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PPP dos presídios: uma parceria Lula-Temer-Bolsonaro

Criticada por movimentos sociais e comemorada por empresários, privatização de presídios avançada por Lula remonta a decretos de Bolsonaro e Temer
Theo Dalla
Manaus – Grupo religioso e familiares de presos fazem oração em frente à Cadeia Pública Raimundo Vidal Pessoa (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

Havia 550 mil pessoas privadas de liberdade no Brasil em 2013, quando a primeira Parceria Público-Privada (PPP) em um presídio foi realizada, no município de Ribeirão das Neves, em Minas Gerais. O Brasil figurava então em 4º lugar no ranking mundial das maiores populações carcerárias. Dez anos depois, em 2023, o país “avançou”: agora, desponta em 3º lugar, com 840 mil pessoas presas – um aumento de 52%. Para uns, isso significa o agravamento de problemas sociais do país. Para outros, o crescimento de um promissor e lucrativo mercado. O governo Lula, em aparente convergência com estes últimos, decidiu por continuar a “Ponte para o Futuro” de Michel Temer e realizar o que nem Bolsonaro conseguiu: ampliar o rol de áreas para privatização do decreto n° 8.874 de 2016, incluindo educação, saúde e, dentre outros, o sistema prisional.

Em outubro de 2023, na simbólica sede da Bolsa de Valores de São Paulo (a B3), bateu-se o martelo sobre a concessão da construção e gestão do novo complexo prisional de Erechim, no Rio Grande do Sul. Venceria a concessão quem apresentasse o lance menos custoso para o Estado, isto é, o candidato que ofertasse o menor preço por cada pessoa presa. O edital impunha o limite de 233 reais diários por vaga disponibilizada e ocupada, somado a um pacote de incentivos fiscais para investidores privados. Houve apenas uma inscrição para a disputa. A empresa Soluções Serviços Terceirizados ofereceu o valor mínimo permitido e venceu o pleito, tornando-se responsável pela construção e gestão do presídio pelos próximos 30 anos. A medida foi comemorada e reivindicada como “modelo” pelos governos Lula, Leite e por empresários, todos envolvidos no projeto.

O leilão ocorreu na contramão do que recomendaram 87 entidades (desde associações de juízes até organizações de familiares de presidiários) signatárias de uma nota técnica contrária à privatização do sistema prisional. Nela, denuncia-se a inconstitucionalidade do projeto e a tendência de agravamento da situação dramática dos presídios brasileiros, marcados pela superlotação, composta majoritariamente de homens jovens, pobres e negros (estes últimos representam 68% da população carcerária), sendo 25% dos aprisionados sequer foram condenados.

Quase um ano após o decreto nº 11.498 de 2023, do governo Lula – que inclui o sistema prisional no rol de áreas prioritárias para concessões à iniciativa privada – e quatro meses após o leilão do complexo prisional de Erechim, o ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania, Silvio Almeida – intelectual negro reconhecido por estudar e denunciar o racismo estrutural brasileiro – qualificou como “inaceitável” a privatização de presídios, alertou para a possibilidade de ascensãodo domínio do crime organizado nasprisões e também denunciou que a medida significa a “privatização da execução da pena”.

O presente da Ponte para o Futuro

A deposição da presidente Dilma Rousseff, em 2016, foi um marco na história política recente, tornando-se ainda mais controverso ao serem julgadas improcedentes as acusações de crime fiscal que justificaram o impeachment. O evento foi considerado um “golpe” por diversas personalidades e entidades, inclusive, pela própria Dilma e seu partido, o PT. Michel Temer (MDB), vice de Dilma, assumiu a Presidência da República com o programa “Ponte para o Futuro”, no qual apresentava um balanço da situação econômica e política do País e apontava para uma série de medidas que pretendia realizar nos seus dois anos de governo. Dentre elas, a seguinte:

“d) executar uma política de desenvolvimento centrada na iniciativa privada, por meio de transferências de ativos que se fizerem necessárias, concessões amplas em todas as áreas de logística e infraestrutura, parcerias para complementar a oferta de serviços públicos e retorno a regime anterior de concessões na área de petróleo, dando-se a Petrobras o direito de preferência”

Seguindo este plano, no mesmo dia em que Dilma foi afastada provisoriamente de seu cargo – em 12 de maio de 2016 – Temer, presidente em exercício, assinou a Medida Provisória que criava o Programa de Parcerias de Investimentos, convertido em Lei no mesmo ano, em setembro. O Programa, amparado pela Lei nº 11.079, sancionada por Lula em 2004, instituiu as diretrizes de um amplo processo de concessões de empreendimentos públicos à iniciativa privada. No mês seguinte, em outubro, o então presidente lança o já referido decreto nº 8874, cujo objetivo foi regulamentar as condições e áreas prioritárias para a realização do Programa, sendo elas: a) logística e transporte; b) mobilidade urbana; c) energia; d) telecomunicações; e) radiodifusão; f) saneamento básico; g) irrigação. Abriu-se, então, a porteira para explorar economicamente – com financiamento público e lucro privado – áreas estratégicas do Estado brasileiro.

Este Programa foi acompanhado de uma série de outras reformas realizadas por Temer em tempo recorde, como a Reforma Trabalhista e a Emenda Constitucional 95, o Teto de Gastos. Este último mudou estruturalmente as regras fiscais do Estado, limitando como nunca os investimentos públicos nas diversas áreas de interesse da população. A combinação de todos estes fatores significou uma alteração estrutural na economia estatal, cuja manutenção torna impossível retomar investimentos, melhorar a qualidade dos serviços públicos e trazer bem-estar para a maioria das famílias trabalhadoras brasileiras.

Ao que tudo indicava, a deposição de Dilma e a prisão de Lula eram alicerces indispensáveis da “Ponte para o Futuro”. Esta ponte abriu passagem para eleição de Bolsonaro, o qual, no que tange à lei que define as prioridades de PPPs, por meio do Decreto nº 10.106 – assinado por Bolsonaro, Moro e Onyx Lorenzoni –, inclui no Programa de Parcerias e Investimentos da Presidência da República (PPI) a política de fomento aos Sistemas Prisionais Estaduais, a fim de realizar um estudo de “alternativas de parcerias com a iniciativa privada para construção, modernização e operação de unidades prisionais”. 

A partir disso, o governo Bolsonaro encomendou, em 2020, um estudo realizado por seis empresas de consultoria financeira, engenharia e jurídica, que formam o Consórcio de Estruturação PPP Prisões RS e SC, lideradas pela PwC – uma empresa estrangeira de consultoria financeira que diz atuar no Brasil há 100 anos. O resultado é um estudo detalhado da viabilidade do projeto, projeções econômicas, incentivos fiscais, empregabilidade dos presos, arcabouço jurídico e afins. 

É este estudo que pauta, em abril de 2023, a política de Lula, quatro meses após sua posse. O novo presidente promulga uma importante alteração no projeto de Temer. Ao lado das sete áreas prioritárias para as PPPs, Lula e o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, adicionam outras seis áreas: a) educação; b) saúde; c) segurança pública e sistema prisional; d) parques urbanos e unidades de conservação; e) equipamentos culturais e esportivos; e f) habitação social e requalificação urbana. Mas não se limitou a isso.

A fim de acelerar e tornar mais atraente para investidores privados, seguindo as diretrizes do estudo referido, o governo Lula estendeu o alcance da emissão de debêntures incentivadas para estas novas áreas que adicionou à Lei. Ou seja, as empresas que firmarem parcerias com o governo para, por exemplo, assumir a construção e gestão de um presídio, poderão captar recursos de investimento no mercado de capitais, tendo os investidores do projeto o direito à isenção ou redução de impostos sobre seus lucros.

Por isso, tão logo foi feito o decreto, mais fácil se encaminhou a concessão da construção e gestão do complexo prisional de Erechim, cujo primeiro leilão foi marcado para julho de 2023, sendo adiado até outubro de 2023. A remuneração da empresa vencedora, que será feita pelo Governo do Rio Grande do Sul, ocorrerá da seguinte forma: mensalmente, receberá um valor fixo de acordo com a quantidade de vagas disponibilizadas (o projeto do presídio prevê 1.200 vagas). Porém, este valor varia de acordo com a ocupação das vagas. Se a vaga está ocupada, o repasse cresce, não podendo exceder o limite de 233 de reais dia/vaga disponibilizada e ocupada. 

Além disso, para a iniciar a operação do presídio, o governo do Rio Grande do Sul fará um repasse estimado em 4 milhões de reais mensais, cuja garantia de pagamento está atrelada ao crédito do estado com a União oriundo da Lei Kandir, que isenta de impostos as exportações de produtos primários. Também consta no contrato que a empresa vencedora deverá investir 150 milhões de reais para a realização das obras e 2 bilhões de reais para a gestão ao longo de 30 anos, recursos que devem ser captados no mercado financeiro, junto a investidores privados interessados em patrocinar o projeto, os quais, como dito, terão o benefício de redução ou isenção de impostos sobre os lucros que obtiverem neste investimento.

“Quando desenhamos qualquer tipo de parceria público-privada, estamos buscando oferecer melhores serviços para as pessoas. No caso do novo presídio de Erechim acontece da mesma forma. Queremos investir na ressocialização e diminuir o déficit no sistema prisional, pois essas medidas são boas para toda a sociedade”, justificou o secretário de Parcerias e Concessões do Governo do RS, Pedro Capeluppi.

Da mesma forma, o governo federal acredita que este projeto é um exemplo de como se pode avançar na solução de um problema social por meio de uma parceria com a iniciativa privada. “A ressocialização de detentos é uma tarefa importante a cargo do Estado e este projeto de parceria público-privada tem por objetivo disponibilizar as condições necessárias a essa recuperação”, explicou o diretor de Planejamento e Estruturação de Projetos do BNDES, Nelson Barbosa.

O que significa a privatização dos presídios

A questão carcerária no Brasil é alarmante. O país está em 3º lugar no ranking mundial de quantidade de pessoas presas,  com uma situação que escancara a desigualdade social e racial brasileira. Segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, das mais de 840 mil pessoas privadas de liberdades, 67% são negros, o que significa uma sobrerepresentação desta população, que, de acordo com o IBGE, é de 55% de todo povo brasileiro. Além disso, 40% são jovens entre 19 e 29 anos e um quarto dos presos (25%) são provisórios, isto é, não têm sentença e aguardam julgamento. Sobre este dado, a organização Danos Permanentes diverge e indica que são 41% os presos provisórios.

A superlotação dos presídios é um problema crônico do País, com o déficit de vagas ultrapassando os 200 mil, o que implica em celas com ocupação muito acima do recomendado. As condições de higiene são precárias e falta acesso básico à assistência médica, levando à morte de milhares de presos por complicações de saúde todos os anos. Ainda segundo o Anuário, só no ano de 2022, morreram 2.453 presos, sendo mais da metade por questões de saúde.

É como um meio para solucionar a “crise crônica” do sistema carcerário que as PPPs do governo Lula aparecem. Na prática, a maior parte dos serviços nas prisões (como alimentação, limpeza e assistência médica) já são executados por empresas privadas terceirizadas. No caso do presídio de Ribeirão das Neves, em Minas Gerais, fruto de uma parceria público-privada, também a gestão é privada. Este é considerado o primeiro e único presídio privado do país. A empresa concessionária foi responsável pela construção e é responsável pela gestão do presídio até hoje.

Uma das cláusulas do contrato desta PPP (de Ribeirão das Neves) foi a garantia, por parte do estado, de uma lotação mínima de 90% do presídio. Isto é, o Estado, em última instância, deveria assegurar a prisão de pessoas em um nível elevado, mantendo o presídio próximo da lotação. Esta cláusula controversa está em relação direta com uma das principais fontes de lucros das empresas concessionárias dos presídios, já que os contratos com o Estado são firmados a partir do valor mensal por vaga ocupada a ser repassado para a empresa responsável. Quanto mais presos, mais repasses.

No caso do leilão do presídio de Erechim, o lance vencedor foi o que ofertava R$233 por vaga disponibilizada e ocupada, mas não havia cláusula de lotação mínima. Entretanto, apesar do site do Programa de Parcerias e Investimentos do Governo Federal ressaltar que os repasses serão de acordo com as vagas disponibilizadas “não havendo qualquer incentivo à ocupação das vagas”, o contrato, como já dito, indica que os repasses também variam de acordo com a ocupação das vagas, mantendo a mesma lógica entre presos e repasses – ainda que não possa exceder a lotação máxima. 

Proprietário do direito à administração do presídio, Gustavo Godoy, dono da Soluções Serviços Terceirizados – uma aspirante a monopólio da terceirização – também terá o direito de indicar a contratação de outras empresas terceirizadas para executar serviços internos, como a limpeza, cozinha, lavanderia, serviços médicos, dentre outros. Única empresa que participou do pleito, a Soluções Serviços Terceirizados já possui centenas de contratos de concessão com diversas instituições públicas e oferece diferentes serviços, principalmente de alimentação para grandes públicos, como Restaurantes Universitários (a empresa atende à UFPE, UFRJ, USP, entre muitas outras instituições). Outra fonte significativa de lucro nos presídios são, justamente, os serviços na prisão.

É na possibilidade de aumento da exploração da força de trabalho carcerária que parece residir o principal objetivo da PPP.

“Nada melhor do que construir um complexo prisional que agregue a produção industrial, o que a gente chama de presídio-indústria”

O trabalho na prisão é um direito do preso, que pode escolher – quando há vagas – fazê-lo ou não, com o benefício de trocar três dias de trabalho por um de remição da pena, e receber não menos que ¾ do salário-mínimo. São diversas modalidades de trabalho, podendo ser interno ou externo, a depender do comportamento e do tipo de pena do preso. A finalidade do trabalho carcerário é servir de instrumento para a ressocialização. No entanto, sua prática é bastante controversa, tanto no Brasil como em outros países onde há presídios privados.

Nos Estados Unidos – que possui a maior população carcerária do mundo – a exploração da força de trabalho carcerária acontece há décadas. Grandes empresas como Microsoft, Victoria’s Secret, Starbucks e Nintendo firmam parcerias com os assim chamados “presídios-indústrias” e podem auferir lucros extraordinários, visto que o custo da força de trabalho carcerária é baixo. Além disso, um estudo do grupo In the Public Interest denuncia o aumento exponencial do lobby das empresas gestoras de presídios nos Estados Unidos, que investem milhões para defender seus interesses – a manutenção da política de privatização e das altas taxas de encarceramento –  junto a congressistas estadunidenses. 

No que tange à privatização do presídio de Erechim, no Brasil, as autoridades envolvidas no projeto têm dado ênfase à necessidade de vincular o encarceramento ao uso da força de trabalho dos presos.  Durante seu discurso após o leilão da concessão, na sede da Bolsa de Valores (B3), Manoel Renato, secretário-adjunto de Infraestrutura Social e Urbana do PPI, disse que, para ressocializar os presos, “nada melhor do que construir um complexo prisional que agregue a produção industrial, o que a gente chama de presídio-indústria”.

Não é a Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) que rege o contrato de trabalho dos presidiários, mas a Lei de Execução Penal (LEP). Apesar de apresentar alguma vantagem, visto que permite a redução da pena, há diversas denúncias de violação de direitos de quem trabalha na prisão, principalmente no que tange ao pagamento de salários (com descontos, por exemplo, para ressarcir o Estado com os custos do preso), mas também em relação a assédio moral e controle da produtividade, como aponta a Nota Técnica Contra a Privatização no Sistema Prisional. Além disso, a empresa gestora do presídio também tem a possibilidade de empregar a força de trabalho carcerária para executar os serviços internos, o que permite se apropriar de uma parcela ainda maior dos repasses financeiros do Estado. 

A utilização de uma força de trabalho precarizada, fora do regime trabalhista brasileiro e cuja remuneração é inferior ao salário mínimo é uma opção atraente para grandes empresas do setor industrial, onde os salários ainda são maiores do que a média brasileira. E é justamente isso que foi analisado pelo Consórcio de Estruturação PPP Prisões RS e SC, em seu estudo realizado a pedido do governo Bolsonaro e absorvido pelo governo Lula. Após fazer um levantamento de pelo menos 32 indústrias (de máquinas, automação industrial, alimentos, mecânica, metalúrgicas, etc.) da região de Erechim, potencialmente interessadas na exploração da força de trabalho carcerária, o estudo aponta os principais benefícios observados pelos empresários:

“Quanto aos benefícios encontrados pelas empresas na contratação de presos, a parceria é vantajosa, pois estima-se que os presos produzem mais que os trabalhadores fora da unidade prisional. Além disso, […] as empresas podem obter diversas economias no custo operacional.”

Somado a isso, destaca-se que “há incentivos os quais isentam as empresas de alguns ressarcimentos ou que reduzem os encargos, tais como a não aplicação de encargos trabalhistas sobre a mão de obra empregada dos presos”. Ou seja, a privatização é vista com bons olhos pelos empresários devido à possibilidade de um nível de exploração mais intenso desta força de trabalho, que não está submetida à CLT e cujo controle da produção, do disciplinamento do trabalho, está atrelado essencialmente ao uso da força.

Para assegurar este nível de produtividade, a empresa concessionária pode “solicitar a qualquer tempo a substituição do preso que se revele inapto ou que não execute o trabalho que lhe foi atribuído”. Uma das implicações práticas desta cláusula é a possibilidade de manipulação do direito ao trabalho dos presos, pois permite retirar-lhes o posto de trabalho caso não atinjam metas de produção maiores “que os trabalhadores fora da unidade prisional”, como é a já revelada expectativa dos industriários interessados em explorar essa força de trabalho. Já que o trabalho é uma das únicas formas de reduzir o tempo de cárcere, agarrar-se a estes postos de trabalho – mesmo que em condições degradantes – torna-se um imperativo para muitos presos. Por mais que o estudo do Consórcio não revele, pode-se supor que desta condição derive a ideia de que presos são mais produtivos que trabalhadores livres.

A perspectiva é que o presídio de Erechim se torne um modelo nacional. Deve abrigar os presos com “melhor comportamento” e aptos para o trabalho e dispensar aqueles que não se enquadrem nestes termos. Já que 30% das penas dos presos são de duração entre 4 e 8 anos, e o crescimento da população carcerária é constante nas últimas décadas, tal situação deve garantir um amplo e inesgotável contingente de presos-trabalhadores, mesmo trocando três dias de trabalho por um dia de remição da pena. Com a suposta intenção de solucionar o problema carcerário por meio das PPPs e da ressocialização pelo trabalho, seguindo o fio de Temer e Bolsonaro, o governo Lula deve criar verdadeiros modelos nacionais de presídio-indústria, em que se legaliza um tipo de trabalho análogo à servidão.

Um alarme ignorado

Ainda antes do leilão de Erechim, 87 entidades de todo Brasil lançaram uma nota técnica analisando os impactos da privatização dos presídios. Na carta, chama-se atenção para a tendência de aprofundamento da violação dos Direitos Humanos dos presos, de aumento da taxa de encarceramento, da piora das condições de trabalho dos agentes penitenciários (fruto da terceirização) e, principalmente, denuncia-se a transformação do preso em mercadoria. 

“A situação se agrava com os incentivos do Governo Federal para que empresas privadas absorvam a gestão prisional e a transformem em um mercado lucrativo. Os contratos firmados com a iniciativa privada parecem querer favorecer o encarceramento em massa, com a aposição de cláusulas contratuais que exigem taxas mínimas de lotação das unidades prisionais, aliadas à remuneração da empresa por cada pessoa encarcerada, com a submissão dos corpos negros a trabalhos forçados e aumento das margens de lucro com a precarização ainda maior do sistema prisional”, denunciam as entidades. 

Além disso, aponta-se a inconstitucionalidade do processo de privatização, visto que vários serviços relativos ao cárcere – como o controle, inspeção, monitoramento, isolamento por motivos de segurança ou disciplinar e cumprimento de alvarás de soltura – serão delegados a uma empresa privada. “A delegação de qualquer atividade relacionada à segurança dos estabelecimentos prisionais encontra-se expressamente vedada pelo texto constitucional, colocando óbice jurídico intransponível à privatização”, ressaltam na nota.

Para além de também ferir compromissos internacionais do Brasil frente à Convenção nº 29 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que qualifica como “trabalho forçado ou obrigatório” o prestado por presos a empresas privadas, a nota sinaliza a possibilidade de aumento da corrupção nas prisões e o aumento do custo por preso, a partir de exemplos dos complexos prisionais já administrados privadamente. O custo médio por preso no sistema público é de R$1,8 mil, enquanto no privado é de R$4 mil, chegando a R$5,3 mil em alguns casos.

Ao fim, as entidades fazem três requisições ao governo federal, sendo elas o fim dos incentivos fiscais e financeiros à concessão, especialmente o uso de debêntures incentivadas; a suspensão do leilão para a privatização do Presídio de Erechim; e o fim das PPPs no sistema prisional. Nenhuma das reivindicações foi atendida. O Presídio de Erechim, como dito, foi a leilão no mesmo ano. 

Onde estão as alternativas?

O problema carcerário no Brasil se arrasta por décadas e não parece haver sinais de mudança. O número de presos, bem como o déficit de vagas, aumentou constantemente nos últimos 20 anos – e a criminalidade não diminuiu expressivamente. Ou seja, o caso brasileiro não demonstra uma relação direta entre o aumento da quantidade de encarcerados e a diminuição do nível de criminalidade. Por outro lado, os dados sobre os presídios brasileiros apontam fortemente para uma relação direta entre o encarceramento, a cor de pele dos presos e a classe social, visto que a maioria são homens jovens pretos e pobres. 

A privatização dos presídios, como denunciam as 87 entidades signatárias da Nota Técnica, não se demonstrou uma solução, seja na experiência brasileira, seja na estadounidense – mas agravou a situação. No entanto, o problema no sistema prisional brasileiro antecede as tentativas de privatizações. Apesar da relevância dos possíveis impactos da medida, a discussão em torno da privatização limita-se a debater quem vai gerir a crise no sistema – a iniciativa privada ou o Estado – e não como solucioná-lo. Pois, se a intenção com a medida é solucionar o problema, falta na esfera pública o debate sobre os próprios fundamentos desta crise. 

Alguns intelectuais e entidades apontam para a necessidade de iniciar um processo de desencarceramento, junto a um amplo debate de revisão do sistema penal brasileiro, em especial no que tange à criminalização das drogas, visto que o tráfico é um dos principais motivos das prisões. Aponta-se para a possibilidade de iniciar o desencarceramento a partir das centenas de milhares de presos provisórios e, também, pelo oferecimento de penas alternativas à restrição de liberdade. Porém, nenhuma dessas medidas estão em pauta no debate nacional, à medida que as privatizações avançam. 

A agilidade do governo Lula em encaminhar a criação de um modelo nacional de exploração da força de trabalho carcerária, financiado pelo mercado privado de capitais, parece indicar a existência de uma forte pressão política – por parte da burguesia – de viabilizar regimes de trabalho cada vez mais precarizados e, portanto, mais lucrativos.  Isso, quando visto como apenas uma parte da política econômica do atual governo, que não só ampliou o programa de PPPs como reformou o Teto de Gastos (arcabouço fiscal), manteve a autonomia do Banco Central e as altas taxas de juros, fez manutenção das reformas trabalhista e da previdência etc., demonstra que há uma clara linha de continuidade – no que tange à economia e sua submissão aos interesses da classe dominante – com os dois governos que lhe antecederam.

Lula subiu a rampa do Palácio do Planalto de mãos dadas com representantes do povo brasileiro. Porém, para chegar lá, atravessou a “Ponte para o Futuro” de Michel Temer, asfaltada por Bolsonaro, ao lado de grandes empresários, ávidos por lucrar em cima da educação, da saúde, da moradia, dos parques públicos e do encarceramento em massa da população negra e pobre. Para o povo a quem Lula deu as mãos em sua posse, pular dessa ponte é uma questão de sobrevivência.

 

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