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Gaza e a denegação

Com a instrumentalização de Israel do Holocausto para sua guerra contra Gaza, devemos nos perguntar: por que os palestinos têm de pagar pelos crimes de Hitler?
Marco D’eramo
Graffiti mostrando uma criança palestina sob a mira de um soldado israelense. (Foto: noaz. / Flickr)

Nos últimos três meses, tenho tomado meu café da manhã em meio aos escombros. Tomo meu café enquanto a agonia dos feridos é transmitida pela TV. No jantar, dou uma garfada nas verduras enquanto os bombardeios despedaçam as crianças. Descasco minha maçã ao som dos gritos desesperados das mulheres. Talvez todos esses horrores nos façam engordar – pois estamos nos tornando, sem saber, seguidores de Dolmancé, o mestre de cerimônias que Sade colocou a cargo da educação imoral de Eugénie e que encerra A Filosofia na Alcova (1795) com as palavras imortais: “Nunca como com tanto apetite e nunca durmo com tanta tranquilidade do que quando me farto daquilo que os imbecis têm o mau gosto de chamar ‘crimes’”.

Estamos nos acostumando com a selvageria, dia após dia. Então nos perguntamos como os alemães puderam ignorar o genocídio que estava sendo perpetrado ao seu redor. Nós, guardiões inflexíveis dos valores ocidentais, defensores implacáveis do direito internacional: jantamos um assassinato em massa bien chambré (na temperatura certa). Ficamos profundamente magoados com a morte de “civis inocentes”, é claro, e tristes com os hospitais destruídos. Nossos corações se voltam para os maltrapilhos sem futuro que atacam os poucos caminhões de ajuda que chegam à Faixa. Estamos angustiados com o número de jornalistas que estão sendo massacrados. Mas a “catástrofe humanitária” em Gaza não nos impede de dormir à noite, mesmo quando a situação piora a cada semana.

A estrutura dessa “catástrofe humanitária” lembra a da emergência climática. A impotência dos trabalhadores da ONU e das ONGs em meio às ruínas de Gaza lembra os ativistas ambientais que tentam limpar os oceanos uma colher de chá por vez – enfrentando a impossibilidade de atenuar o que, em vez disso, deveriam estar impedindo que acontecesse. Assim como a vontade dos governos de lidar com a emergência climática é expressa pela a organização de congressos nos maiores potentados petrolíferos do mundo, com a participação de 2.456 lobistas do setor de combustíveis fósseis e liderados pelos presidentes de suas maiores empresas, também é o presidente do estado que organiza o transporte aéreo de armas para Israel quem pede “contenção” e adverte contra “bombardeios indiscriminados”. De acordo com a CNN, pelo menos 22 mil das 29 mil bombas lançadas em Gaza até 13 de dezembro foram fornecidas pelos EUA. Esse é um primo próximo do greenwashing (maquiagem verde): fornecemos as bombas e sentimos pena de suas vítimas. Chamamos isso de bombardeio compassivo.

Não é de se admirar que o Sul global considere o Ocidente hipócrita. Isso seria menos evidente se o governo israelense e seus apoiadores simplesmente declarassem abertamente que Israel tem o direito de se vingar do ataque que sofreu. A vingança tem uma tradição antiga, ainda que inglória, consagrada na própria Bíblia – “olho por olho, dente por dente” – e, poderíamos acrescentar neste caso, “criança por criança”. E a vingança estabelece seus próprios limites: por definição, ela deve ser proporcional à ofensa sofrida. Em vez disso, agora estamos chegando a quase vinte palestinos mortos para cada israelense morto. Pois proclamar que o objetivo não é a vingança, mas a defesa, evita o problema da magnitude, da medida: pode-se continuar a matar ad libitum (a bel-prazer) porque se está apenas “defendendo” a si mesmo, com veículos blindados e total superioridade aérea contra um inimigo que não tem armamento pesado.

A verdade é que se tornou impossível declarar publicamente um desejo de vingança. A vingança é o motor narrativo de infinitos filmes de ação (o cidadão pacífico que se transforma em um feroz carrasco para vingar o massacre de sua família e assim por diante); mas, para além da indústria cultural, ela se tornou tabu, indizível, excluída do discurso público. Isso é fundamental para o que Bourdieu chama de “denegação”. A negação é exercida quando as ações só podem ser realizadas se negarmos a nós mesmos que as estamos realizando. A negação pode ser exercida em campos como o mercado de arte: o artista só pode obter recompensas financeiras por seu trabalho se convencer a si mesmo de que é motivado puramente por preocupações artísticas. Mas em outras áreas ela é muito menos inocente. O guarda do campo de concentração não pode fazer seu trabalho corretamente se pensar que é a escória humana. Até mesmo o oficial da SS deve ser capaz de se olhar no espelho pela manhã enquanto faz a barba. Em termos mais gentis: para ser um bom guarda, você deve ter assimilado a crítica foucaultiana dos sistemas disciplinares.

Minha experiência pessoal com líderes políticos – embora esporádica e superficial – permite-me dizer que a hipótese do cinismo (de que os políticos são cínicos que mentem sabendo que estão mentindo) é muitas vezes elogiosa demais, lhes concede demasiado crédito. Os políticos quase sempre acabam acreditando em suas próprias besteiras. Em muitas situações, enganar a si mesmo é a única opção. Há um estágio em que o hipócrita mente para si mesmo a tal ponto que não tem mais consciência de sua própria hipocrisia. Ele realmente pensa que possui as virtudes que alardeia, defendendo os valores que pisoteia. A hipocrisia permite que nos reconciliemos com aquela parte de nós mesmos que não gostamos, mas da qual não podemos prescindir. E o que é válido em um nível pessoal é válido no terreno da ideologia – diz respeito ao que é socialmente dizível e ao que não é. A hipocrisia se torna ainda mais necessária quando se trata da opinião pública – seu crescimento tem sido fruto da formação da opinião pública, e ela se tornou uma ferramenta indispensável da política.

Embora a definição de La Rochefoucauld (“Hipocrisia é a homenagem que o vício presta à virtude”) seja mais apurada, vamos prosseguir com a definição convencional fornecida pelo dicionário Webster: “Hipocrisia. A pretensão de ter um caráter virtuoso, crenças ou princípios morais ou religiosos etc., que não se possui”. Portanto, o hipócrita não é simplesmente um mentiroso. Os vigaristas mentem, mas não são hipócritas. O Príncipe, como Maquiavel o descreve, mente o tempo todo, mas não é hipócrita. O espião que finge não entender chinês para obter informações dissimula, mas não é hipócrita. O hipócrita é aquele que pratica atos imorais enquanto alega defender a virtude: que desencadeia a guerra em nome da paz.

A expressão canônica dessa atitude é encontrada em “Uma Modesta Proposta”, de Jonathan Swift. Nela, ele apresenta um horizonte de reformas virtuosas destinadas a evitar que os filhos de pobres irlandeses sejam um fardo para seus pais ou para o país. Sua solução proposta é apresentada como “um método justo, barato e fácil de tornar essas crianças membros sadios e úteis da comunidade”; ela tem a grande vantagem de “impedir os abortos voluntários e a prática horrenda de mulheres que assassinam seus filhos bastardos, infelizmente muito frequente entre nós, sacrificando os pobres bebês inocentes”. Swift prossegue listando suas outras vantagens: daria “um grande incentivo ao casamento, que todas as nações sábias têm incentivado por meio de recompensas ou imposto por meio de leis e penalidades”; aumentaria o cuidado e a ternura das mães para com seus filhos, além de restaurar as contas nacionais e a balança comercial. O fato de o plano ser vender crianças de um ano como leitões ou cordeiros para serem cozidos (em várias receitas) torna-se apenas um detalhe técnico.

O humor ácido de Swift não é um fim em si mesmo. Ele nos diz que o que chamamos de hipocrisia não deve ser julgado por critérios morais, que é como a hipocrisia exige ser entendida e julgada. A proposta modesta implica, em vez disso, que a hipocrisia deve ser julgada por seu sucesso ou fracasso. Estudos recentes dedicados ao assunto – por exemplo, Political Hypocrisy (2008), de David Runciman, e The Virtues of Mendacity (2010), de Martin Jay – adotaram uma visão semelhante. Em que consiste o sucesso do comportamento hipócrita? No fato de não ser revelado como tal. Uma mentira é eficaz se for tomada como verdade. A hipocrisia é útil enquanto e somente se não parecer hipócrita. Estamos familiarizados com a utilidade da “boa hipocrisia” na vida cotidiana, como no relacionamento entre duas pessoas que se detestam, mas que em público se comportam civilizadamente. Essa ficção torna a atmosfera mais leve e facilita a interação social: melhor do que um mundo em que as pessoas começam a se agredir assim que discordam de algo. Quando uma tirania é ferozmente despótica, ela não engana ninguém se simplesmente se declarar humana: a pretensão de humanidade deve ser acompanhada de pelo menos uma pitada dela.

Para Jay, a hipocrisia é essencial para a vida política. Vemos sua aplicação em todos os lugares. A alegação de que um regime precisa apenas realizar eleições para ser democrático, por exemplo, é claramente falsa. Como pode ser visto no relato de James Madison sobre a elaboração da Constituição, os pais fundadores dos Estados Unidos queriam, de fato, estabelecer uma república, mas não uma democracia (lembre-se de que, durante grande parte do século XIX, a palavra “democracia” tinha as mesmas conotações subversivas e criminosas que o termo “terrorismo” tem hoje). Essa hipocrisia está à vista de todos: basta considerar o caso dos bancos centrais, aos quais são garantidas a mais estrita autonomia e “independência” do poder político, ou seja, do voto popular. Nessas repúblicas parlamentares (ou presidenciais), as pessoas teoricamente têm poder sobre tudo, exceto sobre as decisões econômicas mais importantes.

Na realidade, a alternância em um regime eleitoral liberal constitui simplesmente um limite à violência política. Ela garante que quem perder a disputa não acabe sendo jogado no oceano a partir de um avião (como fizeram os militares sul-americanos na década de 1970), que o oponente não seja trancafiado na prisão, sua propriedade confiscada, sua família vendida como escrava, como aconteceu durante milênios em inúmeras sociedades. Daí o mérito das repúblicas representativas: elas nos tiram do estado hobbesiano. O problema é que a limitação da força só se mantém enquanto a luta política se restringe a um confronto entre diferentes facções do bloco social dominante. Em vez de estabelecer a decisão da maioria, ela garante a proteção da minoria dominante. Assim que seu poder é desafiado, isso não se aplica mais. É por isso que os oponentes foram trancados em estádios no Chile ou desapareceram na Argentina, no Uruguai e no Brasil. A hipocrisia da estrutura “democrática” fica clara quando o mito do “povo soberano” é exposto. De fato, aqueles que não assinam o tratado que limita a violência política e garante que o mesmo bloco governante permaneça no poder são acusados de “minar a democracia”.

Raciocínio semelhante aplica-se ao imperialismo humanitário de hoje. Ele deve proporcionar pelo menos alguma aparência de benefício para as nações subalternas, assim como a república eletiva deve conceder ao “povo” uma esfera, por mais estreita, secundária e irrelevante que seja, na qual ele seja livre para decidir. Mas aqui há uma complicação adicional. Nas palavras de Erwin Goffmann, essa peça precisa persuadir dois públicos diferentes; um é o dos imperialistas (convencendo-os de que vale a pena investir recursos nessa missão “imperial-humanitária”); o outro é o dos súditos, para convencê-los de que esse é o melhor de todos os impérios possíveis, o mais humano, o que mais alivia a pobreza e o sofrimento. Às vezes, eles são simplesmente incompatíveis. Quando Gladstone falou de “imperialismo liberal” no final do século XIX, isso soou convincente para os ouvidos britânicos, deixando-os orgulhosos de arcar com o ônus de civilizar seus súditos ingratos. Mas certamente não convenceu os índios e outros povos colonizados, exterminados pelos períodos de famosas fomes coloniais contadas por Mike Davis.

A ficção de que o império governa para o benefício de suas nações subalternas se mostrou mais convincente em determinados momentos. Após a Segunda Guerra Mundial e durante a Guerra Fria, para garantir sua lealdade e evitar deserções, os EUA garantiram uma prosperidade sem precedentes para seus vassalos. Desenvolveram a estratégia de “histórias de sucesso nas fronteiras”: as fronteiras do império (Coreia do Sul, Alemanha, Japão, Itália) apresentavam-se como áreas de verdadeiros milagres econômicos. Mas, com o fim da Guerra Fria, essa narrativa começou a se deteriorar. Faz mais de 30 anos que os PIBs do Japão e da Itália não crescem um décimo de ponto em termos reais. A face sombria do império começou a se manifestar, por meio da chantagem da dívida, do uso de sanções e do recurso cada vez mais frequente às armas.

A narrativa do Estado de Israel também é dirigida a públicos distintos (embora nunca aos palestinos que, et pour cause (não sem motivo), sempre o rejeitaram, da Nakba de 1948 às guerras de 1967 e 1973, a Sabra e Shatila em 1982, chegando à Intifada e até hoje). Um desses públicos é o G7, que inclui os países envolvidos, de uma forma ou de outra, na Shoah, o Holocausto. O caso exemplar é a Alemanha, onde, como escreve Moshe Zimmermann, o Holocausto se tornou, paradoxalmente, uma ferramenta eficaz de relações públicas:

“Os alemães descobriram ainda outra vantagem surpreendente de se relacionar com o Holocausto como parte de seu presente em evolução: o trabalho intensivo de memória e arrependimento, a presença onipresente da memória do Holocausto (por exemplo, o Stolpersteine ou a comemoração da Kristallnacht em 9 de novembro de cada ano) são interpretados pelos observadores dessa sociedade como sinais claros de força, respeitabilidade e honestidade. Mesmo na China, há uma admiração generalizada pela Alemanha graças à sua política de ‘lidar com o passado’ e de reconciliação com as vítimas históricas dos alemães, os judeus. Assim, os chineses desejam que o Japão se comporte da mesma forma em relação à China, à Coreia ou a qualquer outra vítima da beligerância japonesa na primeira metade do século XX. Em outras palavras, por mais paradoxal que possa parecer, o Holocausto é, no momento, um bom instrumento de relações públicas para os alemães.”

O outro público são os próprios israelenses e a diáspora judaica, especialmente nos EUA. Aqui o objetivo é outro. Como escreve Zimmermann: “Aceitar a conexão monocausal entre o antissemitismo e o Holocausto não apenas apoia o argumento de que a crítica às políticas israelenses deve ser automaticamente categorizada como antissemitismo, mas que seu resultado predestinado será mais um Holocausto”. A crise atual está expondo a hipocrisia subjacente a essas narrativas. De certa forma, essa hipocrisia está se revelando porque deixou de ser suficientemente hipócrita, pois, por trás do direito de defesa, está o direito implacável à vingança sem fim. Os palestinos jamais esquecerão essa tentativa contínua de varrer um povo inteiro da face da Terra. Tanto para os judeus da diáspora quanto para os israelenses, agora será difícil se verem como descendentes dos “justos”. Lembro-me de como fiquei emocionado com o romance The Last of the Righteous (1959), de André Schwarz-Bart, ainda mais porque minha mãe esteve presa em Dachau. Mas hoje, a reação israelense desafiou a legitimidade desse tipo de defesa de Israel. Os alemães são forçados a questionar se a tese, enunciada por Angela Merkel, de que a existência de Israel constitui a base do Estado federal alemão ainda se sustenta sob os bombardeios de Gaza. E talvez hoje os ocidentais, e não apenas os alemães, devam começar a se perguntar por que, quase 80 anos depois, sejam os palestinos os que têm de pagar pelos crimes de Hitler.

(*) Tradução de Raul Chiliani.

Sidecar O Sidecar é o blog da revista New Left Review, fundado em 2020.

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