a fotografia como memória, é fácil entendê-la no âmbito pessoal. Quem nunca abriu, em um domingo, um álbum de família, para relembrar momentos, conhecer parentes mais velhos e resgatar histórias? É uma cultura comum a diversos povos pelo mundo. Mas, quando tratamos a fotografia como documento histórico, e da sua relação com a realidade objetiva, a filosofia nos leva para outras questões.
A fotografia, como qualquer outro objeto de uso histórico, deve ser analisada em sua relação com diversos outros objetos. Ela não contém a verdade e a realidade em si, e é necessário a contraposição de fontes, o entendimento histórico, econômico e social de sua criação. Tanto quanto a revelação dos reais motivos pelos quais a escravidão chegou ao fim, ou as descobertas científicas com relação ao sol feitas por Copérnico[1], a fotografia também necessita de uma análise equiparada para revelar a verdade impressa em si.
A fotografia tem origens muito antigas, se falarmos de sua forma mais rudimentar. A câmera escura, equipamento que deu origem à câmera fotográfica, foi citada pela primeira vez no texto “Mozi”, escrito na China, no século 5 a.C. Na Grécia clássica, a câmera escura é mencionada na compilação aristotélica “Problemas”. O daguerreótipo, considerado a primeira câmera fotográfica moderna, foi criado em 1839. Interessante sinalizar que a criação do termo photographie é creditada ao suiço-brasileiro Hércules Florence, um dos precursores da fotografia nas Américas.
Foi a partir de 1888 que a fotografia se popularizou. A criação da Kodak, no mesmo ano, foi um dos fatores que impulsionaram a fotografia e a levou para os lares americanos, e, com sua expansão, para o mundo todo. A criação de câmeras cada vez mais compactas permitiu que praticamente qualquer pessoa pudesse fotografar.
Já em 1841, antes dessa popularização, os irmãos Daguerre retrataram a procissão do centésimo aniversário de Joseph II, Imperador Romano-Germânico. Esse retrato se tornou, para a historiografia, como o primeiro registro fiel de um acontecimento, marcando o início do fotojornalismo.
Esse advento da fotografia permitiu que as imagens tivessem uma reprodutibilidade muito superior à pintura, por exemplo. Os tempos em que reis, senhores feudais e imperadores ganhavam belos quadros, que as batalhas eram contadas a pinceladas de tinta, foram abalados pela fotografia. A sua reprodutibilidade técnica permitia a rápida disseminação de informações e histórias visuais, o que impactou de forma contundente o jornalismo, e, posteriormente, as ciências sociais. Walter Benjamin, mesmo afirmando que, desde sempre, as obras de arte pudessem ser reproduzidas – seja por estudantes de artes durante seus treinos, ou pelos mestres, que queriam disseminar suas obras –, enxerga na fotografia uma mudança quantitativa e qualitativa na reprodução da arte[2], muito superior à xilografia:
“Com a fotografia, a mão foi pela primeira vez aliviada das mais importantes obrigações artísticas no processo de reprodução figurativa, as quais recairiam a partir daí exclusivamente sobre o olho. Como o olho apreende mais rápido do que a mão desenha, o processo de reprodução figurativa foi reacelerado de modo tão intenso que agora ele podia acompanhar o ritmo da fala.”
Longe de atravessar todo o diálogo de Walter com relação a arte, e sua modificação pela mudança na reprodutibilidade técnica, é interessante notar como a fotografia mudou a forma de contar histórias nos jornais, revistas, e, posteriormente, na televisão. A propaganda política também foi fortemente impactada pelo seu advento, e muitos dos eventos históricos mais importantes do século 20 foram registrados pelas lentes de diversos fotógrafos.
Mas, voltando à discussão do real na fotografia, é importante salientar que a fotografia, enquanto resultado de todo o processo químico e físico que a constitui, carrega sempre o olhar do fotógrafo, o que nos faz constatar que esse olhar carrega consigo as crenças, visões de mundo e ideologias do fotógrafo. Não podemos falar de um ato fotográfico neutro no espaço da política. Seja pelas influências dos jornais contratantes oudas agências que coordenam os fotógrafos e para onde vão mirar as suas lentes, uma foto é sempre a síntese entre o momento em si e o disparo, e esse disparo carrega toda uma concepção de mundo.
Mas a fotografia materializada, em papel ou num post do Instagram, também é uma uma síntese dialética, no sentido de que o que foi fotografado e o que será compreendido pelo receptor da mensagem é uma relação de contradição e conflito. O suposto real da imagem pode ser caracterizado apenas pelos elementos que nela constam, mas não o seu significado, que pode ter inúmeros símbolos.
John Berger, famoso teórico da fotografia e marxista britânico, esclarece essa situação dialética da fotografia[3], ao comparar os tipos distintos de imagens produzidas:
“Em si mesma, a fotografia não pode mentir, mas, da mesma forma, não pode dizer a verdade; ou melhor, a verdade que ela diz, a verdade que ela pode por si mesma defender, é uma verdade limitada. (…). Mas acreditar que o que se vê, quando se olha através da câmera para a experiência de outros, é a ‘verdade total’ suscita o risco de confundir níveis muito diferentes de verdade. E essa confusão é endêmica no atual uso público de fotografias. (…) Uma fotografia de raio X de uma perna lesionada pode contar a ‘verdade total’ sobre os ossos estarem ou não fraturados. Mas como pode uma fotografia contar a ‘verdade total’ sobre a experiência da fome em um homem ou, para ficar nessa matéria, sua experiência num banquete? Em certo nível não há fotografia que possa ser contestada. Todas elas têm o status de fato. O que deve ser examinado é de que modo a fotografia pode ou não dar significado aos fatos.”
O que Berger nos traz é a questão sobre os significados da fotografia. Em sua obra-prima Para entender uma fotografia, ele analisa a fotografia de Che Guevara morto, sobre uma maca, na Bolívia. A partir dessa imagem, e fazendo uma relação da mesma com outras obras de arte e uma análise política do imperialismo, Berger afirma que o intuito dessa imagem, mais do que provar a morte do revolucionário, era demonstrar a impossibilidade da revolução. Mas, em sua contradição, a imagem de Che morto é, também, a representação de um ideal ainda vivo. Berger só pode chegar a essa conclusão por ser um marxista que viveu o século 20, com todas as suas derrotas, mas, acima de tudo, pelas históricas vitórias do movimento revolucionário – que, após a morte de Guevara, nos anos 70, sacudiu toda a África.
Outro fator caro à fotografia é a memória. Mas pensarmos em fotografia e memória no campo político traz alguns problemas que devemos superar. A estetização da política não pode se tornar o carro chefe desse movimento de memória. As fotografias dos primeiros planos quinquenais tiradas por Margareth Bourke-White, as imagens de soldados congoleses com o retrato de Mao Zedong em suas mãos, e a célebre fotografia da bandeira soviética sobre o Reichstag são registros históricos que, aliados aos acontecimentos, nos levam para um passado glorioso. Isso só pode acontecer pela atividade revolucionária; a fotografia apenas registrou esse movimento. O uso dessas imagens como propaganda, durante o século 21, peca pela estetização de uma política que, hoje, tem pouco avanço nas classes trabalhadoras e nos movimentos sociais. Precisamos de novos Vietnãs para que novas imagens como essas possam surgir, ao contrário, ficaremos, eternamente, no campo da memória como lembrança de um passado vitorioso. Essa memória só se torna efetiva, politicamente, quando aliada à uma conjuntura política favorável ao movimento revolucionário, e deve servir como a ideia e o símbolo que impulsiona novos soldados da liberdade, a ideia que se transforma como força material.
É a partir dessas análises, tanto da reprodutibilidade técnica da fotografia, como da sua relativa verdade em si mesma, que podemos entender o trabalho de Susan Meiselas, principalmente no corpo de registro dos acontecimentos no continente americano e no Curdistão.
Foice, martelo e crucifixo: a Revolução Sandinista pelas lentes de Susan Meiselas
A situação política da Nicarágua seguiu um modelo quase padronizado na América do Sul e Central entre os séculos 19 e 20. O fim do domínio imperial espanhol, a partir das lutas de independência, não resultou numa verdadeira libertação nacional. Na espreita para dominar o que via como um quintal, os Estados Unidos logo ocupou os vácuos de poder deixados pelos espanhóis em vários países do continente americano – vácuo esse que só foi possível, também, pela intervenção americana nas lutas contra os espanhóis. A filosofia civilizacional, a “missão divina” que dita a política externa norte-americana – que, na realidade, deve ser chamada de imperialismo –, é um fenômeno que percorre toda a história recente do nosso continente. Onde quer que os espanhóis tenham fugido, lá estavam os exportadores de democracia para sugar as populações locais. A presença colonial apenas mudava de idioma. É a partir desses aspectos que podemos entender a revolução na Nicarágua, que libertou o país das ocupações externas[4].
Se pudermos sintetizar a revolução sandinista em duas imagens, essas seriam a de Jesus e Che Guevara. Em primeiro lugar, a imagem de Che Guevara demonstra o potencial de explosão revolucionária que Cuba causou na América do Sul e Central. A vitória dos guerrilheiros do Movimento 26 de Julho foi, de certa maneira, a primavera à qual Che se referia em sua célebre frase. Não foi apenas nas Américas que a revolução cubana causou grandes abalos. O internacionalismo da pequena ilha caribenha foi determinante para a vitória dos sul-africanos contra o regime de apartheid e o fim do colonialismo português em Angola. Se esse internacionalismo foi capaz de atravessar o oceano atlântico, ele também se faria presente na Nicarágua. Tanto a burguesia nacional quanto os estudantes e militantes da Frente Sandinista de Libertação Nacional – organização que surge num contexto de luta nacional, e se inclina ao marxismo –, olhavam empolgados para a queda de Fulgêncio Batista. Os primeiros, por acreditarem que tão logo Batista caísse, Fidel e seus camaradas entregariam o governo para a burguesia nacional cubana. Os segundos, por sentirem que “um espectro rondava a América.” Foi a FSLN quem acertou.
Cuba, atuando em duas frentes, ajudou não apenas na construção da revolução, mas na construção do estado pós-revolucionário. A similaridade de ambos os países, no que se refere à presença americana em seus territórios, aliado à forte postura internacionalista de Cuba, foram dois importantes ingredientes no sucesso da revolta armada nicaraguense, que, em 1979, venceu a ditadura de Somoza, que contava com o apoio dos Estados Unidos, da Costa Rica e de alguns outros países que compunham a Organização dos Estados Americanos.
O segundo ponto, imageticamente, é Jesus Cristo. A Revolução Sandinista foi ímpar ao colocar o marxismo e o cristianismo lado a lado. A Teologia da Libertação teve enorme influência na insurgência que tomou os céus da Nicarágua. Como os freis brasileiros que não se curvaram à ditadura, missionários e católicos em geral se colocaram lado a lado ao movimento revolucionário nicaraguense para o propósito da revolução. Esse foi um movimento de grande importância por toda a América Latina durante o século 20, e colocou em xeque algumas das crenças mais ortodoxas do marxismo, que, por vezes, surgiam de uma visão idealista do materialismo de Marx.
Susan chegou à Nicarágua em junho de 1978, após a notícia do assassinato de Pedro Joaquín Chamorro Cardenal, jornalista do La Prensa – à época, o único veículo de oposição à ditadura vigente no país. Seu trabalho no país, chamado apenas de Nicarágua, é um retrato humano e com posição de classe, que documentou os últimos momentos da ditadura de Somoza, com toda sua corrupção e luxo, até a vitória do movimento revolucionário. As imagens dos carros de luxo contrastavam com as imagens de covas, pessoas sendo enterradas, de miséria. Susan não sabia se a revolta seria vitoriosa, e é devido a isso que seus registros têm tanta importância, pois eles passam, também, pelo campo da memória.
É nessa aparente contradição que Susan se colocou diante do Homem Molotov. A mais famosa das fotografias de Susan Meiselas se tornaria o símbolo universal da revolta sandinista. O Homem Molotov se chamava Pablo “Bareta” Arauz, e aparece na foto segurando, em sua mão direita, uma garrafa de Pepsi, transformada num coquetel molotov. Na mão esquerda, Pablo segura um fuzil. Em seu pescoço, um crucifixo balança com o movimento de arremesso, e em sua cabeça, uma boina, idêntica à que Che Guevara costumava usar. A imagem tomou proporção quase tão grande quanto a famosa Guerrilheiro Heróico, de Alberto Korda.O Homem Molotov se tornaria cartaz, boton, pintura, grafite, camiseta, seria estampado em qualquer superfície que fosse possível.
A importância dessa imagem se dá, como dito no início do artigo, pela sua história. Pablo mirava seu molotov em direção à sede da Guarda Nacional em Esteli, que era uma das últimas fortalezas da ditadura de Somoza. Susan, ao desembarcar no país, tinha o desejo de registrar “a realidade por trás da política externa americana” e a “cultura de terror na América Central” propagada pelos Estados Unidos. É nesse momento, de relação entre fotografia e história, que dá ao Homem Molotov sua importância. A vitória da revolução fez a imagem representar esperança, alegria e libertação. Não à toa, a fotografia ganhou destaque novamente quando a Nicarágua entrou no momento anti-revolucionário, com os chamados Contras se organizando para conter o sandinismo. O apoio dos Estados Unidos ao movimento, que ficou conhecido como Irã-Contras, era mais uma triste prova da política americana que despertou Susan para direcionar suas lentes à América Central. Por ironia do destino, o caso só foi levado à mídia americana e mundial a partir de uma fotografia feita por Lou Dematteis, que registrou o ex-fuzileiro naval Eugene Hasenfus, no momento em que era capturado, na Nicarágua, por soldados do FSLN.
Outro ponto a se notar é o uso da imagem para fins diversos. Assim como Guerrilheiro Heróico, o Homem Molotov também passou por um processo que a própria Susan chamou de apropriação. Os próprios Contras a usariam como propaganda anti-comunista, para angariar fundos nos Estados Unidos. Em abril de 2006, durante um simpósio no New York Institute for the Humanities, Susan falou sobre o uso indevido da fotografia de Pablo, com foco numa apropriação da imagem feita pelo artista Joy Garnett, afirmando que:“sua missão como fotojornalista foi fornecer um contexto cultural e histórico para as imagens que ela capturou”. A exposição da verdadeira identidade do Homem Molotov, e o distanciamento de sua imagem ao momento histórico em que pertence, também foram motivos pelos quais Susan criticou Garnett:
“Mas ainda sinto fortemente, enquanto vejo o contexto de Pablo Arauz sendo eliminado – enquanto o vejo sendo convertido no emblema de um motim abstrato – que seria uma traição para ele se eu pelo menos não protestasse contra a diminuição de seu ato.”
Esse fato nos dá uma dimensão inicial de que o trabalho de Susan contém muito mais do que imagens; contém também um objetivo político, e uma preocupação com o uso de sua obra. Não são meras imagens com potencial propagandístico, mas imagens que, no momento de sua captura, já continham uma posição política nos olhos de Susan. A verdade dessa imagem se dá no contexto em que ela foi criada, mas também no objetivo de Susan em congelar aquele momento. Pablo, sob a alcunha de Homem Molotov, representava o que Susan via como um legítimo movimento de libertação nacional – ela voltaria ao país diversas vezes, inclusive, lamentando os rumos que a Nicarágua tomou após o processo contra-revolucionário. A reprodução do Homem Molotov pode, de diversas maneiras, descontextualizar sua origem, independente de seus fins, e é por isso que Susan luta para que a aura dessa imagem – a sua essência, autenticidade, a sua verdade, como Walter Benjamin definiu essa categoria – jamais se perca.
Genocídio e Revolução Curda: história, fotografia e memória étnica
Os Curdos são um povo do Oriente Médio, e, apesar das relações desses povos com os Persas, são uma etnia única, com língua, religião e cultura próprias. Estima-se que, hoje, sejam mais de 30 milhões de pessoas espalhados pelo mundo. O Curdistão é uma região histórico-social que compreende regiões da Turquia, Irã, Síria e Iraque. O nome Curdistão tem origem no termo “Terra dos Curdos”, cunhado em 1150 pelo sultão Sanjar, para designar a parte do Irã ocidental povoada pelos curdos. Avançando na Idade Moderna, o Curdistão é desmembrado em diversos principados. Em 1639, é anexado pelos impérios Otomano e Persa, a partir do Tratado de Zuhab. Foi pela influência da Revolução Francesa que, a partir da década de 1830, os Curdos passam a lutar contra o Império Otomano, com o objetivo de se unificarem em um Estado-Nação.
É a partir desses eventos que podemos entender a causa Curda. O fim do Império Otomano não trouxe liberdade para esse povo, pelo contrário, começa ali um novo capítulo de sua história. O Tratado de Lausanne, de 1923, deu à Turquia o reconhecimento como nova república, sucessora do Império Otomano. Esse tratado também repartiu as regiões curdas entre o Iraque, a Síria e o Irã. A repressão dos Curdos por parte da Turquia é implacável. Em 1930, o estado turco esmaga a República de Ararate, bem como outras revoltas curdas. Em 1946, foi a vez do Irã esmagar outro auto-proclamado estado curdo, a República de Mahabad, que contou com o apoio da União Soviética, já no estágio inicial da Guerra Fria.
Por se tratar de uma opressão nacional e étnica, tanto por parte do Irã quanto da Turquia, os curdos passam a desenvolver suas ideias de liberdade. A fundação do Partido dos Trabalhadores do Curdistão – originalmente, marxista –, foi um ponto de inflexão na luta armada dos curdos contra os estados opressores, em especial, a Turquia. Posteriormente, já sob a direção de Abdullah Öcalan, e influência teórica de Murray Bookchin, o PKK toma a direção do Confederalismo Democrático, uma forma de anarquismo com grande influência do feminismo, do ecologismo, auto-gestão e auto-defesa.
É após a Operação Anfal, campanha de genocídio comandada por Saddam Hussein contra o povo curdo – mas, também, de outros povos –, que Susan Meiselas chega às regiões de povoamento curdo. Susan registrou imagens de valas comuns onde curdos eram enterrados. Foi o primeiro contato que teve com aquela região e aquele povo, e, desde 1991, Susan decidiu que, dali em diante, documentaria não somente a luta dos curdos, mas a sua existência, como forma de manter viva a memória de uma população que, se não tomar as armas para se defender, pode desaparecer. Ainda que o PKK tenha abandonado a causa nacional – e isso fica claro durante uma entrevista de Cemil Bayik, líder da ala militar do partido, para a BBC –, os curdos são considerados o maior povo sem uma nação em todo o globo, e isso é crucial para entender a documentação de Susan, que se apossa da fotografia, mas se desdobra em inúmeras outras formas de documentação e de memória coletiva.
Ainda que, em 2013, durante a Guerra Civil que assolou a Siria, os curdos já estabelecidos no país tenham tomado territórios deixados pelos sírios, e estabelecido a região autônoma de Rojava – que, por si só, merece um estudo mais aprofundado –, o trabalho de Susan tem um recorte estabelecido no período dos anos 1990 e 2000. Susan voltaria ao país mais recentemente, lamentando que os curdos, mesmo após a Revolução de Rojava, ainda sofram com bombardeios, assassinatos e outros meios de limpeza étnica. Essa preocupação de Susan se situa numa experiência semelhante com a qual se deparou na Nicarágua: ainda que os povos se libertem, essa libertação não é definitiva, e a história pode avançar em forma de retrocesso, trazendo novamente a opressão de classe, raça e étnica para nações e populações que deram a vida para se livrar do imperialismo.
O trabalho de Meiselas, portanto, se dá muito mais no âmbito memorialístico do que na exibição e registro dos fatos. No projeto Kurdistan: In the Shadow of History, Meiselas organizou, em formato de livro, e com o auxílio de colagens, uma série de documentos que transmitem a história do povo curdo. Além das suas fotografias, no livro, os relatos de administradores coloniais, os mapas, os jornais e as fontes orais do povo curdo são usados como instrumento de organização da história de toda uma etnia. Mas, pra além da simples organização dos relatos e fatos, Susan procura dar voz aos atores dessa história um tanto trágica, fugindo do orientalismo da grande mídia. É um ato de contestação da versão oficial da história curda, ou seja, da história contada pelo ocidente e pelos seus fantoches do Oriente Médio.
Outro importante projeto, Kurdistan: A Family Album, se propôs a construir um álbum de família do povo curdo. Como complemento ao trabalho anterior, o álbum tem uma representação particular muito interessante ao pensarmos a memória como documento histórico. Longe de ignorar a importância das fontes orais e outras formas de relato histórico, o álbum – a partir de fotografias e entrevistas coletadas com as famílias, e o uso da etnografia –, se coloca não apenas como prova documental, mas como história viva, sobre pessoas vivas ou mortas. A morte, no colonialismo e no imperialismo, se faz tão presente que parece ganhar vida. Os parentes assassinados seguem presentes, sejam nos traumas, nas psicoses que o sistema colonial causa, mas, também, nos documentos, nas imagens, nos álbuns. Como podemos observar nos últimos meses, durante a ofensiva colonial israelense contra a Palestina, a manipulação de fontes e a dilaceração dos fatos tem sido uma arma potente para sinalizar a permissão da ofensiva sobre o que ainda resta da Faixa de Gaza. Os povos Curdos não fogem a essa regra, e a negação de sua existência enquanto curdos é uma ferramenta de apagamento simbólico, para que os tanques, os mísseis e as balas de fuzil possam passar tranquilamente sobre seus corpos, bairros e cidades.
Como o sistema colonial necessita sempre de uma justificativa para seus atos, de desculpas esfarrapadas, de distorções sobre os povos, suas origens e sua dignidade, o trabalho de Meiselas, como o trabalho histórico de uma série de artistas e intelectuais, se coloca num lugar de extrema importância, como uma ferramenta de contra-história, até que a história verdadeira se torne a história oficial.
Ao contar sobre suas primeiras experiências com o povo curdo, ao se deparar com as covas coletivas, Susan demonstra como a relação entre história e memória é importante para o processo de libertação e estabelecimento não apenas dos curdos, mas de todos os povos alvos de genocídios[5]:
“Senti-me estranha—fotografando o presente enquanto entendia tão pouco sobre o passado. Agora percebo que a descoberta dessas sepulturas me levou a anos de escavação adicional”.
Sua inserção no seio do povo, no objeto que investigou, e sua consciência anti-imperialista que possibilitaram dar ao seu trabalho o caráter que tem. Nisso se desdobram outras formas de atuação da fotógrafa, como o ensino de fotografia para homens e mulheres curdas, para que eles possam registrar a sua vida. Mais do que ensinar, ou ser o único agente possível desse registro, Meiselas se coloca à serviço da causa curda, e a fotografia passa a ser mero detalhe diante do todo. Fotografia que nem sempre é o ato principal nesse tipo de trabalho intelectual-artístico. Sobre isso, Susan é enfática[6]:
“Às vezes não é tão importante que eu tire a foto, mas sim que faça algo que mostre o que está escondido. (…) Mas acho que os fotógrafos precisam descobrir qual é a motivação deles por trás das câmeras, se a conexão é real e ou se ele está ali só porque acredita que essa dor precisa ser registrada para um outro tipo de propósito. Realmente tento achar uma conexão com o que está acontecendo do outro lado da lente.”
Se, para Susan, “cada imagem é uma parte misteriosa de algo ainda não revelado”[7], é dever do historiador, que se coloca em prol da classe dominada – como também do artista e do intelectual que se situa ao lado dos povos oprimidos –, criar uma conexão entre essas imagens que contem um mistério ainda não revelado e a realidade histórico-econômica, para que elas jamais percam a sua aura, e possam ser memória, propaganda, mas, acima de tudo, ferramenta que conduz a ideia até o lugar em que se torna força material. É o que Susan vem fazendo há décadas, e cabe a nós, intelectuais orgânicos, aprendermos algo com esse processo, para que não sejamos apenas contadores de histórias, ou apenas memorandos de derrotas empilhadas umas após as outras.
Hoje, Rojava resiste ao intenso bombardeio e ataque por parte do estado turco, ao mesmo tempo em que tenta construir uma sociedade em que os flagelos do capitalismo e do colonialismo não mais os atinja. Se, por um lado, essa resistência se dá pelas armas do PKK e dos combatentes curdos de autodefesa, o trabalho de Susan, por outro lado, é uma resistência simbólica, ideológica e histórica. A memória histórica não deve servir somente como rememoração, mas agir como arma de combate ao esquecimento, para que o colonialismo não consiga abrir alas para suas ações com o apagamento de outros povos e histórias.
Retornando a Walter Benjamin, para concluir minhas reflexões acerca do trabalho de Meiselas, recorro ao seu escrito Sobre o conceito de História. Escrito durante seu exílio na França, em 1940, devido à ascenção do nazismo – Walter era um judeu-alemão, simpático ao marxismo –, o filósofo buscava verbas do Instituto de Pesquisas Sociais para conseguir sobreviver em Paris, e, depois, fugir para os Estados Unidos. No dia 25 de junho de 1940, a Alemanha Nazista conclui a ocupação da França, após 46 dias de luta, e Walter se vê encurralado. Entre os dias 25 e 26 de setembro daquele mesmo ano, Benjamin tenta atravessar a fronteira da França com a Espanha, mas é barrado pela falta de um visto de saída do país. No dia 26, Walter decide acabar com sua vida, para não cair nas mãos dos nazistas, ingerindo morfina. Na manhã seguinte, Walter estava morto.
Na sexta tese de Sobre o conceito de História[8], Walter nos deixou uma importante lição sobre a história, e, devido às condições em que escreveu essas teses, podemos colocá-lo numa situação semelhantes aos curdos e nicaraguenses dos quais falei nesse artigo, e dos quais Susan documentou a história:
“Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo ‘como ele de fato foi’. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo. Cabe ao materialismo histórico fixar uma imagem do passado, como ela se apresenta, no momento do perigo, ao sujeito histórico, sem que ele tenha consciência disso. (…) O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer.”
Ousemos usar as armas, a história e a fotografia para que o inimigo cesse de vencer.