Lá se vão sete anos desde a passagem de Almir Guineto do Àiyé ao Òrun, e sua obra continua tão relevante quanto obscura – ao menos nos meios menos populares do samba. Figura carismática, por vezes sofreu por conta disso. Muitas vezes, aos olhos da mídia, era alguém quase caricato, tanto pelo modo de cantar – a voz rouca, embolada, que afetava sua dicção –, como pelo gosto pela cerveja; Almir muitas vezes foi colocado num lugar em que, como captado pelo historiador José Ramos Tinhorão em seu artigo Porque artista crioulo tem sempre que ser engraçado?, o negro era tratado como um menestrel, um palhaço, à serviço de uma plateia pronta pra rir e se divertir, não com a arte, mas com a “inerente” malandragem do negro. Esse fenômeno, já tratado por mim quando falei de Zeca Pagodinho, percorre o imaginário sobre o samba e como se comporta um sambista. Não apenas Zeca e Almir, mas também Mussum e tantos outros sambistas se viram diante da encruzilhada entre a simpatia e o jeito de ser, e o que era afirmado e desejado: o exótico.
A realidade é bem distinta da aparência: poucas figuras da Música Popular Brasileira – ou, como sugere o grande Guilherme Botelho, a Música Preta Brasileira[1] –, foram tão completas quanto Almir. Seja como mestre de bateria, precursor do banjo no samba, autêntico e inigualável compositor, exímio pagodeiro, o Magnata[2] deixou uma marca incontestável na história do samba, que se propaga há décadas, no qual nem sua morte, em 2017, foi capaz de intervir. Almir foi o herói da cultura afro-brasileira e do samba, e isso não se trata de uma positivação da questão negra como ela é em seu polo negativo. Almir é o símbolo de uma raça subjugada, mas que, com seus costumes e formas de ser, resisitiram e sobreviveram ao genocídio em curso há séculos nessa terra apelidada de Brasil. O vocabulário de suas lindas faixas, que, em geral, abordam o amor, é de uma riqueza que faria os grandes eugenistas dessa nação se curvar aos Ọfọ̀[3] proferidos por Almir, e o fariam se questionar se, realmente, a falta de estudos ao estilo burguês e europeu eram um empecilho para que os sambistas se expressassem de maneira poética.
Almir é produto-antítese de um Brasil que deu certo: afinal, como dizer que essa nação não deu certo, se seu projeto foi escrito e executado por traficantes de escravos, latifundiários e os donos das máquinas e da mais-valia? Foi herói porque não apenas sobreviveu ao projeto de limpeza executado pelo estado carioca, que excluiu tanta gente do centro da cidade, as enviando para um novo campo de trabalho forçado: as favelas. Mas Almir, subvertendo a lógica, fez o que Z’África Brasil enunciou em seu disco de 2002: “Antigamente Quilombos, Hoje Periferia”. Cria do Morro do Salgueiro e filho de Seu Ioiô – um dos fundadores da Academia do Samba[4] –, Almir de Souza Serra transformou a realidade do seu morro, da sua raça e do seu partido: o samba. No partido, aliás, dizem que não havia melhor versador. Mas foi além disso: introduziu o banjo no samba, compôs centenas de obras-primas, gravou outras várias, foi mestre de bateria. Almir foi o samba em carne e osso. Seriam necessários alguns livros para contar a grandeza de Almir, mas esse texto, longe de encerrar o tema, é uma homenagem e uma pequena biografia do homem que, segundo Sombrinha, “virará um Orixá”[5].
Localizado no bairro da Tijuca, zona norte da cidade do Rio de Janeiro, o Morro do Salgueiro data do século 19. Dois são os traços coloniais que marcam o nascimento do morro: sua origem física, a partir de uma plantação de café, local de alta concentração de trabalho escravo, e o seu nome – até os anos 1920, o morro não tinha nomenclatura alguma –, em homenagem ao português Domingos Alves Salgueiro.[6]. Durante o século 20, o morro foi sendo povoado por imigrantes pobres e descendentes de escravos, dando um rosto negro e pobre para a região. A imigração de populações de Minas Gerais, do interior do Rio de Janeiro e de algumas cidades do nordeste ajudaram a construir uma grande pluralidade cultural no morro. Prova disso é o Caxambu, dança que chegou ao Rio de Janeiro por meio de imigrantes mineiros, cantado em verso e prosa por Almir Guineto em 1986, e, provavelmente, um dos seus maiores sucessos. Para além dessa pluralidade, o samba se fazia soberano no morro, representado em diversos blocos carnavalescos que, em 1953, se juntariam e dariam origem ao Acadêmicos do Salgueiro.[7]
A cultura sempre desempenhou importante papel no Morro do Salgueiro, como arte e estratégia política. Em 1934, por exemplo, uma ordem de despejo foi emitida por Emílio Turano, italiano e dono de uma série de morros no Rio de Janeiro, que afirmava ter comprado, também, o morro do Salgueiro. O então líder comunitário e sambista Antenor Gargalhada – componente da escola Azul e Branco, e que, em 1938, ganhou o título de Cidadão do Samba –, assumiu a tarefa de vencer a batalha contra a tirania de Turano. Por meio da Azul e Branco, e liderados por Antenor, o povo do morro lutou, e conseguiu evitar a tragédia que seria o despejo de todas aquelas famílias.
Esse foi o berço em que, no dia 12 de julho de 1946, nasceu Almir de Souza Serra. Seu pai, Iraci de Souza Serra, o já citado Seu Ioiô, foi respeitado violinista e integrante do grupo Fina Flor do Samba. Sua mãe, Nair de Souza Serra, a Dona Fia – lembram de “Dona Fia, cadê Ioiô”, famoso samba do Fundo de Quintal? – foi saudosa costureira do Acadêmicos do Salgueiro, e uma das maiores Tias do samba de todos os tempos. Seu irmão, Lourival de Souza Serra, o famoso Mestre Louro, é considerado um dos maiores diretores de bateria da história do carnaval carioca, ganhando cinco estandartes de ouro apenas na Academia do Samba. Com esse currículo familiar, se tornam mais claros os caminhos pelos quais Almir percorreu, desde o seu nascimento, até chegar ao patamar que alcançou, ainda em vida, dentro do samba. Nos anos 1970, então com seus vinte e tantos anos, Almir chegou ao posto de mestre da bateria Furiosa, que comandou por quase uma década junto de seu irmão. Em paralelo, um novo movimento surgia em Ramos, também na zona norte do Rio de Janeiro, que mudaria o samba para sempre, e teria Almir como um de seus vanguardistas: o Cacique de Ramos.
O Michelangelo negro – forma com que Mano Brown se refeiu ao Magnata em Mãos, gravada em 2001 – iniciava assim sua jornada no samba, que traria frutos tão importantes e belos para a cultura popular e negra quanto A Criação de Adão levou para o mundo ocidental.
Do Originais do Samba ao samba original do Cacique de Ramos
Em 1979, Almir decidiu se mudar para a cidade de São Paulo, para se juntar ao grupo Originais do Samba, a convite de seu irmão Chiquinho e do amigo Mussum. Apesar da rápida passagem, Almir deixou sua marca no grupo. Como ritmista de primeira qualidade, tocou cavaquinho para o saudoso grupo de Mussum, Coimbra, Zinho e Cláudio, além de outros grandes nomes que formaram os grupos posteriores. Os Originais foram um importante grupo, vivenciando a transição do samba originado nos anos 1920-1930, no bairro do Estácio, e a influência do samba-rock, ou sambalanço, música que integrou ao samba referências do rock, soul e jazz, e que teve em Jorge Ben e Trio Mocotó seus grandes expoentes. Foi Jorge Ben, aliás, um dos grandes colaboradores do Originais. Dizia Mussum que, uma vez ao ano, Jorge dava uma música ao grupo, que a regravava, e que sempre se tornavam grandes sucessos, como Tenha Fé, Pois Amanhã um Lindo Dia Vai Nascer. O grupo deixou uma série de clássicos, como o disco O Samba É a Corda… Os Originais a Caçamba, e marcou essa geração anterior ao surgimento do Fundo de Quintal, que, anos depois, ditaria o novo ritmo predominante do samba.
Mas, no Rio de Janeiro, Almir já se movimentava em Ramos, nas famosas rodas de samba no Cacique de Ramos, popular bloco carnavalesco da cidade. Quando voltou ao Rio, logo se juntou a Bira Presidente, Ubirany, Beth Carvalho, Jorge Aragão, Sereno, Neoci, e tantos outros nomes. As rodas foram ganhando corpo à medida que a novidade se espalhava pelas favelas e subúrbios da cidade. Não era apenas uma nova roda de samba; era a revolução do samba, a sua terceira etapa. Em plena ditadura militar, uma comunidade de pessoas negras, faveladas, despossuídas, conseguiram criar um dos maiores movimentos da música popular brasileira, que logo se espalharia pelo Brasil, ecoando nas rádios AM e FM de São Paulo – principalmente no programa O samba pede passagem, do grande Moisés da Rocha, um dos mais importantes militantes do samba e grande responsável pela explosão do Fundo de Quintal.
Já em 1980, após o lançamento dos discos De Pé no Chão e Beth Carvalho no Pagode, clássicos da Madrinha Beth que apresentaram ao mundo a percussão inventada no Cacique de Ramos, Bira Presidente, Ubirany, Sereno, Sombrinha, Almir Guineto, Jorge Aragão e Neoci, pelo olhar aguçado de Beth Carvalho e Neoci, lançariam o primeiro disco sob a alcunha Fundo de Quintal, chamado Samba é No Fundo de Quintal Vol. 1. O nome do grupo, surgiu em 1973, numa festa de aniversário na casa de Elza Soares, foi sugestão de Waldomiro João de Oliveira[8], pelo fato do grupo estar sempre tocando nas festas, nos quintais, nos fundos das casas. Almir foi o último a integrar o grupo, mas, provavelmente, foi o membro mais icônico de uma das melhores formações do grupo.
Almir trazia consigo duas fortes e importantes contribuições. A primeira delas, sua voz de trovão, que ressoava nas rodas de samba como o raio de Xangô. A potência do seu cantar chamava a atenção de todos, como fica nítido em uma entrevista do Magnata para o biógrafo Marcos Salles[9]:
“O Bira me viu em São Paulo e me chamou. Mas pra cantar ali no Cacique tinha que ter voz de crioulo, voz valente, desse meu jeito. Sei que minha dicção não era muito boa, fui muito criticado depois, mas ali tinha que ser assim e deu certo, né, Major?”.
A segunda grande contribuição seria o banjo, tema amplamente discutido, até mesmo difundido por meias-verdades na história oral do samba.
O banjo é um instrumento de origem africana, e se disseminou pelos Estados Unidos, México e algumas Ilhas Caribenhas. Desempenhou grande papel na música folk norte-americana, e, em menor escala, no próprio jazz. Mas foi na música country – originada no sul dos Estados Unidos, numa fusão entre a música tradicional e o blues – que se tornou realmente conhecido.
Ao contrário do que se difunde, não foi Almir quem construiu o instrumento, mas quem o adaptou para a realidade das rodas de rua e do Cacique. Havia relatos do uso do banjo já nos sambas do começo do século 20, e o próprio pai de Almir, Seu Ioiô, era um exímio tocador de banjo. A mágica de Almir e Mussum se dá na encruzilhada de misturas que o Atlântico Negro foi capaz de produzir, ou seja, na diáspora negra pelo mundo. A verdadeira história da popularização do banjo no samba é contada tanto no livro sobre o Grupo Fundo de Quintal, como na biografia do próprio Mussum. Segundo o autor Juliano Barreto, foi durante uma turnê do Originais do Samba pela Europa que Mussum, pela primeira vez, ouviu o som de um banjo,
“Assistindo ao show da banda Mungo Jerry, no Midem, notou a semelhança entre o banjo usado pela banda inglesa e uma afinação com som bastante familiar. Na volta a São Paulo, sem explicar muita coisa, Mussum pegou Almir Guineto pelo braço e foi até a Casa Del Vecchio, na Rua Aurora, comprar um banjo. Junto do exímio tocador de cavaquinho, Mussum desmontou o instrumento recém-comprado e fez um Frankenstein, acoplando o braço e as cordas do cavaquinho no banjo. Nascia então uma técnica inédita que seria mais tarde muito usada por todos os conjuntos de samba e pagode: adaptar o cavaquinho para aumentar o volume do instrumento, facilmente superado pela percussão de surdos e pandeiros.“[10].
A turnê, ocorrida em janeiro de 1971, e o descobrimento do banjo, já trariam frutos para o samba no mesmo ano, quando o disco Samba Exportação foi lançado, no mês de julho, onde o novo instrumento seria incorporado à musicalidade do Originais do Samba, e se tornaria a principal ferramenta de Almir, muito antes da fundação do Grupo Fundo de Quintal e das rodas no Cacique.
Sobre o Cacique, vale lembrar que o movimento surge na era da chamada discoteca, durante a ressaca do auge da Bossa Nova, e sem grandes pretensões. A quadra de futebol localizada na sede do Cacique foi o polo aglutinador daquela gente, que, às quartas-feiras, se reuniam pra bater uma bola e comer o famoso macarrão com salsicha feito por Neoci, o grande comandante daquele ainda modesto grupo, que viria a se tornar a maior escola do samba desde os anos 1970. Futebol e samba sempre formaram um bom casal, e foi de forma quase automática que, após as partidas, começaram a aparecer violões, cavacos e tamborins. Foi durante esses encontros que o tantã e o repique de mão – hoje instrumentos básicos do samba – , foram criados por Neoci e Ubirany, respectivamente. Inicialmente feito com uma lata de manteiga de 20kg e um pacote de cimento – que, após molhado, secava ao sol e ganhava um aspecto de couro –, logo o tantã ganharia sua forma atual, com a base feita de madeira e couro. Já o repique de mão, criado logo após o tantã, foi uma adaptação do repinique e da ripa[11] ,instrumento já muito utilizado pelas escolas de samba. Por meio de diversos testes, Ubirany retirou a pele do lado inferior do instrumento e colocou algumas hastes de madeira, para que o som se tornasse mais abafado e seco. Nasciam assim, junto do banjo, da caixinha de fósforo e do pandeiro de Bira, o som que mudaria o samba para sempre. A orquestra estava pronta, o nome definido, o local das apresentações escolhido – a famosa Tamarineira, que carrega debaixo de si o axé dos orixás, plantada pelo lendário Terreiro do Gantois –; era hora do Fundo de Quintal, que já reinava em Ramos, ganhar o Brasil, em forma de LP.
Foi em 1980, pela gravadora RGE, que o grupo finalmente gravou seu primeiro disco. Samba é no Fundo do Quintal Vol.1 se tornou um clássico instantâneo do samba e da música popular brasileira e, provavelmente, trouxe a melhor formação da história do grupo. Das 12 faixas, quatro contaram com a composição de Almir Guineto. Já nesse disco é possível observar o estilo de escrita do Magnata Suburbano, que daria o tom à sua obra solo. Todas elas são grandes clássicos, cantadas obrigatoriamente em qualquer roda de samba. Olha a intimidade é um aviso ao penetra, aquele sujeito que consome a cerveja do bar e sai sem pagar, que finge amizade para se aproveitar. Lá no morro, com participação de sua mãe, Dona Fia, é um breve retrato da relação entre morro e asfalto, da cidade compartimentada[12], das mazelas que a vida precária nos barracos impõe a quem neles moram, e, acima de tudo, como o olhar sobre asfalto e morro pode mudar a depender de onde o espectador se encontra. Zé da ralé se parece com uma novela do Manoel Carlos, daquelas que retrata o amor de uma jovem moradora do Leblon com um jovem do subúrbio, mas com a pitada satírica de Almir.
Mas uma delas é especial, pois carrega em sua poesia uma realidade muito presente nas comunidades brasileiras, de maioria negra. A volta da sorte é um samba que retrata o dia de um trabalhador do morro. Com suas preocupações diárias, e a implícita sensação de, como homem, ser o arrimo do lar, esse trabalhador se volta ao jogo para resolver seus problemas. Ao perder o salário no jogo, o “remorso lhe devora”, ao pensar na escolha da filha, no aluguel atrasado, e em como esse processo se tornou um ciclo vicioso.Com maestria, Almir descreve essa história – que, do particular ao universal, retrata uma realidade latente do povo brasieiro – em um dos mais belos sambas do disco, cantado em coro por todo o grupo:
“Jurou pra si mesmo, nunca mais hei de jogar
No bar não vou passar
Vou viver, sem beber, sem jogar
Mentiu, da mentira é um velho e bom freguês
Pois sabe que amanhã
Vai beber, vai jogar, vai perder outra vez”
Além das faixas citadas, Almir deixa dois ótimos versos de improviso em Prazer da Serrinha (“Lá no morro da serrinha, cumpadi, colocaram uma estátua de bronze. Porque já faz quinze dias que eu dei no valente lá da Praça Onze”), samba em homenagem ao morro onde nasceu a escola homônima, e que, anos depois, daria origem ao Império Serrano. Seu verso carrega uma abordagem histórica, dos tempos em que o samba ainda era uma música enclausurada em sua própria negrura[13], em sua própria condição de não-pertencimento.
O primeiro disco do Fundo de Quintal foi um sucesso absoluto. Praticamente todas as músicas, todas compostas pelo time do Cacique, se tornaram sucessos, algo raro nos dias atuais, mas que também demonstra a genialidade daquele povo que cantava e tocava embaixo da Tamarineira. Infelizmente, foi o único disco do grupo em que Almir Guineto atuou como intérprete, pois, logo na sequência, o Magnata resolveu sair no grupo. Não foi uma decisão motivada por discórdia ou infelicidade. Pelo contrário, Almir saiu do Fundo de Quintal como um Rei.
Uma oportunidade surgiu para que Almir gravasse seu primeiro disco solo, no mesmo ano de 1980. Impressionado com a “voz de crioulo” e os versos de Almir, Gabriel O’Mehara, da gravadora K-Tel/Copacabana – que, apesar de ter nascido no Rio de Janeiro, se transferiu para São Bernardo do Campo nos anos 1950 –, levou o Magnata para a terra que, segundo o poeta, era o Túmulo do samba[14]. Foi nesse túmulo que Almir fez nascer uma das maiores discografias da história do samba, e o suburbano do Salgueiro se tornaria o Suburbano do Taboão, da Bela Vista, e de todo o Brasil, esse grande subúrbio.
O suburbano Almir no grande subúrbio Brasil
“O suburbano que já nasce pobretão
Que se guia com as promessas do partido da ilusão.”
É com esse verso que Almir Guineto abre a primeira faixa do seu primeiro disco solo. O Suburbano, lançado em 1981, contou com a participação de um time de peso, incluindo Beto sem Braço, Martinho da Vila, Geraldo Babão, e o que ele chama de “Rapaziada do Cacique”.
O termo suburbano é muito utilizado no Rio de Janeiro, usado para designar os bairros que se localizam na zona norte e oeste da cidade, mais distantes do centro. Segundo o dicionário Infopédia, a palavra também designa o “que fica nos arredores da cidade”, “que ou pessoa que vive no subúrbio”. Em termos gerais, o suburbano pode ser relacionado ao periférico, muito usado em São Paulo.
Almir, como autêntico suburbano, inicia assim sua jornada em carreira solo. A faixa de abertura, apesar de composta por Beto sem Braço e Aluísio Machado – dois ilustres Imperianos –, tem a cara e o ritmo de Almir Guineto. O Suburbano é a história do político marqueteiro, daqueles que aparecem nas comunidades a cada dois ou quatro anos, angariando votos, em troca de promessas vazias, shows gratuitos e outras migalhas. É uma faixa que muito se assemelha a Comunidade Carente, de Zeca Pagodinho, e Candidato Caô Caô, de Bezerra da Silva.
O interessante nessa faixa, além do fato dela ser a música principal do disco, é que, entre o nascimento de Almir Guineto e o lançamento desse disco, o Brasil teve poucos momentos de vida democrática. Durante a ditadura de 1964, por exemplo, houve eleições onde apenas duas chapas concorriam: a da situação e oposição, representada pelo Movimento Democrático Brasileiro (MDB). A rejeição à figura política se dá nesse contexto, onde o Brasil estava em transição para a democracia, mas com a velha política reinando na maioria dos partidos e candidatos. É a denúncia a principal ferramenta do poeta e sambista Almir, como de outros que retratam a vida suburbana:
“Vamos ao que interessa
Nesse papo informal
Ninguém melhor que você por favor não leve a mal
Para trabalhar comigo ser meu cabo eleitoral
É que este seu amigo vai ser deputado estadual
E quando eleito eu for vais passar a filé mignon
Os buracos dessa rua com asfalto vou tapar
Luz de gás néon na praça vou mandar botar
O morgado foi eleito e agora é excelência
Não se encontra o danado nem marcando audiência”.
Essa denúncia é precedida pelo esclarecimento de que a política eleitoral posta era uma farsa, uma troca de assentos entre representantes diversos da burguesia. E fica um alerta: “Meu irmão, se liga no que eu vou lhe dizer. Hoje ele pede seu voto, amanhã manda a polícia lhe prender”.
Além da já citada Saco Cheio, outra lendária faixa do disco é Gari Padrão. Profissão majoritariamente negra, de pouco prestígio social, e muito desvalorizada (como um representante do ofício declarou após ser demitido), são eles também os que alegram a Marquês de Sapucaí, entre um desfile e outro, limpando a avenida para que a próxima escola possa desfilar.
Além de situar sua condição perante a sociedade, os garis cantados por Almir Guineto tinham algo além de especial: seu irmão, o saudoso Mestre Louro, foi fiscal da Companhia Municipal de Limpeza Urbana do Rio de Janeiro, a Cumlurb. Dono de mais de 200 prêmios no mundo do samba, dez Estandartes de Ouro e status de personalidade, Louro não conseguiu escapar do destino que era imposto à esmagadora dos sambistas de sua época, que era a dos empregos mal remunerados, ofícios tratados como sentenças de vida. O samba e o trabalho assalariado sempre foram grandes companheiros.
“Enquanto a cidade dorme, eles dão um duro danado,
sem elogios ou reconhecimento.
Alô pessoal da limpeza urbana,
esse samba é pra vocês!
Mano louro, nego cheio de vaidade
Sempre com sua vassoura
Limpando a nossa cidade
Cantarolando, todo dia vai à luta
Trabalha na praça mauá
Varre até a tijuca
Ô louro!”
Foi assim que Almir homenageou seu irmão, que faleceu em 2008, nove anos antes do Magnata. Em um comunicado sobre a morte do irmão, Almir fez novamente da sua arte uma denúncia e um registro histórico, dedicando a Louro um de seus mais lindos sambas: “Mãe natureza, estou de mal”.
Foi nesse mesmo ano de 1981 que Almir venceu o Prêmio MPB-Shell em 1981, com a música Mordomia, parte do seu disco de estreia.
Após o lançamento de O Suburbano, outros dois bons discos de Almir chegaram ao público: A Chave do Perdão e Sorriso Novo – que traria o clássico Insensato Destino. A grande estrela de A Chave do Perdão é a música À Luta Vai Vai, homenagem à escola que adotou e por que foi adotado em São Paulo. Posteriormente gravada por Beth Carvalho, outra grande sambista que respeitava o legado paulista do gênero, o samba é um poema de amor às cores preta e branca da Saracura, antigo quilombo que hoje conhecemos como Bela Vista e Bexiga:
“É Bixiga, o senhor do samba
O Vai- Vai, meu amor, comanda
Alvinegro, eu sou, de fato
Ponho alma e calor no asfalto
Vem novamente à disputa
Meu povo à luta
Vai-Vai”
Almir, desde 1980, já frequentava a escola, na qual chegou a fazer parte da ala de compositores. Em 1979 e 1980, Almir ganhou o samba enredo que guiaria a maior campeã do carnaval de São Paulo pela avenida, Festa de um Povo em Sonho e Fantasia e Orgulho da Saracura, conquistando o quarto e terceiro lugar, respectivamente. Numa entrevista para o Estadão, dois meses antes de morrer, Almir declarou:
“No decorrer do tempo, as coisas foram apertando. Eram muitos shows. E o Vai-Vai é como uma religião. O pessoal pedia para eu ir à quadra. Só que não estava dando mais. Tenho dois sambas-enredos pelo Vai-Vai. Eu e o falecido Luverci, que foi um dos melhores parceiros que tive em São Paulo. E no Rio, sou Salgueiro. Amo as duas escolas com a mesma intensidade. Assisto aos desfiles pela televisão. Pareço um menino quando estou torcendo por elas. (…) Tenho saudades do Fundo de Quinta, do Vai-Vai e do tempo em que era diretor de bateria do Salgueiro. Só que não dá mais. Faço muitos shows na casa do cacete. Então, seria difícil ter outros compromissos.”
Outro preto e branco que ganhou o coração de Almir em São Paulo foi o Corinthians. Como eu não acredito em coincidências, não me traz perplexidade que o Magnata tenha escolhido o Alvinegro do Parque São Jorge e o Vai-Vai. Antes mesmo de se tornar uma escola de samba, a torcida organizada Gaviões da Fiel tinha uma ala própria no Vai-Vai, e talvez pelas cores, ou pela ligação entre as torcidas, Corinthians e Vai-Vai são sempre sinônimos quando o assunto é futebol e samba. A prova desse amor se dá nas inúmeras apresentações e shows onde Almir cantou, em forma de samba, o hino do Corinthians.
O respeito do sambista pela cidade de São Paulo e sua cultura se dão numa dimensão muito superior ao que poderia ser reduzido como a cidade onde sua música estourou, por ser a grande economia do país, ou por alguma forma de privilégio. Como bom suburbano, Almir percorreu becos e vielas da cidade, se encontrando com seu povo, se identificando, e entendendo que o túmulo existia apenas na mente de quem não teve o prazer de andar pelas ruas da Saracura, da Barra Funda, da Vila Matilde, e ouvir uma boa roda de samba. Como detalhou Almir, na mesma entrevista para o Estadão:
“Adoro São Paulo. Devo muito a essa cidade e esse estado. Quando estou no Rio, não gosto que falem mal da cidade para mim. Tem um povo maravilhoso e muitos músicos bons. Gosto do Adoniran Barbosa, Geraldo Filme e Paulo Vanzolini. E adoro o Osvaldinho da Cuíca, um dos maiores músicos do Brasil. Ele é um clínico geral porque toca qualquer instrumento.”
Mais uma vez Mano Brown pode ser evocado para demonstrar a relação do sambista com a cidade de São Paulo, mas, de forma mais universal, com o subúrbio[15]:
“Ao visitar pessoas próximas que cumpriam pena em casas de detenção em São Paulo, o rapper ouvia nos alto falantes ‘Orai por nós’ – resultado de parceria com Luverci Ernesto. Um samba, portanto, substituía os louvores ou propriamente orações no momento dedicado à reza na prisão. A memória sobre os encontros naquele período, no limite, confirma a quem se destinavam versos e acordes do compositor.”
Dessas inúmeras andanças de Almir pelos subúrbios, e com a bagagem de quem já tinha 40 anos de vida, a maior parte dedicada ao samba, o sambista lançou, em 1986, sua grande obra-prima. O disco Almir Guineto, gravado pela RGE, tem a maioria das suas músicas mais popularizadas no samba: Caxambu, Mel na Boca, Superman, Cenário, Quem Me Guia, Lama nas Ruas e Conselho são clássicos absolutos, todas elas em um único vinil. Sobre Lama nas Ruas, Zeca Pagodinho, o co-autor e eterno parceiro de Almir, declarou:
“Eu me lembro que a primeira música que nós fizemos (Lama nas Ruas), foi lá na Serra da Cantareira. Eu estava querendo conquistar uma menina, mas estava chovendo muito. Eu dizia pra ela ir lá pra fora, mas ela respondia: ‘não, tá chovendo muito’. Ai eu usei a poesia, né? À noite, ele (Almir) queria me mostrar uma melodia pra eu escrever, e passou assobiando (a melodia) com o violão em mãos ‘ee la, lalare, lalare la’, ai eu falei ‘é essa aí!’. E tudo aquilo que eu falei de manhã eu transformei em verso.”
Essa história originou a maior parceria entre a dupla:
“Deixa desaguar tempestade
Inundar a cidade, porque arde
um sol dentro de nós
Queixas, sabes bem que não temos
E seremos serenos, sentiremos prazer
no tom da nossa voz
Veja, o olhar de quem ama
Não reflete um drama, não
É a expressão mais sincera, sim”
O álbum tem um tom ainda mais romântico do que os anteriores, característica do pagode que Almir ajudou a criar, o chamado Pagode de Mesa, ou samba de roda. À época ainda não havia a separação entre o pagode e o samba, fruto da indústria musical entre os anos 1980 e 1990, e foi a partir dessa obra que Almir ganhou o status de rei do gênero. O amor cantado por Almir é um amor sofrido e apaixonado ao extremo. Não à toa, uma das músicas do disco se chama Feito aguardente, na qual, fazendo um paralelo entre o sentimento de amor e o ardor que a cachaça causa quando consumida, Almir declara: “Quando nosso sangue queimar feito uma aguardente, e a gente se amar com o coração quente.”
Tudo em Almir era extremo: sua voz, seu repique, sua fidelidade à tradição afro-brasileira, sua escrita. Extremo no sentido de ir até o limite, e às vezes ultrapassá-lo. Limite esse imposto aos meros mortais, porque Almir não se contentava em ser bom, ele era o rei, o maior de todos os sambistas de sua época, a maior inspiração para o tipo de samba que viria a agitar as favelas paulistas na década de 1990. Foi com essa postura que, após o disco de 1986, Almir ainda lançou mais 11 álbuns, todos eles de extrema qualidade. Ao longo dos anos, foi sempre reverenciado, seja nas parcerias com Zeca Pagodinho no disco Samba pras Moças, de 1995, no DVD do Fundo de Quintal, de 2004, no duo com Mano Brown, em 2001, ou na gigantesca coleção de composições do sambista que foram gravadas por diversos artistas, como Beth Carvalho, Grupo Revelação, Thobias do Vai-Vai, Alcione, Mestre Marçal, Reinaldo – que se tornaria o Príncipe do Pagode –, Nilze Carvalho, e outras dezenas de músicos. Uma simples pesquisa no site IMMuB mostra a potência da obra de Almir: são mais de quinhentos fonogramas registrados em nome do artista.
Infelizmente, a vida, ainda que sofrida, não é eterna. Poucos meses antes de falecer, na já citada entrevista para o Estadão, Almir fala, com toda a sua alegria e bom humor, sobre a mudança do estilo de vida, que durante décadas permeou o seu mundo, para que a vida continuasse lhe sendo generosa:
“Estou com 63 anos de idade e se não parar um pouco com a gandaia, a banana come o macaco. Se não afastar do inferno, você morre queimado.”
A malandragem nas palavras soam como um conselho simples, mas inteligente, de quem viveu a vida como queria, com a alegria que lhe era inerente, um aspecto importante e interessante, na perspectiva de quem, perante o capital, nasceu para ser súdito, mas morreu como um rei. E foi no dia 5 de maio de 2017 que a voz potente, de crioulo, se calou.
Mas a morte, nas tradições africanas e afro-diaspóricas é apenas uma etapa da vida. Quando se canta o Ìpàdé – ritual trazido para o Brasil pelos africanos iorubás, e que se firmou no Candomblé Ketu-Nagô –, cantamos para reverenciar pessoas importantes que, não mais vivendo no plano material, retornam à terra em belas vestimentas, para que possamos sauda-los e agradece-los por tudo que fizeram em vida. Quando cantamos um samba de Almir, é para lembrar não apenas que ele existiu, mas que ele ainda existe. Memória e negritude são como palavras rivais no Brasil, ao menos para quem acredita que só tem história aqueles que a escreveram. A oralidade é negra, dizem eles, e é por isso que cantamos, pois, como disse um grande martinicano: “falar é existir absolutamente para o outro.”[16]
Do Salgueiro a Marte: o legado de Almir Guineto para o samba e a cultura popular
A força da natureza que se tornou Almir Guineto é digna de nota. Nem mesmo o Fundo de Quintal foi capaz de comportar o célebre sambista. Essa afirmação, de maneira nenhuma, diminui o impacto que o maior grupo de samba da história causou na música popular brasileira, mas Almir se tornou algo tão grande que somente suas próprias asas poderiam suportar seu peso e sua grandeza.
É inevitável relacionar Almir à sua voz e ao banjo. Essa tríade se tornou uma coisa só, e ainda que o Magnata tenha deixado seu instrumento de lado – “tomou desgosto do banjo, que tinha muita gente tocando mal, (…) e que as pessoas não estudavam” –, não há como ignorar que foi pelas mãos de Almir que o instrumento se popularizou, se tornando elemento básico para a orquestra do samba que resiste nas ruas do Brasil. A quantidade de discípulos do famoso banjo verde-água de Almir é impressiona ainda mais pela qualidade dos que se inspiraram no mestre: Arlindo Cruz, Xande de Pilares, Marcio Vanderlei, Lisa Carvalho e Dudu Nobre são só alguns dos grandes nomes que tomaram o banjo de Almir como professor e guia. No gurufim de Almir – rito fúnebre que faz parte da cultura afro-brasileira –, em 2017, Dudu Nobre empossou o banjo que ganhou do seu mestre, e, ao lado do corpo de Almir, tocou, emocionado, uma série de músicas do Magnata. É improvável pensar numa roda de samba sem o banjo e sem a palhetada de Almir Guineto. O instrumento evoluiu muito nas mãos de gente como Arlindo e Xande, mas a referência é e sempre será o Almir do Fundo de Quintal, do Suburbano, e de muitas outras obras.
O seu modo de cantar, e suas letras carregadas do mais extremo sentimento de amor e desilusão, deixaram sementes para que o samba se desenvolvesse enquanto linguajar, além das inúmeras referências às tradições africanas que aprendeu no Morro do Salgueiro, em São Paulo, e nos demais caminhos que Almir percorreu – como Exú, que, sendo o orixá da comunicação, dono do jogo de búzios, aquele que tudo sabe e tudo come, tendo adquirido o seu conhecimento pelas viagens que faz pelo mundo material e espiritual, através do seu ogó. Se apoderando do Pretuguês, termo cunhado pela importante intelectual e militante negra Lélia Gonzales, Almir, em uma entrevista, fala sobre a letra da música Caxambu:
“Eu guardo a linguagem de nego véio, de quilombo, eu acho que é isso. Quando eu gravei Caxambu pela primeira vez, o pessoal (cantou): ‘Engoma meu filho’. Não, não é isso. É ‘Engoma meu fio que eu quero ver (…)’. Se for cantar nitidamente, assim, pra todo mundo entender, você tira a valentia da música, mexe numa coisa do gênero que vai sofisticar uma coisa que é de nego veio, de escravidão, de terreiro …”.
Em uma entrevista de 2017, Mano Brown, ao falar sobre seu disco Boogie Naipe, nos conta que o que o fez criar uma obra mais romântica foi o fato de que “o povo também chora, sofre. (…) não são comprador de disco, é gente”. Ao se referir a Almir como o Michelangelo Negro – e tendo no samba a sua raiz músical primária, antes de se tornar o maior rapper da história do Brasil –, é provavel que Brown tenha bebido da água amorosa e sofrida de Almir, que, pelas andanças em meio ao povo, contou história de belos amores, daqueles de esfriar a barriga, das desilusões, muitas vezes curadas ao som de samba e regadas a cerveja, e do sentimento de que o mundo ruiu. Essa tradição do “samba=amor” se fincou como a principal referência do gênero, se desenvolvendo ao longo da segunda metade do século 20, e desaguou no que, erroneamente, é chamado de pagode, refletindo na produção de toda a geração dos anos 1990 no Rio de Janeiro, mas, principalmente, em São Paulo.
Almir levou a complexidade do amor sentido pelo povo comum ao status de poesia da melhor qualidade. Quem nunca se animou cantando Conselho, grande sucesso do artista, numa roda de samba? Mas o que há de mais mágico em sua obra é a complexidade e extensão: somente no site IMMub constam mais de 500 fonogramas em nome de Almir. Para além do sucesso já citado, Almir compôs centenas de outros sambas, gravados por ele ou por seus grandes parceiros, como Zeca Pagodinho e Beth Carvalho. A Distância, eternizada na voz de Zeca, e um dos mais belos sambas de todos os tempos, tem todas as características da composição de Almir: a forma extrema como os sentimentos são vividos, os de alegria e os de tristeza. O uso de palavras pouco convencionais também é outra marca que percorre a obra do sambista. Mel na boca, Insensato destino, Cenário, É, pois é, e praticamente todo o disco “Almir Guineto”, de 1986, traduzem a mais alta exaltação ao amor em toda a sua complexidade.
A crítica política em tom debochado, algo enraizado no samba, que se faz presente logo na primeira faixa do seu disco de 1982, é somente a ponta de um iceberg na obra de Almir, que relaciona as contradições entre a vida do seu povo e os poderes estabelecidos pelo estado democrático burguês. Em Saco cheio, poetizando sobre a relação do homem com Deus, Almir coloca o ser humano como sujeito fazedor de história; uma história recheada de erros, discriminações, abusos e outras atitudes, mas que, quando se vê em perigo, recorre a Deus, que, segundo Almir, “já deve estar de saco cheio”. É, de certa forma, uma música política, porque focaliza os atos humanos como os responsáveis pelas mazelas sociais.
Por outro lado, em Suburbano, como em outros discos, Almir cantou o valor das tradições afro-brasileiras, desenvolvidas no período pós-abolição. Caxambu, que se tornou outro clássico da obra “Guinetiana”, é um retrato das tradições aculturadas entre a negritude e as favelas cariocas. Do jongo, da dança do caxambu, das comidas populares nos bares e casas de gente pobre, Almir retratou um modo de vida que era, ao mesmo tempo, consequência e resistência ao modo branco e capitalista imposto aos brasileiros descendentes de escravizados. Em Quem me Guia, fica uma homenagem de Almir aos orixás e entidades, principalmente a Zé Pelintra, o grande malandro e desatador de nós das macumbas brasileiras. Não é à toa que Zé tenha sido homenageado por Almir, tido como um malandro nato, no melhor sentido. A ironia do destino é que Almir, grande devoto das religiões de matriz africana, foi chamado de “Papa do samba”. Mas, numa encruzilhada de devoções e culturas entre o povo, talvez esse seja um título nada irônico, mas muito digno, e que dê a representação da importância e autoridade que Almir tem no samba.
Essa autoridade pode ser observada nas palavras de Sereno sobre o amigo e companheiro de Fundo de Quintal[17]:
“Esse sabia tudo de samba. Malandro, um cara decidido, um grande talento. Era simplesmente o Rei do Pagode, mereceu o título com todos os méritos, e o Fundo de Quintal teve o luxo de ter esse cara no grupo.”
Não sabemos se Almir já se tornou um orixá, como afirmou seu companheiro Sombrinha, mas, como boa divindade africana, recebe suas oferendas pelos bares, shows, rodas de samba, e quaisquer outros lugares onde sua memória é evocada, como um Odú Ifá, que carrega histórias, ensinamentos e soluções para os problemas da vida. Em forma de letra cantada ou de banjo repicado, seja no Morro do Salgueiro, na Bela Vista ou em Marte – onde sua música foi tocada por um robô norte-americano da missão Mars Pathfinder –, Almir se mantém vivo, e assim deve ser. Como o maior malandro de todos os tempos, ele se encontra em toda e qualquer esquina onde for chamado. E ele há de ser chamado por toda a eternidade.