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Eleições em São Paulo: o xadrez e o carteado

A entrada de Pablo Marçal nas eleições em São Paulo bagunçou o jogo por uma razão simples: ele trouxe ao espetáculo eleitoral os vestígios de conflito que ele tanto buscou extirpar
Pedro Marin
São Paulo SP 19/08/2024- O candidato Pablo Marçal durante debate da Veja. (Foto Antonio Milena / Fotos Públicas)

“O pensamento da organização social da aparência fica obscurecido pela subcomunicação generalizada que ele defende. Não sabe que o conflito está na origem de todas as coisas de seu mundo”
– Guy Debord

Embora o xadrez tenha ganhado, ao menos no mundo ocidental, a fama de metáfora perfeita da guerra, é no jogo de cartas, nos diz Clausewitz, que se encontra a melhor comparação. “Os fatores absolutos, chamados de matemáticos, nunca encontram uma base firme nos cálculos militares. Existe desde o início uma interação de possibilidades, probabilidades, sorte e azar, que avançam através do comprimento e da largura da tapeçaria. Em toda a gama de atividades humanas, a guerra é a que mais se parece com um jogo de cartas”, escreveu em seu Da Guerra.

Uma variedade de jogos de cartas populares em sua época são mencionados em seus escritos. O fundamental, com a sua comparação, é desvelar os efeitos que a interação entre diversos atores que participam de um jogo – e as alterações que promovem reciprocamente –, a sorte, o azar, e o desconhecimento que se abate sobre todos sobre as cartas dos oponentes têm sobre o jogo em si. Como descreveo professor do Departamento de História Militar do US Army Command and Staff College, o grande pressuposto de Clausewitz “é a coragem de agir na incerteza […] a ousadia é uma virtude. O argumento de Clausewitz a favor da ousadia se relaciona à necessidade dos comandantes tomarem decisões apesar da névoa e do atrito da guerra, e está relacionada ao fato de que a sorte terá um papel significativo”.

A rejeição da proximidade entre a guerra e a política tem feito a fama de alguns filósofos, a derrota de muitos políticos e a fortuna de muitos marqueteiros. Preparado para atuar na lógica concorrencial do mercado e do consumo, o marqueteiro tem tomado, em muitas partes do mundo, o lugar do estrategista, na medida em que a democracia representativa moderna se consolida como um simulacro do conflito pelo futuro no qual as decisões são decididas via consumo: vota-se neste ou naquele tal qual compra-se esta ou aquela marca de alvejante. Por vezes, essa confusão funcional, que é gigantesca no Brasil, se apresenta no conteúdo: a estratégia é sujeitada ao marketing, com candidatos alterando o que defendem, seu legado e a posição que tomam numa determinada corrida eleitoral de acordo com aquilo que é mais fácil ou desejável comunicar. Noutras, o desacerto é na própria função: o marqueteiro é quem assume, diretamente, a função do estrategista, submetendo todo o esforço de campanha, de novo, à esfera da comunicação e da busca de consenso. Por trás dessa alteração está a luta entre a concepção da política como irmã da guerra, sob o signo da espada, e a política como busca por consenso, irmã da comunicação, sob o signo da palavra.

Essa confusão pode parecer algo secundário, mas ela tem, na realidade, significados profundos. O marqueteiro, tal como o nome denuncia, é preparado para o mercado, onde a lógica reinante é quase sempre concorrencial e praticamente nunca conflitiva, já que o objeto do qual ele se incumbe – o produto – opera prioritariamente na esfera do consumo. A estratégia de comunicação que ele define para seu produto ou marca, assim, se aproxima mais do absoluto: ele se enfrenta com um cenário mais ou menos estável, onde há tais e quais produtos e concorrentes, e um público mais ou menos definido para seu próprio produto. Embora haja algum sentido na aplicação desta lógica nas eleições – que, como disse, há muito têm sido um grande espetáculo do consumo –, nos mercados os produtos não se combatem, só concorrem pela preferência do consumidor, e mesmo quando as marcas ou empresas se aproximam da esfera do que se poderia chamar de conflito, este “conflito” tem por programa máximo a busca do consumidor; o próprio objeto do “conflito” é a preferência do espectador-consumidor, chave para um programa máximo resumível no lucro, sendo, assim, extremamente limitado.

O estrategista, por sua vez, seja em que campo opere – no da guerra ou no da política – trabalha antes de tudo com a lógica do conflito. Esta lógica supõe um cenário sempre instável, onde a batalha nunca é absoluta e a estratégia nunca é real, porque todos os sujeitos podem tanto conflitar quanto se aliar, cada movimento de um pode alterar a posição real de todos, e o imponderável sempre cumpre um papel, sendo o bom estrategista normalmente aquele que se dispõe à decisão e à adaptação decidida e rápida. É verdade que há um “terceiro ator” que não participa do conflito a priori e cujo apoio é buscado pelo convencimento e consenso: ocorre que esse “terceiro ator”, na esfera da estratégia, não é um simples espectador-consumidor, mas alguém a quem se busca convencer para que tome parte no conflito, seja ele uma nação ou o povo. O conflito não se organiza pela busca de apoiadores, como a concorrência se define pela busca de consumidores; ao contrário, o conflito se organiza por visões de futuro de fato conflitantes, e o apoiador é buscado, simplesmente, para o conflito.

A política, no entanto, não é nem só irmã da guerra, nem só campo de busca por consensos. Ela é a luta pela condução da sociedade; a luta pelo controle, no presente, das definições do futuro. Essa luta é, no fundo, mesquinha e total: embora a aliança sempre seja uma possibilidade, uma filigrana de diferença faz com que a lógica do conflito sempre prevaleça enquanto houver duas forças divergentes, e mesmo o sentido da aliança, na política como na guerra, é sempre a futura dissolução da própria aliança, seja pela incorporação ou pela sujeição de uma força à outra, pelo desaparecimento de uma delas ou pelo “convencimento” e a adequação do programa de uma ao da outra. A aliança é o cessar do conflito pela manutenção do presente; mas nenhuma das forças aliadas pode abdicar de sua visão do futuro, a não ser que sinceramente convencida de seu erro; o que, como já dito, deve resultar também na dissolução da aliança. A concorrência, portanto, é estranha à política: por acaso algum partido sinceramente não desejaria ter maioria absoluta no Congresso? Por acaso algum presidente não gostaria de ter um Supremo que acate seus desejos, senão a própria inexistência de um Supremo? Não é evidente que mesmo aquelas forças que sinceramente amam a ritualística democrática e todas as suas instituições não desejariam vencer todas as eleições possíveis? Não há quem esteja realmente dedicado à política e que acredite sinceramente no bem da “alternância de poder”.

Todos estes fatos são verdadeiros também para a esfera do mercado, com uma diferença fundamental: a concorrência pelo consumidor é, simplesmente, uma concorrência pelo lucro; a “vitória” buscada por um determinado ator pode ser encontrada na eliminação da concorrência tanto quanto na abertura para um outro mercado. Na política, a concorrência pelo “terceiro ator” é só um dos aspectos do conflito, cujo fim é a realização do programa. E o programa, seja qual for, ou é realizado, ou não é: alguém derrotado para uma eleição presidencial até pode se contentar pessoalmente com uma vaga no Congresso, mas só na medida em que abdica de seus “velhos sonhos”, incorporando novos, bem mais contidos.

A luta pela condução da sociedade, portanto, é sempre conflitiva, e a busca do consenso tem por objetivo organizar e aumentar a força para o conflito, com vistas à realização de um determinado programa.

No mercado da política, no entanto, têm sido muitos os marqueteiros que convencem seus candidatos a se comportarem como molhos de tomate numa gôndola: mais ou menos iguais a todos os outros, crentes de que é mais fácil adaptar-se ao que supostamente é buscado pelo eleitor do que convencê-lo do que realmente deveria desejar,  obcecados por propagar todos seus méritos e convictos de que, ao esconder seus supostos defeitos, eles permanecerão ocultos – esquecem-se, o marqueteiro e o candidato, que neste cenário todos os atores influenciam uns aos outros e ao jogo, do qual só um deles, afinal, pode sagrar-se vencedor. 

A entrada histriônica de Pablo Marçal (PRTB) na mesa das eleições à prefeitura de São Paulo bagunçou o jogo por uma razão simples: Marçal, assim como Bolsonaro anteriormente e a extrema-direita em todo mundo, trouxe ao espetáculo eleitoral os vestígios de conflito que ele tanto buscou extirpar; trouxe a política de volta à política, mesmo que negando-a, por mais triste que possa ser reconhecê-lo. A previsão de Nunes e de Boulos de um segundo turno em que certamente se enfrentariam dissolveu-se. Não só Marçal, ao que indicam as pesquisas, tomou ou está em vias de tomar o lugar de Nunes com sua comunicação planejadamente exagerada e falsa – submetida a uma estratégia real de enfrentamento completo –, como sua existência passou a influir nas mãos de todos os outros candidatos. Tábata Amaral, por exemplo, rapidamente moveu-se da posição de gestora equilibrada para tentar construir-se como a “anti-Marçal” denuncista. Nunes, por sua vez, deve estar preparando ataques frontais contra Boulos, sonhando com um segundo turno agora com Marçal. E a campanha de Boulos passou a confrontar-se com uma nova decisão estratégica, mais ou menos adiável, mas não suprimível: seguir o planejamento, ignorando a mudança no jogo, sob a suposição de que é forte suficiente para repensar a estratégia somente no segundo turno; voltar seus canhões contra Marçal, apostando na construção bilateral da polarização, como Tábata tentou fazer; ou manter de prontidão as defesas contra Nunes, ao mesmo tempo em que faz incursões contra Marçal.

A campanha de Boulos demorou quase 20 dias, desde o primeiro debate na Band, no dia 8 de agosto, para sair da indecisão. Em um pronunciamento no último dia 27, o candidato finalmente definiu uma linha para seus apoiadores: estabeleceu a comparação entre Nunes e Marçal (“dois lados da moeda bolsonarista”) e a necessidade de combater ambos; convocou a militância a um ato público, no próximo sábado (31), e reassumiu, ainda que parcialmente, seu legado histórico como líder do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST) na entrevista concedida ao programa Roda Viva naquela noite – até então, o esforço da campanha parecia ser o de fazer com que o eleitor que não o conhecesse anteriormente sequer soubesse do histórico do candidato como liderança social (é a solução dos marqueteiros; se os concorrentes o chamarão de “invasor”, o melhor é dissociar-se completamente da pecha, mesmo que esta função tenha sido precisamente o que impulsionou o candidato à atual posição).

 Leia também – Pablo Marçal: não se deve subestimar o candidato coach 

Optou-se, portanto, pela meia-medida: nem a confrontação direta com Marçal, nem a insistência em Nunes, mas um combate combinado a ambos, sob a imagem de uma hidra paulistana de duas cabeças chamada “bolsonarismo”. Apesar das boas medidas tomadas – e apesar do combate combinado ser realmente necessário, tendo em vista o que Nunes provavelmente prepara para suas inserções na televisão –, prevalece a tese, que já informava a estratégia inicial da campanha, de que em São Paulo se trava uma luta entre bolsonarismo e lulismo.

Embora isto seja verdade em um sentido – a máquina paulistana é realmente central para o futuro político do País –, não é este o problema fundamental com o qual se enfrenta o eleitor paulistano. Tanto se insistiu na invalidez de Bolsonaro – no geral pela via jurídica, fundamentalmente sem combate político, e com ampla anistia para elementos centrais do bolsonarismo, como os militares ou o agronegócio – que o fantasma já não assombra. Operar a estratégia da campanha contra dois inimigos de formas muito distintas na chave negativa do medo, e acima de tudo no medo de uma assombração que já parece passada, é um erro, que poderá empolgar alguns setores mais esclarecidos da classe média, mas dificilmente ressoará entre quem é maioria em São Paulo, como em qualquer cidade (e que os marqueteiros parecem ignorar): os pobres.

Marçal, enquanto isso, ganha pontos nas pesquisas, mesmo fazendo questão de identificar-se tanto quanto possível com Bolsonaro. Até aqui, o que as pesquisas apontam é que há, tanto para Marçal quanto para Boulos, uma gigantesca parcela do eleitorado mais pobre a ser disputado. Prevalecerá entre estes o medo do bolsonarismo ou o terror da miséria, a quem Marçal nomeia como sua principal inimiga enquanto repete mil e uma vezes, nas suas entrevistas, a palavra “favela”? (Esta maldita palavra, tão embelezada em “comunidades” e comemorada em vitórias cuja real efetivação imporiam o seu desaparecimento).

Em relação ao estupor que marcou publicamente a campanha de Boulos por quase três semanas, o anúncio do dia 27 e a estratégia ali comunicada são um grande avanço. Com uma linha definida, se retira os apoiadores do imobilismo no qual a própria campanha se manteve; com a volta da face de liderança social a partir da qual Boulos fez-se candidato, se dissolve a falsidade de laquê e se eleva o moral dos setores mais comprometidos; com o chamado à mobilização no dia 31, se organiza a militância e se confere papel central à mobilização e ao corpo-a-corpo. Mas ao estabelecer como central o confronto em duas frentes com a hidra, imaginada e pouco visível para a maioria do povo, corre-se o risco de deixar Marçal demasiado livre em busca dos palcos iluminados, oferecendo ao povo tudo o que ele deseja: truco.

(*) Pedro Marin é fundador e editor-chefe da Revista Opera. É editor de Opinião de Opera Mundi, autor de “Aproximações sucessivas – O Partido Fardado nos governos Bolsonaro e Lula III”, “Golpe é Guerra – Teses para enterrar 2016”, e co-autor de “Carta no Coturno – a volta do Partido Fardado no Brasil”.

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