Enquanto Bashar al-Assad corria para sair da Síria, Israel já mobilizava suas forças armadas para aproveitar o vácuo de poder criado pela fuga do presidente. Após cinco décadas de um conflito de baixa intensidade entre os dois países, Israel viu uma oportunidade de mudar o cenário e a agarrou.
Até o dia 11, Israel havia atacado a Síria quase 500 vezes. Seu objetivo com esses ataques tem sido essencialmente destruir a capacidade militar da Síria, e nisso já foram bem-sucedidos. Reportagens da imprensa israelense afirmam que bem mais de 80% do armamento, navios, mísseis, aeronaves e outros suprimentos militares da Síria foram danificados ou destruídos.
Em essência, Israel deixou a Síria completamente indefesa.
Enquanto isso, Israel tomou a zona desmilitarizada estabelecida em 1974. Eles tomaram o restante das Colinas de Golã, especialmente o estratégico Monte Hermon, que Israel cobiçava por ser o ponto mais alto da área e um local ideal para a vigilância da Síria e do Líbano.
Poucos estão chamando isso do que de fato é: uma invasão. Uma invasão não provocada.
Não houve praticamente nenhuma reação de nenhum setor de Israel contra esse ato abertamente criminoso. Isso não é surpreendente, pois é de se esperar que até mesmo a esquerda israelense apoie a duvidosa justificativa de “segurança” para o ato.
O que é mais preocupante é a insuficiente reação de outros países. Muitos países árabes condenaram as ações de Israel, alguns até mesmo chamando-as de apropriação de terras. A França também condenou o ato e pediu que Israel se retirasse. A Alemanha fez uma advertência bastante branda.
Mas onde estão os pedidos de sanções, de congelamento de acordos comerciais e, principalmente, de vendas de armas para Israel, já que o país invade outro Estado soberano? De fato, onde está a palavra “invasão” em grande parte da discussão?
Não é de surpreender que os Estados Unidos tenham chamado essa agressão flagrante e totalmente não provocada de um “ato de autodefesa” de Israel. O conselheiro de segurança nacional Jake Sullivan disse que “o que Israel está fazendo é tentar identificar possíveis ameaças, tanto convencionais quanto de armas de destruição em massa, que poderiam ameaçar Israel e, francamente, ameaçar outros também, e neutralizar essas ameaças”.
Assim como no caso do genocídio em Gaza, mesmo quando há críticas contundentes, não há ameaças de consequências. Isso é verdade para os Estados Unidos, e também é verdade para os estados árabes que têm alguns meios de impor consequências a Israel: Jordânia, Egito, Emirados Árabes Unidos e Bahrein, sendo que nenhum deles sequer deu a entender que poderia considerar o rompimento de suas relações com Israel.
Ironicamente, o único país muçulmano que rompeu relações com Israel por causa do genocídio em Gaza foi a Turquia, que é, por sua vez, um aliado dos EUA que está invadindo a Síria após a queda de Assad.
O direito internacional e as normas de relações internacionais simplesmente não existem mais, nem mesmo na medida em que existiam antes.
Como já está claro que ninguém vai deter Israel, temos que perguntar quais são os objetivos de Israel na Síria.
Objetivos estratégicos iniciais de Israel
O relacionamento de Bashar al-Assad com Israel era complicado. Frequentemente, o ex-presidente se engajava em uma retórica anti-Israel, e sua dependência em relação ao Hezbollah e ao Irã para manter sua posição criou o que foi chamado de “Crescente Xiita”, que Israel via como um meio de levar armas iranianas ao Hezbollah no Líbano. Assim, Israel atacava com frequência instalações sírias, onde geralmente tinha como alvo as forças iranianas ou do Hezbollah. Eles faziam isso com tanta frequência que quase não era noticiado, muito menos contestado. Isso se tornou completamente normalizado em Israel e Washington.
Mas Assad também evitou ataques a Israel a partir do território sírio. Ele manteve a calma na zona desmilitarizada próxima às Colinas de Golã. Talvez isso não pareça estrategicamente importante, mas para Israel – que enfrentou ataques frequentes da Síria nos primeiros 25 anos de sua existência – era algo importante.
Para Israel, Assad não era um amigo, mas era visto como preferível às alternativas prováveis. Na visão de Israel, um Assad em apuros, enfraquecido, mas apoiado no cargo, limitava a Síria como adversário estratégico como uma mera ponte terrestre entre o Irã e o Líbano. É por isso que, independentemente do apoio de Israel às operações secretas da CIA para apoiar os rebeldes sírios, Israel não pressionou para que esses rebeldes fossem recrutados, armados e treinados além do que foram, apesar de alguns nos EUA pressionarem fortemente pela mudança de regime na Síria.
O Acordo de Desengajamento de 1974 congelou o conflito entre Israel e a Síria que havia se reacendido na guerra de 1973. Ele criou uma zona tampão desmilitarizada no lado sírio das Colinas de Golã, a maior parte da qual permaneceu sob ocupação ilegal israelense.
Esse acordo foi mantido até a última semana, um período de 50 anos, o que é bastante notável quando se considera tudo o que aconteceu na região desde então. Israel o rompeu após a queda de Assad.
A alegação israelense de que estava agindo para manter a área segura depois que o exército sírio abandonou seus postos no local é risível. A força de manutenção da paz das Nações Unidas, a UNDOF (UN Disengagement Observer Force) ainda estava lá, e não havia nenhuma ameaça na área.
A justificativa “legal” de Israel é ainda mais absurda. Os acordos não são feitos entre regimes, nem entre governos ou governantes específicos. Eles são feitos entre Estados. A alegação de Israel de que a queda de Assad significa que o Acordo de Desengajamento foi anulado não é apenas errada, mas também perigosa.
Por esse raciocínio, qualquer acordo entre dois países perde o sentido assim que o governo muda. Isso implicaria, apenas para citar um exemplo, que o tratado de paz de Israel com o Egito é inválido, pois foi feito com o governo de Anwar Sadat. Quando seu sucessor, Hosni Mubarak, foi deposto por uma revolta popular, o tratado de paz deveria ter sido anulado. É uma alegação maluca, e é duvidoso que Israel, e muito menos os Estados Unidos, concordariam com ela nesse caso, mas Israel tenta validar tal tese como séria quando a aplica na Síria. E os EUA os apoiam.
O objetivo de Israel ao invadir a zona desmilitarizada (DMZ) era capturar o Monte Hermon, o ponto mais alto da Síria. Trata-se de uma cadeia de montanhas que se estende pela fronteira entre a Síria e o Líbano, portanto, é um local estrategicamente importante, não apenas porque pode ocultar aeronaves voando baixo e alguns movimentos terrestres, mas, o que é mais importante, é o local ideal para espionar Damasco, grande parte do território sírio circundante e grande parte do Líbano. É um prêmio estratégico que Israel deseja desde que concordou em se retirar para o seu lado da DMZ.
Qualquer que seja o território que Israel concorde em ceder, se é que concordará com algum, o objetivo será, sem dúvida, manter o Monte Hermon sob ocupação.
Remodelando o Oriente Médio
Mas o Monte Hermon foi apenas o início dos objetivos de Israel.
Para a extrema direita israelense, representada pelo notório ministro das Finanças Bezalel Smotrich, a ideologia da “Grande Israel” coloca o expansionismo israelense em um contexto religioso. Mas para a maioria secular de Israel, seus projetos são muito mais fundamentados no simples domínio, visando um nível de hegemonia sem precedentes no Oriente Médio.
Durante o depoimento em seu julgamento no dia 10, o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu deixou clara sua visão da atual situação regional, dizendo: “Algo tectônico aconteceu aqui, um terremoto que não aconteceu nos 100 anos desde o Acordo Sykes-Picot”.
Claramente, Netanyahu vê esse momento como uma oportunidade de redesenhar todo o mapa político do Oriente Médio.
Essa é a ideia por trás das centenas de ataques que Israel lançou contra alvos militares sírios. Israel argumenta que isso está sendo feito por “razões de segurança”, apesar da completa ausência de qualquer ameaça proveniente da Síria. Os EUA apoiaram completamente esse argumento, apesar de ele ser transparentemente falso.
Embora Israel inicialmente tenha dado a entender que estava alvejando locais com armas químicas que ainda restavam depois que Assad foi forçado a destruir a maior parte de seu estoque, o bombardeio maciço rapidamente provou que o objetivo real era destruir completamente a capacidade da Síria de se defender, conforme mencionado acima. Então, agora que Israel conseguiu eliminar as capacidades militares da Síria, o que isso implica daqui para frente?
Uma coisa que está muito clara é que a Síria dependerá por muito tempo de outros países para sua autodefesa. Israel tem sido fundamental ao longo dos anos no apoio aos governantes árabes, mesmo quando eles não mantinham relações amigáveis (o exemplo mais conhecido é a ajuda de Israel à Jordânia na luta contra a OLP no massacre do Setembro Negro em 1970).
Dada a forma como o líder do Hayat Tahrir al-Sham (HTS), Abu Mohammed al-Jolani, tem se aproximado do Ocidente e evitado se manifestar contra a invasão de Israel, é bem possível que Israel se veja como um “parceiro silencioso” em potencial, apoiando um novo regime sírio de forma discreta, mas brutal.
Isso se alinha bem com a postura de Israel em relação às atividades da Turquia no norte do país, onde eles estão pressionando as Forças Democráticas Sírias (SDF) curdas apoiadas pelos EUA, bem como o apoio da Turquia ao HTS. Embora as relações entre Israel e Turquia tenham sido cortadas novamente por causa do genocídio israelense em Gaza, o presidente turco, Recip Tayyip Erdogan, é um pragmático quando se trata de Israel e dos curdos. Se ele vir uma oportunidade de trabalhar com Israel para controlar uma nova Síria e torná-la menos receptiva ao nacionalismo curdo, ele a aproveitará.
O que Netanyahu quer evitar a todo custo é uma Síria democrática e independente. Como acontece com qualquer Estado árabe, um Estado que reflita a vontade de seu povo apoiará a causa palestina. Isso não só é indesejável por si só, como também prejudicaria a narrativa israelense e ocidental que descreve o apoio ao povo palestino como apoio ao terrorismo e ao autoritarismo.
Mirando o Irã
Em última análise, a estratégia de Israel, como sempre, está centrada no Irã. No dia 12, o Times of Israel noticiou: “[…]a (Força Aérea de Israel) disse que, após mais de uma década de evasão das defesas aéreas sobre os céus da Síria durante uma campanha contra o fornecimento de armas do Irã ao Hezbollah, ela alcançou total superioridade aérea na área. Essa superioridade aérea sobre a Síria poderia permitir uma passagem mais segura para as aeronaves da IAF realizarem um ataque ao Irã, disseram os oficiais militares.”
Embora a reportagem não indique necessariamente que uma operação israelense visando as instalações nucleares iranianas seja iminente, ela reflete uma crença israelense, provavelmente correta, de que um ataque israelense ao Irã que seja suficientemente poderoso e sustentado para danificar ou destruir as instalações nucleares da República Islâmica, muitas das quais estão no subsolo, é muito mais viável agora.
O Irã parece ter reconhecido isso e está preocupado. Nas últimas semanas, o país respondeu aos sucessos militares israelenses e a uma resolução da França, Grã-Bretanha, Alemanha e EUA que acusava Teerã de não estar cooperando suficientemente com a Agência Internacional de Energia Atômica, fazendo a única coisa que pode: aumentando o enriquecimento de urânio.
Uma denúncia recente da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) alertou que o Irã estava enriquecendo a 60%, o que está próximo do limite de 90% necessário para uma ogiva nuclear. Isso motivou a reclamação dos países europeus e EUA.
No dia 13, o Irã aceitou um maior escrutínio da AIEA em suas instalações nucleares. Embora esse seja apenas um entre vários fatores para a decisão do Irã, é certo que a preocupação de Teerã em não dar a Israel uma desculpa para lançar um ataque foi um dos principais motivos para essa reversão.
O que isso significa é um regime de terror com o qual Israel, com total apoio dos Estados Unidos e de alguns de seus aliados europeus, está trabalhando para alterar completamente a face de todo o Oriente Médio. Um Estado sírio que dependeria das potências ocidentais – o que inevitavelmente significará Israel, mesmo que secretamente – para sua segurança é o primeiro passo nesse sentido.
Sem dúvida, Israel não tem um plano real para alcançar sucesso, mas está apostando em sua capacidade de continuar a viver pela espada, com total apoio americano.
(*) Tradução de Raul Chiliani