Essa história não deveria ser real. Era manhã do dia 29 de janeiro de 2004. Os militares israelenses já haviam bombardeado grande parte do próspero bairro de Tel al-Hawa, na Cidade de Gaza, incluindo, em outubro de 2023, a totalidade do campus da Universidade Islâmica de Gaza. Após um aviso dos militares israelenses, sete membros de uma família entraram em um carro Kia Picanto para fugir em direção ao sul. Mas o bombardeio israelense havia derrubado um prédio alto nas proximidades, de modo que o carro teve de ir para o norte antes de se dirigir para o sul.
Não muito longe da estrada, o carro foi atacado por veículos militares israelenses, inclusive por tanques Merkava. De acordo com uma investigação excepcional da agência de pesquisa Forensic Architecture, sediada no Reino Unido, 355 projéteis foram disparados contra o carro.
Uma das pessoas que estavam no carro, uma criança de seis anos chamada Hind Rajab, ligou para a equipe de emergência. “Eles estão mortos”, disse ela sobre seus familiares. “O tanque está ao meu lado. Já é quase noite. Estou com medo. Venham me buscar, por favor.” A Sociedade do Crescente Vermelho Palestino (PRCS) enviou uma ambulância para resgatá-la.
Duas semanas depois, em 10 de fevereiro, o cadáver de Hind Rajab foi encontrado perto dos corpos de seus familiares, junto com os dos paramédicos (Ahmed al-Madhoun e Yusuf al-Zeino) enviados para salvá-la. “O tanque está ao meu lado”, diz a menina em uma fita gravada pelo PRCS, mas tanto o Departamento de Estado dos EUA quanto os militares israelenses dizem que nenhum tanque operava na área naquele momento. É a palavra de uma criança assassinada contra os governos mais perigosos e dissimulados do mundo.
O assassinato de Hind Rajab e de sua família chocou o mundo (o pai de Hind Rajab foi morto em outro ataque no final de junho). Quando os estudantes da Universidade de Columbia, nos EUA, ocuparam o prédio da administração da faculdade, eles o batizaram de Hind Rajab Hall (Sação Hind Rajab); o cantor Macklemore lançou uma música em maio chamada “Hind’s Hall”.
Violência cotidiana
14 de junho: Uma criança foi morta por ataques aéreos israelenses em Zeitoun (Cidade de Gaza).
22 de junho: Duas crianças foram mortas por ataques aéreos israelenses em Shujaiya (Cidade de Gaza).
25 de junho: Duas crianças foram mortas por disparos israelenses na rua al-Wahda, perto do Hospital Al-Shifa (Cidade de Gaza).
25 de junho: Três crianças foram mortas por ataques aéreos israelenses no campo de refugiados de Maghazi.
Cada uma destas histórias trata de crianças preciosas, a maioria das quais não chegaram nem aos 10 anos de idade. Algumas dessas crianças viveram a cruel campanha de bombardeio israelense de 2014, quando mais de 3 mil crianças foram mortas. Nas casas de famílias na Cidade de Gaza e em Khan Younis após aquela guerra, ouvi histórias e mais histórias de crianças mortas e mutiladas (Maha, paralisada; Ahmed, cego – meu caderno de anotações, uma bagunça de perdas e tristeza). Enquanto as bombas continuavam caindo em 2014, Pernille Ironside, então chefe do escritório do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) em Gaza, disse que 373 mil crianças precisavam de “primeiros socorros psicossociais imediatos”. Simplesmente não havia conselheiros suficientes para ajudar as crianças, a maioria das quais agora está endurecida pela crueldade da ocupação e da guerra.
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A violência que elas sofrem se tornou rotina. Mas esse tipo de violência nunca pode ser banal. “Estou com medo”, disse Hind Rajab. Lembro-me de conhecer um garotinho que estava jogando futebol nas ruas de al-Mughraqa. Seu pai, que estava me mostrando o local, me disse que o menino não conseguia dormir e ficava acordado à noite, chorando. Isso foi em 2014. Esse menino agora deve ter vinte e poucos anos. Talvez ele sequer esteja vivo.
Uma ou duas pernas
Um site interativo da Al Jazeera tem os nomes das crianças mortas desde outubro de 2023, uma morta a cada quinze minutos; à medida que descia a página lendo os nomes, me senti indisposto, e então encontrei isso bem no final: “Estes são os nomes de apenas metade das crianças mortas”. No início de maio, a diretora da UNICEF, Catherine Russell, disse: “Quase todas as crianças de Gaza foram expostas a experiências traumáticas de guerra, cujas consequências durarão a vida inteira”. Em sua declaração, onde relatou que 14 mil crianças foram mortas, ela disse que “estima-se que 17 mil crianças estejam desacompanhadas ou separadas [da família]”. Esses números são estimativas e provavelmente são subnotificados.
Um novo relatório da Save the Children sugere que mais de 20 mil crianças estão desaparecidas em Gaza. Elas estão sob os escombros, detidas pelos militares israelenses ou enterradas em valas comuns. Durante uma apresentação detalhada em 25 de junho, o Comissário Geral da Agência Palestina da ONU (UNRWA), Philippe Lazzarini, disse algo surpreendente: “E você leve em consideração que, basicamente, a cada dez dias, temos crianças perdendo uma perna ou duas pernas, em média. Isso lhe dá uma ideia do escopo do tipo de infância que uma criança pode ter em Gaza”.
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Essa história não deveria ser real. Era a manhã de 19 de dezembro de 2023. Tanques israelenses passavam pelo bairro de Rimal, na Cidade de Gaza. Ahed Bseiso, de 17 anos, estava no último andar de um prédio de seis andares tentando ligar para seu pai na Bélgica para dizer que ainda estava viva. Ela ouviu um estrondo, caiu e chamou por sua irmã Mona e sua mãe. Sua família correu, carregou-a para baixo e a colocou sobre a mesa da cozinha, onde sua mãe estava fazendo pão. O tio de Ahed, Hani Bseiso, um médico ortopedista, olhou para a perna dela e percebeu que teria que amputá-la ou ela morreria. Ele pegou todos os suprimentos que conseguiu encontrar e realizou a amputação sem anestesia. Ahed recitou versículos do Alcorão para se acalmar. Hani chorou enquanto fazia a operação, que a família filmou e depois postou no YouTube, que foi republicado em muitos lugares.
Essas são as histórias de Gaza.