Três argumentos têm sido os preferidos dos canetas-de-aluguel e porta-vozes dos mercados nas suas formulações em resposta ao avanço da luta pelo fim da escala 6×1 nas últimas semanas: 1 – os impactos que um eventual aumento de contratações teriam sobre os micro e pequenos empresários; 2 – a baixa produtividade da economia brasileira; e 3 – a defesa intransigente dos “acordos” sobre as leis, que teriam tornado arcaica a ideia de fixar na Constituição novos limites para a jornada de trabalho.
O último ponto, embora o mais frágil deles, foi capaz de reunir, de formas diferentes, figuras tão distintas quanto o senador Jorge Seif (PL-SC) e o ministro do Trabalho e Emprego, Luiz Marinho. Durante um embate no Senado, o senador reacionário declarou: “hoje, dentro da legislação, nada impede que o empregador e o empregado […] façam um acordo: ‘olha, patrão, eu preciso trabalhar só quatro dias porque eu tenho isso, tenho filho, estudo […] que isso seja uma negociação baseada na liberdade […]”. No que foi respondido por seu próprio colega, de plenário e de campo político, senador Cleitinho (Republicanos-MG): “é importante a gente entender que na teoria o que você falou é lindo, mas na prática não funciona. Temos que lidar com seres humanos que são egoístas e covardes. Se não tivesse o Estado, a gente estava na escravidão até hoje”. Embora do mesmo campo político de Seif, Cleitinho expressou o que é óbvio para qualquer trabalhador: o acordo privado entre o patrão e o empregado haverá sempre de ser o acordo entre o pescoço e a corda – e isso independe dos sentimentos humanitários do patrão. A desigualdade neste tipo de acordo decorre do simples fato de que o trabalhador depende do emprego para sobreviver, enquanto seu patrão não; e que o trabalhador não pode demitir à vontade um patrão que não aceite seu acordo, mas o patrão pode demitir um trabalhador que o tenha proposto.
O ministro Luiz Marinho, embora partindo do mesmo pressuposto, é um pouco mais refinado: para ele, a escala “deve ser tratada em convenções e acordos coletivos de trabalho”. Isto é: ao contrário de Seif, o ministro traz à baila, como forma de reduzir a desigualdade de poder entre patrão e trabalhador, a força coletiva organizada dos empregados; mas, assim como Seif, aposta no acordo privado (embora coletivo), não na regulação pública. Como os trabalhadores que fazem a escala 6×1 frequentemente estão em setores de alta rotatividade e baixa sindicalização, e como não raramente seus sindicatos são plenamente pelegos, Marinho sabe que a via das convenções e dos acordos coletivos, para a imensa maioria dos trabalhadores, dificilmente resultará em reduções de jornadas.
Ao fim e ao cabo, conjurar “acordos”, pessoais ou coletivos, para o tema do fim da escala 6×1 é simplesmente uma fuga do tema em si: nos acordos privados que podem ser realizados, afinal, pessoais ou coletivos, Marinho e Seif seriam a favor ou contra o fim da escala? Se seriam a favor, como parecem sugerir (ou querem fazer parecer), porque não defendem a mesma posição no grande acordo coletivo que é a Constituição? Por que a posição individual de um trabalhador frente seu patrão, ou a posição coletiva dos trabalhadores de uma empresa ou setor em relação aos empregados, teria mais legitimidade do que a posição coletiva dos trabalhadores em luta por tornar suas demandas uma lei? São desculpas esfarrapadas, as do ministro e as do senador.
Mas no panteão das desculpas há algumas mais complexas. Sem dúvidas, a preferida tem sido a da baixa produtividade da economia brasileira. Um exemplo está no artigo de Paulo Solmucci, presidente-executivo da Associação Brasileira de Bares e Restaurantes e membro do Conselho de Administração da União Nacional de Entidades do Comércio e Serviços, na Folha de São Paulo: “Muitos países desenvolvidos já implementaram jornadas mais curtas, entre 40 e 35 horas semanais. No entanto, essa redução foi viabilizada por altos níveis de produtividade e uma economia com renda per capita alta, permitindo que as empresas mantivessem sua competitividade mesmo com menos horas trabalhadas. No Brasil, as condições são diferentes. […] A diferença crucial […] está na produtividade: um trabalhador norte-americano, por exemplo, produz em uma hora o que um brasileiro leva quatro horas para alcançar. Esse fosso de produtividade limita a viabilidade de uma jornada reduzida sem impactos econômicos negativos.”
A produtividade – isto é, a relação do quanto é produzido em determinado tempo –, no entanto, não é um fruto caído da árvore celestial. Vários são os elementos que a compõem. Uma primeira divisão diz respeito aos aspectos quantitativos – isto é, quanto um trabalhador trabalhará – e os aspectos qualitativos – quão rápido pode produzir, qual será o nível de aproveitamento de sua jornada. Uma infinidade de elementos influenciam estes segundos aspectos, do nível de desenvolvimento da tecnologia empregada na empresa em questão às suas formas de gestão, passando por aspectos macroeconômicos.
A comparação do Brasil com outros países encontra uma barreira pelo fato de tratar-se de uma economia periférica que passa por um longo período de desindustrialização e que se torna cada vez mais dependente do setor agroexportador. Segundo dados da FGV, a produtividade no setor da indústria reduziu cerca de 5% entre 1995 e 2021. Já na agropecuária, houve um crescimento médio de produtividade de 5,6% ao ano durante o período (145%), o que não se refletiu em menores jornadas de trabalho, mas sim em menos empregos: em 2016, o setor empregava 5,1% (913 mil pessoas), e em 2022 emprega 2,5% (479 mil). É óbvio que um maior nível de produtividade estimula o crescimento de um determinado setor, mas a relação entre as duas coisas está, antes, no contrário: é o crescimento, ainda que potencial, de um determinado setor, sua capacidade de gerar lucros, que estimula seu aumento de produtividade. A produtividade da agropecuária cresceu porque fazia sentido para o setor investir nela; em mais tecnologia, melhores métodos de gestão, melhores insumos, maior escala, etc. E porque o setor teve dinheiro – inclusive por meio de amplas facilitações governamentais, como o Plano Safra e a isenção de tributos – para investir. De igual maneira, não é a redução na produtividade da indústria que levou à desindustrialização, mas antes o contrário: a desindustrialização leva inevitavelmente à diminuição da produtividade. Se o capital tem maiores chances de aumentar a si mesmo exportando soja, é evidente que é para lá que irá na forma de investimentos; o que significa que não será aplicado em aumento de produtividade na indústria. Inclusive porque esse processo é acompanhado, tendencialmente, por uma redução da competição no setor, também por isso diminui o estímulo ao investimento no aumento da produtividade. Assim, a redução da jornada laboral não é impossível “porque temos baixa produtividade” mas, ao contrário, tende a estimular o aumento da produtividade e, no que esse aumento de produtividade não alcançar, aumentar o emprego – o que em última instância aumenta a renda per capita no País, aumentando também, tendencialmente, os salários e, de novo, estimulando a produtividade.
Mas e no setor de serviços, onde está a maior parte dos trabalhadores submetidos à escala 6×1? Neste caso, segundo dados da FGV, o setor teve um crescimento de produtividade de 9,4% entre 1995 e 2022[1]. Uma eventual redução da carga máxima de trabalho de 44 horas para 40 horas significaria uma redução de 9,1% de horas trabalhadas; algo não só já compensado pelo aumento de produtividade no setor nestes anos como também muito distante do cenário apocalíptico de quebradeira geral pintado pelos opositores da redução. E aqui também haveria espaço para um aumento na produtividade por meio do investimento em tecnologia e – o que só é possível se o trabalhador tiver tempo à disposição – na capacitação do próprio trabalhador.
Por fim, há os impactos sobre os micro e pequenos empresários. Aqui a gritaria constitui uma tentativa política de recrutar esse efetivo contra as demandas dos trabalhadores, quando em verdade o que define o futuro das pequenas empresas é menos o trabalho de seus empregados e mais as condições oferecidas pelo governo e os fatores macroeconômicos para um aumento de escala. A maioria (73,4%, ou 14,82 milhões) dos CNPJs do Brasil são Micro Empresários Individuais (MEIs), figura jurídica que só pode contratar, no máximo, um funcionário – o impacto sobre a redução da jornada daqueles que não têm escala para contratar mais do que um funcionário certamente já seria limitado em si. Ocorre que destes 14,82 milhões, somente 133,8 mil têm um funcionário: 0,9% dos MEIs. Para os 99,1% dos MEIs, que trabalham literalmente por conta própria, a regulação da jornada de trabalho não terá, portanto, impacto negativo nenhum, e tendencialmente – pelo aumento de empregos em outros setores e decorrente aumento do consumo – terá um impacto positivo.
No que tange às Micro Empresas (MEs), que podem ter faturamento de até 360 mil reais por ano, a tendência de baixa empregabilidade se mantém: elas eram 7,4 milhões em 2022, e responsáveis por 9,9 milhões de empregos. Isto é, em média, 1,33 emprego por ME: um dado que demonstra que muitas micro empresas são só uma outra natureza jurídica de um trabalhador individual, sobre as quais os possíveis impactos negativos da redução da jornada de trabalho seriam, de novo, muito pequenos.
São nas empresas de pequeno porte (EPP – faturamento de 360 mil a 4,8 milhões), que têm em média 8,2 funcionários por empresa, e nas médias e grandes empresas, que abarcam respectivamente 11,3% e 47,1% dos empregos do Brasil (um total de 58,4%) que os impactos da redução da jornada de trabalho e do fim da escala 6×1 se sentirão; e estes setores, tendo vultosos lucros e facilitações governamentais, certamente poderão arcar com tais custos – inclusive por meio de ganhos em produtividade.
Não é o ganho proveniente dos sábados trabalhados que separa estas empresas da insolvência. Mas são incontáveis as perdas que significam estes sábados trabalhados aos trabalhadores. À medida que o debate sobre o fim da escala 6×1 avança, aparecem as inevitáveis comparações com a escravidão. Comparações muitíssimo válidas: segundo conta Rodrigo Goyena em seu Entre oligarquias, no século 19 a jornada de trabalho comum dos escravizados era de seis dias por semana, 12 horas por dia – o que, tomando-se em conta os atuais tempos de deslocamento, são muitas vezes plenamente equivalentes. Mas, embora válida, a comparação mais perfeita não parece ser entre o trabalhador de hoje e o escravizado de ontem, mas sim entre o patrão de hoje e o senhor de ontem, unidos tanto em sua concepção da superexploração como esteio imprescindível de seus empreendimentos como pelo seu humanitarismo: permitiam ambos, afinal, ao menos um dia de folga.
(*) Pedro Marin é fundador e editor-chefe da Revista Opera. É editor de Opinião de Opera Mundi, autor de “Aproximações sucessivas – O Partido Fardado nos governos Bolsonaro e Lula III”, “Golpe é Guerra – Teses para enterrar 2016”, e co-autor de “Carta no Coturno – a volta do Partido Fardado no Brasil”.