Sob pressão do mundo todo, diante da imensa quantidade de trabalhadores mortos durante as obras que possibilitaram que o maior evento esportivo do mundo acontecesse pela primeira vez na península arábica, uma cena na Copa do Mundo de 2022, realizada no Catar, chamou atenção: após vencer Portugal por 1×0, e se classificar para as semifinais da Copa, tornando-se o primeiro país africano e árabe a alcançar tal feito – antes, já haviam eliminado a Espanha nas oitavas de final – os atletas da seleção marroquina, conhecidos como Leões do Atlas, festejaram com bandeiras palestinas em campo. Apesar da tentativa das emissoras de TV de esconder tal feito, a icônica imagem logo se disseminou pela internet. Nas arquibancadas, os torcedores repetiram o feito, hasteando a bandeira do Marrocos e da Palestina em todas as partidas da seleção africana. O jornal Australian Jewish News descreveu a vitória dos marroquinos e a celebração de sua torcida de forma conflitante. Ao mesmo tempo em que relata comemorações em Israel, Cisjordânia e Gaza – algumas delas sofrendo forte repressão da polícia israelense –, a observação de Rafi Nidam, CEO do clube de futebol israelense SC Ashdod, sobre as comemorações, foi a de que “não é muito encorajador vê-los correndo para comemorar usando a bandeira palestina, mas não sei se isso é direcionado contra nós”. Outra imagem icônica foi a comemoração de palestinos, assentados no campo de refugiados de Aida, localizado nas proximidades da cidade de Belém. Naquele momento, era como se o Marrocos tivesse vingado os palestinos, “a vingança do povão”, como cantou Carlinhos Vergueiro.
A 3.355 km de Rabat, capital do Marrocos, encontra-se a cidade de Glasgow, capital da Escócia. As cores vistas no uniforme do Celtic Football Club, e nas arquibancadas do Celtic Park, fazem parecer que o clube não é dali, mas da Irlanda. Diferente de seu grande rival e inimigo mortal, o Rangers Football Club – com forte ligação com a coroa britânica e com o protestantismo –, o Celtic tem raízes irlandesas e católicas, fundado por Andrew Kerins, o irmão Walfrid, um marista[1]. O grande contingente de irlandeses na Escócia se explica pelo colonialismo britânico que devastou o país entre os séculos 19 e 20. Os fãs de futebol, atravessados por uma série de práticas violentas e coloniais que se espalharam pelo século 20, criaram uma consciência política que atravessaria suas próprias fronteiras, chegando ao movimento negro nos Estados Unidos e aos povos árabes, em especial os palestinos, que há mais de um século têm sido massacrado pelos interesses imperialistas. Essa solidariedade se demonstra nas arquibancadas escocesas, como nas guerras contra os torcedores do Rangers. É comum ver bandeiras, mosaicos e faixas em apoio à causa Palestina no “Paradise”, apelido dado ao Celtic Park por seus torcedores.
Para quem não acompanha futebol, esses dois casos podem parecer recentes, mas não é verdade. A ligação do Celtic, e em especial da torcida organizada Green Brigade com a causa palestina é antiga e forte, apesar de todo o boicote sofrido pelas torcidas, em completa contradição com a própria política de seus países e clubes.
Palestina e Irlanda têm algo que os une, ainda que indiretamente. Os dois países sofreram com o colonialismo europeu. A Irlanda, inclusive, foi um fato curioso para aqueles que vêem o mundo sob lentes essencialistas. Subjugados como uma raça inferior pelo Império Britânico, era comum ver, nas ruas de Londres e outras cidades da Inglaterra, placas com a inscrição: “No black, no Irish, no dogs” (Negros, Irlandeses e cachorros proibidos). Como pessoas brancas foram massacradas e exterminadas pelos britânicos, colocados como cidadãos de segunda classe? Essa pergunta gera confusão, mas não é difícil compreender que, como ferramenta de divisão e conquista, a racialização não tem uma forma universal, podendo alcançar maneiras distintas a partir de necessidade e distintas. Eventos como a Grande fome de 1845–1849 na Irlanda, durante a qual um milhão de pessoas morreram de fome e outro milhão imigrou para os Estados Unidos, Canadá, Escócia, e outros países[2], além da divisão da Irlanda em dois países, como foi feito na Coreia, se tornaram fatos esquecidos do colonialismo que adentrou a própria europa, como bem salientou Aimé Césaire. A Palestina também sentiu o punho de ferro do “império onde o sol nunca se punha”. Após o fim do Império Otomano, ocasionado pela derrota das Potências Centrais, o país passou para a administração do Mandato Britânico da Palestina, entre os anos de 1920 e 1948. Foi nesse período que o chamado nacionalismo judaico/israelense e palestino ganharam mais força. A péssima administração britânica, junto das confusas políticas da ONU no rescaldo do final da Segunda Guerra Mundial frente ao genodício judeu, foram dois dos fatores que ocasionaram a Revolta árabe de 1936–1939, a a insurreição judaica contra os britânicos na Palestina, e por fim, a Guerra Civil de 1947–1948 e a Guerra árabe-israelense de 1948, que desenharam o cenário em que a Palestina se encontra hoje, além de grande parte do Oriente Médio.
Esse histórico de lutas internas reverberam na cultura nacional de cada um desses países, por meio da música, da religião, e claro, do futebol, que, desde o início do século 20, tem sido usado como uma ferramenta política, tanto pelos regimes fascistas e as ditaduras, como pelos grupos de torcedores – na Europa e no mundo árabe chamados de Ultras –, descontentes com os rumos da política de seus países. Se para os autores Christopher Gaffney e Gilmar Mascarenhas o estádio é um espaço disciplinar – e isso pode ser observado no uso dos estádios como prisões pela ditadura chilena, ou o caso do Athlético-PR, com um presidente bolsonarista que usa a principal torcida organizada do clube como palanque político –, é certo que, de forma antagônica, a revolta das massas também se faz presente nesses espaços, como já discuti no artigo “Podem as massas torcedoras se rebelar?”. Os estádios não são neutros, como fica evidente no artigo “Estádio sem partido?”. Portanto, é interessante notar a mobilização de uma torcida pequena, não tão conhecida como as dos grandes clubes europeus, mas que tem protagonizado um apoio incondicional à libertação palestina das garras do sionismo.
Da Grande fome de 1845–1849 à Nakba: a irmandade perante o colonialismo
A Irlanda tem uma longa história, com os primeiros registros de assentamentos remontando a 8.000 anos A.C, mas foi somente em 1169 que a região foi dominada pelo Reino da Inglaterra, período histórico que nos interessa. Essa relação colonial foi marcada por uma série de revoltas, conflitos, e um verdadeiro genocídio étnico, com a Grande Fome da Irlanda se tornando o símbolo da era vitoriana (em alusão a Rainha Vitória) que poderia, facilmente, ser conhecida como uma das grandes genocídios da história moderna. Essa era se localiza numa fase de transição entre o capitalismo industrial e o monopolista. Mike Davis, historiador e grande pesquisador da era vitoriana, nos dá um panorama do que acontecia no chamado Terceiro Mundo, e, também, na Irlanda colonial[3]:
“Não estamos tratando, em outras palavras, de ‘terras famintas’ paradas em águas estagnadas da história mundial, mas do destino da humanidade nos trópicos no exato momento (1870-1914) em que seu trabalho e seus produtos eram arregimentados por uma economia mundial centrada em Londres. Milhões morreram, não fora do ‘sistema do mundo moderno’, mas justamente no processo de serem incorporados à força em suas estruturas econômicas e políticas. Eles morreram na era de ouro do capitalismo liberal”.
Outro historiador, Karl Polanyi, em seu livro A Grande Transformação, afirmou, sobre os ciclos de fome no Terceiro Mundo no final do século 19:
“A verdadeira origem das fomes nos últimos cinquenta anos foi o livre mercado de cereais combinado à falência das rendas locais”.
Os eventos ocorridos na Irlanda se repetiram também na Índia e China, países que, não por coincidência, também eram colônias da coroa britânica. O que Mike Davis argumenta é que, apesar de haverem diversos desastres naturais, como o El Nino, foram as políticas liberais da Rainha Vitória que ocasionaram os problemas de fome, ou que, pelo menos, poderiam ter de outra forma evitado grandes tragédias. Os chamados três ciclos de subsistência globais, ocorridos na segunda metade do reinado de Vitória, afetaram, também, o nordeste brasileiro, a Coreia, a Rússia, o Sudão e a Etiópia. Números apontam que, somados, durante esses três ciclos de secas, morreram de fome mais de 30 milhões de pessoas[4] num espaço de 26 anos.
Esse longo processo afetou a Irlanda de forma particular. Muitos movimentos pela independência do país surgiram, e uma guerra se abriu contra o reinado de Vitória. Já no século 17, ocorreu a Rebelião Irlandesa de 1798, contra o reinado de Jorge III da Grã-Bretanha. Inspirados pelo iluminismo, nas revoluções americana e francesa, os irlandeses buscaram romper o cordão que os ligava ao Reino Unido. Foram derrotados, e o fim da revolta ocasionou grande repressão, com a imposição do Ato de União de 1800, que dissolveu o parlamento irlandês e incorporou a Irlanda ao Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda.
A Revolta da Páscoa de 1916, encabeçada pelos Voluntários Irlandeses e pelo Exército Civil Irlandês, do grande socialista James Connolly, além de outros conflitos, como o Domingo Sangrento, foram alguns capítulos emblemáticos da resistência irlandesa, que ajudaram o país a alcançar a tão sonhada Independência formal, ocorrida em 1921, e com protagonismo do IRA (Exército Repúblicano Irlandes). Apesar de quase não haver registros, é certo que torcedores do Celtic integraram as fileiras do IRA durante a guerra de independência. Durante anos, o IRA promoveu uma luta aberta pela unificação com a Irlanda do Norte – que foi, de forma cínica, criada pela Inglaterra, para que, mesmo após a independência da Irlanda, pudesse continuar explorando o território, visto que 80% da produção industrial da ilha se encontrava ao norte, e sua posição geográfica era uma defesa natural do flanco oeste da Grã-Bretanha.[5] A independencia não significou liberdade total para a Irlanda, principalmente para a República da Irlanda, algo semelhante ao que ocorre na chamada Coreia do Norte, e, durante a maior parte do século 20, o Exército Repúblicano Irlandês combateu a política de divisão do Reino Unido por meio de atentados a bomba, guerrilha e outras formas de resistência. Em 2005, o IRA baixou as armas, mas isso criou um racha na organização, originando o Exército Republicano Irlandês Real e o Exército Republicano Irlandês da Continuidade, ativos ainda hoje.
É no rastro da história recente da Irlanda que podemos localizar a solidariedade de seu povo com a questão palestina. Mas essa política se originou de uma mudança brusca na análise dos nacionalistas irlandeses sobre a questão judaica e palestina. No início do século 20, alguns líderes republicanos, como Michael Davitt, viam no sionismo uma solução para o problema nacional judaico[6]. Isso mudou com o Plano Peel de 1937, o plano de partilha da Palestina liderado pelo governo britânico. O então primeiro-ministro da Irlanda, Eamonn De Valera, afirmou que o plano era “uma repetição amarga da divisão da Irlanda pelos britânicos 15 anos antes”.[7] Na criação do Estado de Israel, o país se absteve na votação da ONU. A Guerra dos Seis Dias, além da Guerra Civil Libanesa – onde 30 mil soldados irlandeses serviram como forças de paz, muitos deles assassinados pelo exército israelense –, acabaram quase que em definitivo com o apoio irlandês ao Estado de Israel.
A Irlanda foi o primeiro membro da comunidade europeia a reconhecer a Organização para a Libertação da Palestina (OLP) em 1980, e, ainda que defenda a solução de dois estados, o país vem sofrendo represálias pelo estado sionista, que, em maio de 2024, ordenou a retirada de seus embaixadores da Irlanda, em resposta ao apoio do país na criação de um estado palestino. Todo esse contexto faz com que na opinião pública e de diversos jornalistas, considerem a Irlanda como a nação mais pró-Palestina da Europa. Em entrevista para a CNN, a então embaixadora da Irlanda em Israel declarou:
“Este contexto histórico que o próprio povo irlandês suportou… eles sabem exatamente o que significa ocupação, colonização, opressão, desapropriação. Os irlandeses sabem como os palestinos se sentem quando agora vemos esse grau de fome”.
É sobre esse histórico apoio do estado irlandês à causa palestina, e da sua história em comum contra a ocupação colonial, que os torcedores do Celtic se apoiam, desde sua fundação, na solidariedade à causa palestina. O surgimento do Celtic Football Club se confunde com a própria história da Irlanda e do colonialismo. No ato de sua fundação, o irmão Walfrid declarou:
“Será criado um clube de futebol para a manutenção das mesas de jantar das crianças e dos desempregados”.
Green Brigade: o verde da esperança que unem Celtic e Palestina
A atuação de Walfrid se dava no contexto dos Maristas, uma ordem religiosa fundada na França, em 1817, cujo objetivo era educar e alimentar os mais necessitados. O Celtic seria então uma extensão desse projeto. Quando o clube foi criado, em 1887, a Irlanda ainda era uma colônia britânica, e carregava o sentimento de ódio diante de todos esses eventos trágicos, que permearam a sociedade irlandesa, em especial, dos torcedores do Celtic. Entre o ano de fundação do clube e a fundação do seu principal grupo Ultra, os torcedores do Celtic fortaleceram ainda mais a sua identidade irlandesa, muito por conta dos fundadores do clube e seus primeiros torcedores, apesar do mesmo se localizar na Escócia. As novas gerações de torcedores não necessariamente tinham origem na Irlanda ou no catolicismo, mas tomaram para si essa identificação, que se tornou cultural no clube.
Alguns grupos de torcedores foram fundados na segunda metade do século 20, mas foi somente em 2006 – um ano após o encerramento das atividades do IRA original, em 2005 – que surgiu a Green Brigade, cujas armas não eram os fuzis, mas as faixas, bandeiras e cânticos – cânticos, inclusive, em favor da luta armada pela unificação da Irlanda e o fim do imperialismo inglês. A Brigada Verde (Green Brigade) é o maior grupo Ultra do Celtics, e, como parte das poucas exceções no cenário Ultra das Ilhas Britânicas, se coloca como um grupo de esquerda, anti-racista e anti-fascista, algo evidenciado no site do grupo[8]:
“Com a história orgulhosa e única do Celtic com os valores especiais e ethos arraigados dentro deles, o apoio do Celtic sempre manteve uma reputação de esquerda: racismo e discriminação não seriam tolerados e você frequentemente verá demonstrações de solidariedade com causas da Irlanda à Palestina. Como tal, a Brigada Verde ser um grupo antifascista era bastante natural.”
Ainda que seja novo em relação aos demais grupos Ultra na Europa – os primeiros datam do início dos anos 1960, enquanto no Brasil, da segunda metade dos anos 1960 –, ele segue a tradição das arquibancadas verdes de Glasgow. Já nos anos 1980, a torcida do Celtic costumava entoar a canção popular irlandesa The Fields of Athenry, que se tornou um símbolo dos grupos políticos do país. Pete St John, o autor da canção, se tornou um ídolo dos torcedores do Celtic, ao retratar a Grande Fome Irlandesa por meio da música. Outros atos, como canções pró-IRA, sempre se fizeram presente nas arquibancadas do Celtic, mesmo com a famosa “política de comportamento ofensivo no futebol e comunicações ameaçadoras”, criada pelo parlamento escocês em 2012, que visava infringir infrações criminais relativas ao “comportamento sectário em jogos de futebol”. A política foi um completo fracasso.
Além de toda a militância contra o futebol europeu, que, sob a administração da UEFA, se tornou um cartel nas mãos do empresariado, e um grande mar de lavagem de dinheiro de monarquias do Oriente Médio e da própria Europa, salta aos olhos a atuação política do Green Brigade. Toda essa movimentação não passaria despercebida pelas autoridades, que, ao facilitarem e até cegarem os olhos frente à cada vez maior expansão do nazismo nas arquibancadas do velho continente, proíbem qualquer tipo de manifestação contra a causa do futebol popular. Mas não é apenas o nacionalismo irlandês, o apoio ao republicanismo “sem a participação do Reino Unido”, e até mesmo o apoio pela libertação da Escócia; a grande bandeira da brigada é o apoio à Palestina.
Num jogo contra o KR Reykjavik, em 2016, a UEFA puniu o Celtic em quase 9 mil euros, por conta das bandeiras palestinas que foram levantadas pela Brigada Verde. Um ano antes, em 2015, a UEFA já havia aplicado uma multa de 16 mil euros contra o clube, após seus torcedores protestarem contra a monarquia do Reino Unido. Em 2016, mais uma multa, dessa vez numa partida entre Celtic e Hapoel Beer-Sheva, clube israelense cuja torcida, UltraSouth, se declara apolitica.
A relação da Brigada Verde com o Celtic, como na maioria dos casos, é volátil. Numa entrevista para o Radical Terraces, um dos líderes da torcida falou sobre a opressão que o estado irlandês, e, algumas vezes, o próprio clube exerce sobre o grupo:
“Uma nova legislação surgiu em 2012, chamada ‘Offensive Behaviour at Football and Threatening Communications Act 2012’. Isso basicamente tornou ilegal ofender qualquer pessoa. O grande problema, no entanto, é que um policial pode decidir o que é ofensivo. Esperamos que esse ato seja revogado e fizemos campanha para isso. O período de revisão está chegando em breve.
Vários membros passaram por processos judiciais e há vários casos ainda em andamento no momento por causa do canto do Roll of Honour (uma canção em memória aos dez irlandeses que fizeram greve de fome em 1981).”
Por questões óbvias, para o Celtic, não é viável que o clube tenha um discurso abertamente pró-Palestina, contra as políticas da UEFA e a mercantilização do futebol, ainda que ele exista, em alguma medida. A quantidade de multas aplicadas ao clube demonstra que, financeiramente e politicamente, essa estratégia pode ser um suicídio – diferente de clubes menores, como o St. Pauli e o Livorno, que, pelo tamanho e alcance, puderam bancar, por muito tempo, o discurso e a política anti-capitalista. É nesse cenário que as relações entre o clube e a Brigada Verde estremecem, pois, diferente do Celtic, o grupo ultra não tem compromisso algum com a UEFA, nem com outras organizações. A repressão, para eles, é só um detalhe diante do ideal da torcida e das causas que ela defende, mesmo que isso custe a perseguição, e até mesmo uma tentativa, por parte do Celtic, de dissolver o grupo, em 2013.
A Brigada Verde resiste, e responde às perseguições com cada vez mais provas de sua fidelidade com a causa internacionalista. Em 2016, após mais uma punição ao Celtic devido ao comportamento dos seus torcedores, a Brigada organizou uma campanha que arrecadou 130 mil euros, destinada à assistência médica em Gaza, e para a criação de uma escola de futebol na cidade de Belém, no território ocupado da Cisjordânia. A campanha foi chamada de “Match the fine for Palestine” (Igualar a multa para a Palestina) – um trocadilho sobre a multa que o clube escocês recebeu –, e atraiu atenção do mundo, sendo respaldada pela comunidade de torcedores do Celtic:
“Em resposta a esse ato mesquinho e politicamente partidário do órgão máximo do futebol europeu, estamos determinados a fazer uma contribuição positiva ao jogo e hoje lançamos uma campanha para #matchthefineforpalestine.”
Um dos resultados dessa campanha foi a fundação do clube Lajee Celtic, informalmente conhecido como Aida Celtic, resultado da parceria entre a Lajee Center e a Green Brigade. Com o avanço do conflito entre Israel e a resistência palestina, o clube foi obrigado a fechar as portas, devido às incursões e bombardeios do exército israelense na região. Numa guerra de ocupação, não se matam apenas as pessoas, mas também a sua cultura – uma cultura viva e de resistência, que não busca apenas dar um pouco de vida às pessoas que estão constantemente sendo assassinadas, mas também reuni-las em prol de uma causa maior, e de lembrá-las de que, apesar de grande parte do mundo estar cego frente ao genocidio palestino, há muitos que o enxergem e colaboram para o seu fim.
Entre 2023 e 2024, a atividade da Brigada Verde aumentou, dentro e fora das arquibancadas. Num jogo contra o Športový Klub Slovan Bratislava, pela Liga dos Campeões da UEFA, bandeiras palestinas foram levantadas no Paradise, além de uma faixa com a inscrição “Vocês nunca estarão sozinhos” – famoso lema da torcida do Liverpool –, além de outra, com a frase “Eles podem oprimir vocês. Eles podem aprisioná-los, mas nunca quebrarão seu espírito”.
No dia 1 de outubro, um ano após os acontecimentos de 7 de setembro de 2023, o Celtic foi até a cidade de Dortmund, na Alemanha, para enfrentar o Borussia Dortmund, pela Liga dos Campeões da Uefa. Apesar da goleada de 7×1 sofrida pelo clube escocês, os seus torcedores deram outra demonstração de apoio à Palestina. Viajando em peso para a Alemanha – a torcida do Celtic é conhecida pelo grande apoio que dá ao clube fora de casa –, e superando uma proibição, de 2023, de frequentar estádios fora da Escócia, a Brigada Verde levantou as já tradicionais bandeiras palestinas, além de bandeiras do Líbano, em solidariedade à invasão do país pelo exército israelense, e os intensos bombardeios que a cidade de Beirute vem sofrendo; uma atitude covarde diante de um estado já deteriorado.
Esse caso da Alemanha é interessante, pois, numa mistura de culpa branca pelo Holocausto, ou talvez por uma guinada à direita na questão Palestina, uma guerra, por hora verbal, se criou entre a Brigada Verde e os Ultras do St. Pauli, famosos por sua orientação progressista, o que demonstra os limites de um esquerdismo que não se aprofunda nas questões latentes de nossa época.
Free Hamburg from Hipsters: a batalha pela memória e libertação de Gaza nas arquibancadas
Hamburgo entrou no mapa do futebol muito mais pela cena Ultra do que pelos seus clubes. Os Piratas, como são conhecidos os Ultras do St. Pauli, ficaram famosos pelo seu posicionamento político e pela cultura de arquibancada que desenvolvem na Alemanha. Não que sejam raros os Ultras de esquerda no país – ao contrário do Leste Europeu e de países como a Inglaterra –, mas o fenômeno cult que ronda o St. Paulo tomou proporções mundiais. No Brasil, diversos grupos da contracultura, como punks e skinheads de esquerda, além de coletivos de torcedores anti-fascistas, enxergam no clube de Hamburgo um caminho pelo qual todos os torcedores devem percorrer para tornar o futebol um espaço de integração e solidariedade. O posicionamento dos Ultras alemães tornou possível uma aproximação com a Green Brigade, além de outras torcidas europeias.
Em 2017, uma faixa estendida numa partida contra o Dynamo Dresden – a rixa entre ambos os clubes é longa, devido à grande presença de ultras de extrema-direita no clube de Dresden –, causou alvoroço. Nela, havia as mensagem: “Seus avós já queimaram por Dresden” e “Contra o mito da vitimização alemã”, em alusão ao Bombardeamento de Dresden, entre 13 e 15 de fevereiro de 1945, e aos movimentos ultranacionalistas na Alemanha, que ressurgiram após a queda do Muro de Berlim e que chamavam o bombardeio de “holocausto de bombas”.
Esse respeito que a torcida do St. Pauli conquistou foi pelo seu firme posicionamento contra o nazismo, o racismo e o ressentimento alemão diante do fim da Segunda Guerra. Mas, muito da base ideológica da torcida, como de outros grupos de esquerda na Alemanha, se baseia na tendência Anti-Alemã, que compreende um grande campo dentro do universo antifascista alemão. Dentre outras coisas, o movimento se coloca contra qualquer forma de nacionalismo alemão, ao suposto anti-semitismo da esquerda anticapitalista, e de uma defesa do Estado de Israel[9]. E é aqui que mora o perigo de certa política de esquerda.
Primeiro, é importante separar algumas coisas. A defesa de um estado israelense ou judeu deveria ser o mesmo que a defesa do estado de Israel como tal. Em que pesem os argumentos pela solução de dois estados, ou de um estado multiétnico, é importante analisar a natureza do estado de Israel como ele é, e não sobre os argumentos para a criação de tal estado. Por uma espécie de culpa pelo passado alemão, algumas alas dos Ultras de St. Pauli vêem nas manifestações da Brigada Verde uma manifestação anti-semitismo. Não é preciso ir longe para saber o quão enganadora é a tese do anti-semitismo como anti-sionismo. Diariamente, a mídia brasileira, norte-americana, e de vários países da Europa – além, é claro, da imensa maioria da mídia israelense –, cria e divulga essa confusão. A existência de grupos de sionismo de esquerda é outra tentativa de mascarar a natureza dessa ideologia. E foi nessa armadilha que uma parte dos Piratas caíram.
Durante uma partida contra o Schalke 04, em 31 de outubro de 2023, os torcedores de Hamburgo levantaram uma faixa com os dizeres: “De Gaza a Glasgow: Combata o anti-semitismo. Liberte a Palestina do Hamas”. A faixa fazia clara alusão aos eventos de 07 de setembro, e ao apoio da Green Brigade à resistência palestina. Esse evento criou um racha definitivo entre as duas torcidas, e, logo depois, a torcida do Celtic respondeu com uma outra faixa: “Libertem Hamburgo dos hipsters”.
A palavra hipster não foi usada por mero acaso. A popularização do St. Pauli trouxe consigo uma quantidade imensa de apoiadores que são, no máximo, progressistas. O momento atual pede mais do que isso; pede uma análise muito mais profunda do que as confusões causadas pela mídia que busca blindar o estado de Israel de seus crimes, e pelo sentimento de culpa que aflige as esquerdas europeias, pelo passado e presente colonial de seus países. Não basta usar um bottom com a imagem de Che Guevara ou uma camiseta com mensagens progressistas. É preciso muito mais do que isso. Por trás da suposta defesa dos ultras de St. Pauli em favor dos judeus, se encontra a covardia daqueles que temem por um passado do qual nem participaram, se esconde a culpa europeia pelos males que causou ao mundo, e se revelam as limitações do progressismo em capturar o movimento do real.
Em seu artigo Salvar o mundo e o St. Pauli do sionismo, o jornalista Júlio Pontes faz ótimas observações sobre como a sociedade alemã, e, consequentemente, parte do seu movimento de esquerda, lida com o fantasma do nazismo e do genocídio contra os judeus:
“Há na formação social alemã, portanto, um profundo envolvimento ao redor desse tema. O pesadelo anti-semita, com presença perturbadora na consciência social alemã, produziu posições esquemáticas e binárias, que uma vez mais levadas adiante se traduzem na cumplicidade de uma nova tragédia humanitária. Mesmo porque, como disse Breno Altmann, o Estado de Israel copia a cartilha dos carrascos antissemitas. A reserva moral sobre a qual os alemães e os mundo devem se apoiar está na esquerda judaica anti-sionista, com presença combativa nos acampamentos pró-Palestina em universidades estadunidenses.”
Num outro texto, intitulado Free Hamburg From Hipsters, Liam Kliment traz uma interessante informação sobre a relação dos Ultras do St. Pauli com a torcida de Tel Aviv Ultras Hapoel:
“Durante o ataque de 2014 a Gaza, membros do Ultras Hapoel participaram das ações militares, evidenciadas por posar em fotos com sua bandeira e marcar paredes com ‘Ultras Hapoel in Gaza’, bem como adornar tanques com bandeiras do Ultras Hapoel. Depois que os combatentes da resistência palestina conseguiram matar quatro membros do Ultras Hapoel, o clube esportivo prestou homenagem a eles em uma partida de futebol em Israel. […]
O Ultras Hapoel frequentemente usa imagens comunistas em suas exibições, como Fidel Castro, a foice e o martelo, e várias exibições explicitamente contra o racismo e o fascismo. Sua rivalidade com o Maccabi Tel Aviv, notoriamente o ‘clube de futebol mais racista’ de Israel, também pode dar à sua política mais peso do que eles merecem.”
Influenciados pelo chamado sionismo trabalhista, o Ultras Hapoel se dá o luxo de usar dos símbolos históricos do comunismo, como demonstra o artigo. Mas essa aparência é enganosa.. A amizade dos Piratas com essa torcida mostra parte da decadência do grupo frente ao que já foi um dia, e a defesa do que o Scottish Palestine Solidarity Campaign chamou de “ala esquerda da limpeza étnica”.
O St. Pauli, que teve origem obscura, aliada do nazismo e da burguesia alemã nos anos 1930, mas que foi resgatado e transformado por punks e pela classe trabalhadora antifascista da cidade, não pode se dar ao luxo de fazer vista grossa ao genocídio palestino, nem abafar uma ideologia de extrema-direita como o sionismo. Mas, o que parece haver, de fato, é uma luta de duas linhas entre os Ultras do St. Pauli, principalmente entre os torcedores locais e os torcedores fora de Hamburgo. Nessa luta, o que deve prevalecer é a causa palestina, o apoio aos judeus e israelenses que sofrem nas mãos do regime sionista, e uma aliança com aqueles que, sem medo do passado ou do futuro, estão lado a lado com a luta de libertação nacional palestina.
É preciso um compromisso maior: é entender que o movimento da história transformou as posições de colonizados e colonizadores. O anti-semitismo é um fato, que deve ser combatido como qualquer outra forma de discriminação. O direito dos judeus de viverem em paz, com seus costumes, religião e cultura, deve ser defendido. Porém, aos palestinos, o que tem sido ofertado são bombas, incêndios, massacres, redução cada vez maior da sua terra, e isso deve ser colocado como fator principal no conflito – que só pode ser chamado de conflito porque existe uma resistência palestina, essa mesma que os Piratas criticam. Quando ela não se faz presente, o que existe é um massacre étnico.
Para que o St. Pauli e seus Ultras voltem aos tempos de glória, é necessário que os hipsters deixem Hamburgo, e aprendam algo em Glasgow.