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O Fantasma de Gaza: um perfil de Yahya Sinwar, líder do Hamas morto por Israel

Yahya Sinwar morreu como viveu: em combate. Nascido em um campo de refugiados, se tornou líder máximo do Hamas este ano, após décadas devotadas à luta palestina
Euclides Vasconcelos
O líder do Hamas, Yahya Sinwar, durante uma conferência em Gaza em 4 de novembro de 2019. (Foto: Ashraf Amra / APAimages)

Na última quarta-feira (16), em Rafah, a última cidade ao sul da Faixa de Gaza, soldados de Israel emboscaram e mataram Yahya Sinwar, a mente por trás da operação que no dia 7 de outubro de 2023 desferiu o mais importante ataque da resistência palestina contra Israel. Líder do Hamas na Faixa de Gaza desde 2017, Sinwar fora eleito em agosto deste ano Presidente do Bureau Político do Hamas depois de seu predecessor, Ismail Haniya, ser assassinado por Israel no Irã. 

Apesar dos esforços de Israel, e ao contrário da narrativa israelense desde o início da guerra, o paradeiro de Sinwar não foi descoberto graças ao seu trabalho de inteligência, tampouco o combatente palestino morreu escondido em um túnel qualquer, cercado de reféns usados como escudos humanos. Sinwar foi encontrado por acaso, à luz do dia, patrulhando as ruas de Rafah. Quando um grupo de soldados de Israel esbarrou com sua patrulha, a cena que se seguiu foi cinematográfica. Durante o enfrentamento, um projétil de tanque atingiu e quase decepou o braço direito do líder do Hamas, que improvisou um torniquete com um arame de ferro e continuou o combate. Seus últimos momentos, registrados por um drone que o seguiu até as ruínas do prédio onde foi assassinado, mostram o líder insurgente ferido, sentado numa poltrona com o rosto coberto por um keffiyeh. Encarando a morte, seu esforço final foi lançar contra o drone um pedaço de madeira recolhido dos escombros no seu entorno. 

Yahya Sinwar morreu aos 61 anos e sua morte é um golpe duro na organização que se confundiu com sua própria vida – uma vida que lhe rendeu muitas alcunhas. Seus inimigos chamavam-lhe “o Açougueiro de Khan Yunis” pelo papel na construção da “polícia secreta” do Hamas. Para seus admiradores, Yahya era o Leão de Gaza, campeão da luta contra a ocupação. Por seus longos anos sem ser capturado e morto, foi chamado de “Fantasma de Gaza”. Mas como Sinwar se tornou quem foi?

Nascido da guerra

Yahya Ibrahim Hassan Sinwar nasceu em 29 de outubro de 1962 no campo de refugiados de Khan Yunis, numa Faixa de Gaza ocupada e administrada pelo Egito. Seus pais e outros milhares de palestinos foram expulsos do vilarejo de al-Majdal Asqalan em 1948 no episódio conhecido como Nakba – “catástrofe”, em árabe –, onde quase um milhão de palestinos foram expulsos de sua terra para a criação do Estado de Israel – território de onde seus pais foram expulsos foi rebatizado e hoje é parte de Ashkelon, cidade do Distrito Sul israelense. 

São poucos os registros de sua infância, e a maior parte dos relatos são de quando Sinwar já havia se tornado quem ele foi. Uma das poucas certezas é que ele é um dos milhares filhos da guerra nascidos em meio ao êxodo de famílias amontoadas em campos improvisados na Faixa de Gaza, a maior prisão a céu aberto do mundo, sem jamais ter visto a Palestina antes da ocupação israelense. Anos mais tarde o seu pai, Ibrahim, diria que “a vida de Yehya foi cheia de agonia devido à agressão sionista. Desde sua infância, ele estava determinado a resistir à ocupação”.

O pequeno Sinwar fez seus estudos na Escola Secundária Khan Younis e logo em seguida ingressou na Universidade Islâmica de Gaza – a primeira instituição de ensino superior fundada na Faixa de Gaza –, onde se graduou bacharel em Língua e Literatura Árabe (muitas vezes sua formação é genericamente referida como “Estudos Árabes”). Na universidade, fez parte do Conselho Estudantil por cinco anos como secretário do comitê técnico, responsável pelo comitê de esportes e sendo eleito vice-presidente, presidente e outra vez vice-presidente do comitê. Sua atuação no movimento estudantil e na articulação do “Bloco Islâmico” de estudantes rendeu-lhe sua primeira prisão em 1982, aos 19 anos, quando passou seis meses na prisão israelense de El-Far’a sob o regime de “detenção adminstrativa” – ou seja, sem acusação formal, julgamento ou condenação.

Yahia Sinwar com um companheiro, na juventude.

Três anos depois, em 1985, Sinwar foi preso pela segunda vez. Agora, pelo seu papel na articulação do al-Majd, uma complexa rede de segurança e inteligência organizada em células por toda a Faixa de Gaza, monitorando as atividades dos palestinos que colaboravam com Israel e as instalações da ocupação em Gaza. Ao que tudo indica, apesar das razões da prisão, as dimensões do papel de Sinwar na rede não foram descobertas por completo, e dessa vez ele passaria oito meses preso.

Novamente, em 1988, Sinwar foi preso e torturado por seis semanas, depois que a tortura de outro prisioneiro levou as autoridades israelenses outra vez até suas atividades no aparato de segurança do movimento. Desta vez Yahya recebeu a principal condenação de sua vida, sem jamais ter colocado a mão em um israelense. Algumas fontes falam em quatro penas de prisão perpétua e outras em 426 anos de condenação pelo assassinato de quatro  colaboradores de Israel na Faixa de Gaza.

No ano de detenção que precedeu o seu julgamento, ele foi transferido dezenas de vezes entre prisões, maioria das quais passou o período de detenção em confinamento solitário. No dia do seu julgamento, em 1989, as forças de Israel fecharam as estradas e rigorosas medidas de segurança foram impostas à Faixa de Gaza por medo de uma eventual ação de resgate. Diante do Tribunal, quando questionado sobre se ele se arrependia de sua ação ou pedia misericórdia, Sinwar respondeu, na presença de sua mãe e irmão: “Peço que me condenem à morte para que meu sangue seja o primeiro sangue a ser derramado e sirva como uma chama a ser seguida por outros Mujahideen.”

Antes de sua prisão nos anos 1980.

Da prisão ao comando da Faixa de Gaza

Dos 426 anos a que foi condenado (ou das quatro penas de prisão perpétua, a depender da fonte), Sinwar cumpriu 23. Foi libertado em 2011, depois que mais de mil palestinos presos em Israel foram trocados por um único soldado israelense, Gilad Shalit, capturado em 2006 pelo Hamas e mantido cativo pelo grupo durante os anos de negociação, na qual o próprio Sinwar cumpriu papel central. Ainda preso, foi utilizado pelas autoridades israelenses como interlocutor nas tratativas para a troca de presos, até que se tornou um entrave. Ao contrário de outros membros do alto escalão do Hamas fora da prisão, Sinwar era contrário a aceitar os vetos israelenses na lista de prisioneiros que deveriam ser trocados por Gilad Shalit, defendendo que ou fossem libertados todos os prisioneiros palestinos solicitados, ou as negociações deveriam ser interrompidas – mesmo que isso significasse, como de fato significava, o prolongamento de sua prisão. Com Sinwar transferido para a solitária e fora do caminho, a negociação foi efetivada e 1.027 palestinos – incluindo Sinwar – foram soltos em troca do soldado israelense. Anos mais tarde, comentando a permanente conspiração contra Israel na prisão, Sinwar diria: “A questão dos prisioneiros só pode ser resolvida dessa maneira. […] Para o prisioneiro, capturar um soldado israelense é a melhor notícia do universo, porque ele sabe que um vislumbre de esperança foi aberto.”

Na lista de prisioneiros cuja liberdade foi exigida pelo Hamas mas vetada por Israel estava o Secretário-Geral da Frente Popular para a Libertação da Palestina (FPLP), o marxista-leninista Ahmad Sa’adat (também conhecido como Abu Ghassan), que hoje tem 71 anos e segue na cadeia desde 2002. Inicialmente preso e condenado pela Autoridade Palestina, o Secretário-Geral da FPLP cumpria pena na prisão de Jericó, na Cisjordânia, que à época era monitorada por guardas estadunidenses e britânicos. Quando o Hamas anunciou, ainda em 2006, sua intenção de libertar Sa’adat da prisão, algo no mínimo curioso se desenrolou. As equipes dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha se retiraram da prisão alegando más condições. Em seguida, Israel lançou a Operação Trazendo para Casa as Mercadorias: a invasão da prisão de Jericó e o rapto de seis prisioneiros, incluindo Sa’adat, que foi condenado por um tribunal militar israelense a 30 anos de prisão em 2008. Mantido em confinamento solitário até 2012, sua saúde se deteriorou desde então devido às condições da prisão e as suas sucessivas greves de fome.

Os 23 anos de prisão de Sinwar foram transformadores. Na cadeia aprendeu hebraico por meio de aulas on-line e fazia questão de se comunicar com a equipe da prisão na língua, chegando a se tornar fluente a ponto de conceder uma entrevista em 2006 a uma televisão israelense enquanto ainda estava na prisão – a única entrevista dada a um veículo de Israel. Sinwar acompanhava de maneira assídua as notícias do cotidiano israelense, especialmente atento às questões da política interna de Israel, além de ter traduzido do hebraico para o árabe as biografias Aquele que vem para te matar, do ex-chefe do Shin Bet (o serviço de segurança interno de Israel) Yaakov Peri, e a de seu sucessor no cargo, Carmi Gillon: Shin Bet entre as rupturas, em tradução livre. Embora as traduções tenham sido confiscadas pelo Serviço Penitenciário, certamente contribuíram nos seus estudos das táticas de contraterrorismo israelenses.

No esforço para se tornar, como ele se definia, um “especialista na história do povo judeu”, Sinwar se matriculou e assistiu, de sua cela, as aulas de quinze cursos à distância nos departamentos de Ciências Humanas e Ciências Sociais da Universidade Aberta de Israel. A maioria dos cursos escolhidos foram cursos de história: a história do povo judeu na Antiguidade, desde o Reino da Pérsia, se aprofundando nos períodos do Primeiro e Segundo Tempo, na presença de ministros judeus nas cortes Europeias na era moderna, as relações entre judeus e cristão na Europa Ocidental, o Holocausto, a história do movimento sionista – neste curso, obteve a nota mais alta, 96 de 100. Nas ciências sociais, realizou cursos sobre as raízes da sociedade israelense e as relações entre os grupos que a compõem, a separação de poderes, partidos e o sistema eleitoral de Israel e um curso sobre planejamento urbano, as estratégias de assentamento e a formação do mapa rural israelense no século XX. É dito que certa vez Sinwar comentou, entre seus apoiadores: “Eles queriam que a prisão fosse um túmulo para nós, um moinho para moer nossa vontade, nossa determinação e nossos corpos. Mas, graças a Deus, com nossa crença em nossa causa, transformamos a prisão em santuários de adoração e academias de estudo”.

Em 2004, Sinwar passou por uma cirurgia que salvou sua vida. Depois de sintomas como não conseguir se manter de pé para orar, confusão mental e uma dor na parte de trás do pescoço, o dentista da prisão o encaminhou às pressas para um hospital, suspeitando de um derrame ou um abscesso. Lá, uma cirurgia de emergência retirou um tumor cerebral que estava prestes a estourar. O dentista relatou, anos depois: “Sinwar pediu que ele [um guarda muçulmano] me explicasse o que significa no Islã eu ter salvado sua vida. […] Era importante para ele que eu entendesse de um muçulmano o quão importante isso era no Islã – que ele me devia sua vida.” 

A partir de então os dois homens passaram a se encontrar regularmente para beber chá e conversar, sempre sobre política, sobre o Hamas e sobre Israel. Este mesmo dentista, o Dr. Yuval Bitton, mais tarde se tornaria um agente de inteligência, dado seu bom relacionamento com muitos prisioneiros, e tentou persuadir – sem sucesso, como vimos – Sinwar a aceitar o acordo de troca pelo soldado Shalit. Ciente das capacidades e habilidades de Sinwar, o dentista pediu às autoridades que ele não fosse libertado, mas nisso também não obteve sucesso. Uma vez em Gaza, o prisioneiro recém-libertado declarou, em entrevista a um canal do Hamas: “Não pouparemos esforços para libertar o resto de nossos irmãos e irmãs […] Instamos as Brigadas Qassam a sequestrar mais soldados para trocá-los pela liberdade de nossos entes queridos que ainda estão atrás das grades.”

Depois da cirurgia, no fim de 2004, os guardas da prisão confiscaram em sua cela um romance escrito à mão, um livro intitulado O espinho e o cravo, em tradução livre. Sabe-se que pelo menos uma cópia foi contrabandeada para fora da prisão e posteriormente o The New York Times encontrou a versão digital de uma tradução para o inglês em uma biblioteca on-line. A Amazon chegou a pôr o livro à venda em dezembro do ano passado, mas a pressão do lobby sionista fez com que o site voltasse atrás nas vendas.

Com a morte de Sinwar, o livro voltou outra vez à tona e hoje pode ser encontrado com relativa facilidade na internet. Uma excelente resenha assim descreve a história de O espinho e o cravo: “Narrado por Ahmed, o neto mais novo, o romance narra as lutas da família — moldadas pelo desaparecimento de seu pai e tio —, as duras condições do campo de refugiados e os eventos políticos que abrangem 37 anos. O filho mais velho se junta ao movimento Fatah, enquanto seus irmãos mais novos se alinham com a resistência islâmica e a Intifada. O romance entrelaça eventos pessoais e históricos, documentando os principais marcos da história palestina desde 1967 até os primeiros anos da Segunda Intifada.”

Já no prefácio, Sinwar trata da explícita relação entre ficção e realidade – a sua própria história, em especial: “Esta não é a minha história pessoal, nem a história de qualquer indivíduo em particular, embora todos os seus eventos sejam reais. Cada evento, ou cada conjunto de eventos, pertence a este ou aquele palestino. A única ficção neste trabalho é sua transformação em um romance que gira em torno de personagens específicos, para cumprir a forma e os requisitos de uma obra novelística. Tudo o mais é real; eu vivi e muito disso ouvi da boca daqueles que, eles próprios, suas famílias e seus vizinhos, experimentaram isso ao longo de décadas na amada terra da Palestina.”

Apesar de não se tratar de uma autobiografia, o romance é o único documento de que se tem notícia onde Sinwar escreve sobre si mesmo (o personagem principal tem a mesma idade que Sinwar tinha em 1967, ano em que a história se passa). 

Se seu crescimento nas fileiras do Hamas o colocou no centro das atenções, sua morte em combate o lançou à figura de mito entre muitos e sua cabeça tornou-se trofeu na mão de tantos outros. Em meio a uma inundação de relatórios da inteligência israelense, relatos das pessoas que o conheceram ou que com ele conviveram, e uma obsessão por perfis psicológicos que especulam ou afirmam tal ou qual característica inata, a história de uma criança nascida da guerra, ainda que romanesca, ajuda a entender a mente e as motivações do inimigo número um de Israel entre os palestinos. A resenha antes mencionada evidencia as relações entre o romance de 2004 e a situação atual da questão palestina: “[o livro] reflete a continuidade de uma estratégia mais ampla dentro da resistência de Gaza. O trabalho, em última análise, enfatiza que a escalada é necessária quando outros métodos foram esgotados, para forçar um confronto decisivo com a ocupação israelense. Essa abordagem tem como objetivo ‘mudar a equação’, como afirma Sinwar no romance.”

Sinwar escreveu ainda um segundo livro, Glória, sobre as operações do Serviço de Segurança Geral de Israel, o Shin Bet, e os assassinatos de líderes da resistência palestina, publicado em 2010.

O mundialmente conhecido Yahya Sinwar

Uma vez liberto e de volta a uma Faixa de Gaza completamente diferente daquela que ele deixou para trás 23 anos antes, Sinwar assumiu posições importantes no Hamas: em 2012, foi eleito membro do Bureau Político da organização, para liderar sua ala militar, as Brigadas Izz el-Din al-Qassam, e em 2017 sucedeu Ismail Haniyeh na liderança do grupo na Faixa de Gaza. Haniyeh deixara o posto para assumir a posição de Presidente do Bureau Político do Hamas – seu Politburo. Para assumir o posto, Haniyeh se mudou para Doha, no Qatar, uma vez que os dirigentes da chamada “ala política” do movimento vivem em sua maioria no exílio. Sinwar substituiria Haniyah ainda uma segunda vez, depois de seu assassinato em 31 de julho deste ano, no Irã, quando foi escolhido para sucedê-lo no posto máximo do Hamas, desta vez ocupado por um integrante presente em Gaza. Fora da prisão, Sinwar cumpriu papel importante no estreitamento das relações entre o Hamas e o Irã, uma tarefa para a qual contou com a importante coordenação do general Qasem Soleimani, com quem chegou a se encontrar pessoalmente em 2012 em visita a Teerã.

O tempo de Sinwar em Gaza depois da prisão fez ele mundialmente conhecido e um alvo ainda mais importante para Israel que o jovem preso em 1988. Em 2015, junto a outros dois importantes dirigentes do Hamas, Sinwar foi classificado como um Terrorista Global Especialmente Designado pelos Estados Unidos, o que deu a ele ainda mais proeminência entre os inimigos de Israel – funcionando, na prática, como um reconhecimento de suas atividades na Faixa de Gaza.

Preocupado com os rumos e a marginalização da questão palestina na política contemporânea, Sinwar sempre esteve atento às variações nas condições de luta contra Israel. Em 2018, chegou a anunciar à rede de TV Al Jazeera a adesão do Hamas a uma “resistência pacífica e popular” – uma adesão tática e pragmática, visto que a completa assimetria entre as forças israelenses e as forças da resistência era ainda mais desproporcional à época. Igualmente atento à situação da população palestina em Gaza, trancafiada numa área de 360 km² por toda a vida, uma coletiva com jornalistas estrangeiros em 2018 ouviu de Sinwar que “a coisa mais perigosa é que os jovens começaram a perder a esperança de uma vida digna em Gaza”. 

Também em 2018 Sinwar concedeu uma das mais famosas entrevistas de sua vida. Conduzida pela jornalista italiana Francesca Borri, repórter do periódico La Repubblica, a entrevista foi publicada no Yedioth Ahronoth, um diário israelense de grande circulação, publicado em hebraico e por muito tempo o jornal de maior tiragem em Israel. Trata-se de uma entrevista reveladora, visto que Sinwar provou saber se utilizar de oportunidades como essa – oportunidades de falar para além do seu público na Faixa de Gaza.

Durante cinco dias a jornalista se encontrou e conversou com Sinwar em uma Gaza “em colapso – fisicamente, mas também psicologicamente”, mas ainda bonita. Banhada pelo mar e pelo sol, uma Gaza onde cada passo lembrava à jornalista o que aquele lugar poderia ter sido. Uma Gaza que, apesar da ocupação, insistia em ter uma vida cotidiana para seu povo. Um dos lugares favoritos de Francesca, um café: “um dos melhores cafés em que já estive, que é apenas um carrinho de madeira com uma caldeira e lâmpadas de ferro velhas, uma velha garrafa de uísque vazia, um retrato de Che Guevara entre todas as fotos de Umm Kulthum e velas em pequenas latas, porque não há eletricidade. E eles só têm Nescafé, servido em mesas de plástico no valor de um dólar cada. Mas tem a atmosfera de um café parisiense, porque é o ponto de encontro de todos esses jovens de vinte e poucos anos que nunca saíram daqui, e ainda assim – não sei como – eles falam inglês fluentemente e  têm inúmeros projetos e uma energia infinita”.

Mas e Sinwar? Para a jornalista italiana, Yahya é como Gaza: “normal, apesar de tudo. Nas poucas fotos que encontrei online, ele tem essa expressão dura. Mas ele é um homem como qualquer outro; um homem simples, sempre de camisa cinza. Sua característica distintiva é de alguma forma não ter nenhuma característica distintiva, como todos os seus conselheiros”.

“Quem sabe o que é guerra, não gosta de guerra”, assim carimbou Sinwar quando questionado sobre a possibilidade de deflagração de um novo conflito à época da entrevista. “55% da população tem menos de 15 anos. Não estamos falando de terroristas, estamos falando de crianças. Elas não têm filiação política, só têm medo. Eu as quero livres.”

Perguntado sobre o governo do Hamas em Gaza, sua resposta corresponde à descrição de um território cercado, sem acesso ao básico e obrigado a existir como pode: “Você acha que estar no poder em Gaza é como estar no poder em Paris? Estamos no poder há anos em muitos municípios, exatamente por causa de nossa reputação de eficiência e transparência. Então, em 2006, ganhamos as eleições gerais e fomos colocados na lista negra [do terrorismo]. Não há eletricidade, é verdade, e isso afeta todo o resto. Mas você acha que não temos engenheiros? Que não podemos construir uma turbina? Claro que sim. Mas como? Com areia? Você pode ter o melhor cirurgião da cidade, mas está supondo que ele pode operar com garfo e faca. Olhe para a sua pele, ela já está descascando. Aqui, se você chegar de fora, se chegar do mundo, você fica doente imediatamente. O que deveria chamar sua atenção é que ainda estamos vivos.”

À época, o Hamas estava engajado na tentativa de negociar um cessar-fogo com Israel, e quando questionado sobre isso, tratou de definir o que chama e almeja quando fala em cessar-fogo: “Porque se o cessar-fogo significa que não somos bombardeados, mas ainda não temos água, nem eletricidade, nada, então ainda estamos sob cerco – não faz sentido. Como o cerco é um tipo de guerra, é apenas guerra por outros meios. E também é um crime sob o direito internacional. Não há cessar-fogo sob cerco. Mas se virmos Gaza voltando à normalidade… se virmos não apenas ajuda, mas investimentos, desenvolvimento – porque não somos mendigos, queremos trabalhar, estudar, viajar, como todos vocês, queremos viver e permanecer por conta própria – se começarmos a ver uma diferença, podemos continuar. E o Hamas fará o seu melhor. Mas não há segurança, nem estabilidade, nem aqui nem na região, sem liberdade e justiça. Eu não quero a paz dos cemitérios.”

E é contra a paz dos cemitérios que o líder insurgente fala sobre a luta armada: “Sejamos claros: ter uma resistência armada é nosso direito, sob o direito internacional. Mas não temos apenas foguetes. Temos usado uma variedade de meios de resistência. Sempre. Uma pergunta como essa, honestamente, serve mais para você do que para mim – para todos vocês jornalistas. Nós só conseguimos as manchetes com sangue. E não só aqui. Sem sangue, sem notícias. Mas o problema não é a nossa resistência, é a ocupação deles. Sem ocupação, não teríamos foguetes. Não teríamos pedras, coquetéis molotov, nada. Todos nós teríamos uma vida normal.”

Outra parte essencial da entrevista é quando Sinwar discorre sobre a importância das trocas de prisioneiros para Hamas. Perguntado se em um cessar-fogo uma cláusula de troca de prisioneiros seria essencial, ele responde: “Mais do que essencial – uma obrigação. Não é uma questão política, para mim é uma questão moral. Porque seus leitores provavelmente acreditam que, se você está na prisão, você é um terrorista ou, de alguma forma, um fora-da-lei. […] Todos nós seremos presos, mais cedo ou mais tarde. Todos nós, literalmente. […] De alguma forma, é um rito de passagem. É a nossa maioridade. Porque se há algo pelo qual estamos unidos, algo que realmente nos torna todos iguais – todos os palestinos – é a prisão. E para mim é uma obrigação moral: farei mais do que o meu melhor para libertar aqueles que ainda estão lá dentro.” Quando a jornalista se refere ao soldado Gilad Shalit – capturado pelo Hamas em 2006 – como um refém, Sinwar rebate: “Gilad Shalit não era um refém, ele era um prisioneiro de guerra. Você entende por que raramente falamos com jornalistas? Um soldado é morto, vocês publicam uma foto dele na praia, e seus leitores acham que atiramos nele em Tel Aviv. Aquele cara não foi morto enquanto usava bermudas e carregava uma prancha de surf, mas enquanto usava um uniforme e carregava um M16, atirando em nós.”

Os acordos de Oslo e a “solução de dois estados” também apareceram na entrevista, e a resposta de Sinwar em 2018 ajuda a entender a falência desse projeto – falência cada vez mais óbvia, por mais que poucos sejam os que admitem: “Oslo acabou. Acho que esse é o único ponto em que todos concordam aqui. Realmente todo mundo. Tem sido simplesmente uma desculpa para distrair o mundo com negociações intermináveis e, enquanto isso, construir assentamentos em todos os lugares e apagar fisicamente qualquer viabilidade de um estado palestino. 25 anos vieram e se foram, e o que conseguimos? Nada. Mas acima de tudo, por que vocês sempre insistem em Oslo? Por que vocês nunca falam sobre o que aconteceu depois? Como o Documento de Unidade Nacional, por exemplo, que foi baseado no conhecido Documento de Prisioneiros de 2006. E isso descreve nossa estratégia atual, quero dizer, do Hamas, Fatah, todos nós, todos juntos – um estado dentro das fronteiras de 1967, com Jerusalém como sua capital. E com o direito de retorno para refugiados, é claro. Doze anos vieram e se foram, e vocês continuam perguntando: ‘por que vocês não aceitam as fronteiras de 1967?’ Tenho a sensação de que o problema não está do nosso lado.”

 A entrevista concedida à jornalista italiana e publicada no veículo israelense cumpriu o papel de fazê-lo conhecido para além do que era dito sobre ele. Pela primeira vez falando à mídia ocidental, Sinwar tocou em temas caros ao Hamas e à questão palestina como um todo: o cerco à Faixa de Gaza e as condições de vida dos palestinos na região, a busca por um verdadeiro cessar-fogo e o direito à resistência armada, a captura de prisioneiros como meio para um fim, os acordos de Oslo e a falência da solução de dois Estados, entre outras coisas. Falou também sobre a própria vida, o tempo na prisão e o mundo 23 anos depois. Como ele próprio se descreveu para a jornalista, Sinwar se mostrou ao mundo, na entrevista, muito mais que o líder de uma milícia. Mostrou-se “o líder do Hamas em Gaza, de algo muito mais complexo do que uma milícia – um movimento de libertação nacional.”

Em 2021, e também para um veículo de mídia ocidental, a Vice News, Sinwar deu sua última entrevista em vídeo – que voltou à tona nas redes sociais pelo resumo que dá quando questionado sobre o uso da violência: “O mundo espera que sejamos vítimas obedientes enquanto somos mortos? Que sejamos massacrados sem fazer barulho? Isso não vai acontecer. Decidimos defender nosso povo com as armas que temos.” Trata-se de um registro curto, gravado quase que por acidente. Hind Hassan, uma das jornalistas responsáveis pela entrevista, assim descreve como conseguiu entrevistá-lo: “Todos nos disseram que ele estava escondido, pois foi apenas alguns dias após uma tentativa de assassinato durante onze dias de bombardeio israelense em 2021. Nós o encontramos andando pela rua, então o paramos e pedimos uma entrevista. Nós o encontramos caminhando em Jabalia. Depois que nos apresentamos e pedimos uma entrevista, ele disse que consideraria e que entraria em contato. Mais tarde, um contato do Hamas entrou em contato com a equipe e marcou um horário e local.”

A tentativa de assassinato mencionada é mais um dos episódios de sua vida que contribuíram para a construção do mito guerreiro do “Leão de Gaza”. Depois da assinatura do cessar-fogo que encerrou a guerra de 2021 em Gaza, o ministro da Defesa de Israel, Benny Gantz, declarou publicamente que o cessar-fogo não valia para Sinwar, que seria morto caso ousasse aparecer em público. Em resposta, Sinwar realizou várias atividades abertas em sequência. Em uma delas – a quarta em menos de uma semana –, anunciou em uma coletiva de imprensa que passaria uma hora caminhando pelas ruas de Gaza e desafiou Benny Gantz a assassiná-lo – e assim o fez. Sinwar passou os 60 minutos seguintes passeando à luz do dia em Gaza entre avenidas, ruas residenciais e mercados públicos – parando eventualmente para tirar fotos com admiradores e conversar com a população.

O passeio de Sinwar pelas ruas de Gaza em resposta à ameaça de morte do ministro da Defesa israelense (Foto: Ashraf Amra/APA images).

A morte de um fantasma

Depois do 7 de outubro do ano passado – e graças ao papel cumprido na preparação e execução do ataque contra Israel –, Sinwar foi publicamente marcado por Israel como um homem morto. Tornou-se questão de honra encontrar e assassinar o homem que se formou sob seus narizes e aprendeu tanto sobre Israel a ponto de conseguir desferir-lhe o mais danoso ataque de sua história. Um ataque sobre o qual ele havia avisado anos antes. Em 2004, ainda na prisão, em uma das inúmeras conversas com o dentista que salvou sua vida, Sinwar mais de uma vez evidenciou as fissuras na sociedade israelense, verdadeiras brechas de oportunidade que as organizações de resistências deveriam saber aproveitar: “Agora você é forte, você tem 200 ogivas atômicas. […] Mas veremos, talvez em mais 10 a 20 anos você enfraqueça, e eu ataque.”

E foi exatamente isso que aconteceu. O “Dilúvio Al-Aqsa”, nome dado pelo Hamas à operação lançada no dia 7 de outubro, aproveitou-se das fissuras na sociedade israelense como a água consegue se aproveitar de cada brecha e caminho à sua frente, preenchendo e inundando até onde a força alcança. Profundamente dividido internamente graças às reiteradas tentativas de Netanyahu de reformar o sistema judiciário para enfraquecer a Suprema Corte e fortalecer os partidos de extrema-direita, Israel vivia um momento de intensas mobilizações e protestos contra o governo. Era a chance perfeita – e o resto já sabemos.

Em uma ironia quase literária, digna das maiores tragédias, um dos reféns capturados pelo Hamas e levados até a Faixa de Gaza no dia 7 de outubro foi Tamir Adar, sobrinho de Yuval Bitton – o dentista a quem Sinwar devia a sua vida. 

Sabendo que o líder do Hamas em Gaza acompanhava a mídia israelense, o dentista, ainda que desacreditado, decidiu dar uma entrevista na televisão. Contou que salvara a vida de Sinwar na prisão – minimizando seu papel, com medo da recepção da sociedade israelense – e que seu sobrinho estava entre os prisioneiros em posse do Hamas. Logo depois da entrevista, a inteligência israelense informou que Sinwar procurou saber sobre as condições de Tamir Adar, recebendo como resposta que o prisioneiro estava bem – mas a resposta dada era falsa ou estava errada. Adar foi ferido enquanto defendia seu kibutz do ataque e morreu pouco tempo depois de ser levado à Faixa de Gaza.

Caçado diariamente nas ruas de Gaza desde o 7 de outubro, Sinwar mais de uma vez chegou perto de ser encontrado pelas forças israelenses, sempre desaparecendo no ar pouco antes de ser pego, como um fantasma. Mais de uma vez roupas com o seu DNA foram encontradas pelo exército de Israel e câmeras instaladas nos túneis do Hamas registraram ele e sua família em deslocamento, mas ainda assim Sinwar nunca foi capturado. Sempre um passo à frente, não foi alcançado pela inteligência de Israel, e o Mossad, serviço de inteligência israelense, não pode se orgulhar de ter matado o homem que expôs seu país diante do mundo.

A morte não o encontrou em um túnel, escondido, cercado por reféns ou vestindo uma burca para passar despercebido – versões essas repetidas mais de uma vez pelas autoridades israelenses, frustradas pela própria incapacidade de chegar a um homem que lutava sem um décimo dos recursos que eles próprios possuíam. Sinwar morreu como viveu: combatendo. Como em um último golpe em seus inimigos, as suas últimas imagens em vida – divulgadas como um troféu por Israel – serviram para elevar-lhe ao status de lenda. Em trajes de combate, armado, ferido gravemente no braço e com o rosto coberto pelo tradicional lenço palestino símbolo de combate, Sinwar morreu como um guerreiro. Agora a lenda do Fantasma de Gaza assombra Israel além da vida, sempre a lembrar-lhes de que quando golpeados eles também sangram.

(*) Euclides Vasconcelos é professor de história e geografia. Estuda e escreve sobre os temas da guerra e da política. Organizou e prefaciou a publicação dos escritos militares de Friedrich Engels (Editora Baioneta)

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