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A América Latina como reserva ideológica

Se analisarmos com rigor a matriz dos sentimentos comuns na América Latina, veremos que o neoliberalismo e o conservadorismo não são dominantes
Alfredo Serrano Mancilla
Encontro de líderes na 8a Cúpula da Comunidade de Estados Latino Americanos e Caribenhos (CELAC) em Kingstown, São Vicente e Granadinas. (Foto: Ricardo Stuckert / PR)

Existem duas maneiras de dizê-lo. A primeira é que Milei tem poucos amigos presidentes na América Latina. A segunda, que a maioria dos países da região não elege candidatos de extrema direita.

O ano de 2024 se encerra com a derrota da coalizão neoliberal no Uruguai. Todos os conservadores se uniram no segundo turno e ainda assim perderam para o bloco progressista. A Frente Ampla venceu as eleições.

Ainda em 2024, no México, outro emaranhado de siglas unidas pela doutrina neoliberal (PRI-PAN-PRD) sofreu uma dura derrota diante de uma proposta claramente de esquerda, que já estava no governo há seis anos.

Este caso foi especialmente significativo, pois a vitória do MORENA (Movimento Regeneração Nacional) se deu por mais de 30% de diferença. Andrés Manuel López Obrador saiu das eleições com um índice de apoio muito alto, e Claudia Sheinbaum chegou com milhões de votos. A maioria dos mitos hegemônicos se desfizeram. Não aconteceu a máxima “o partido no poder sempre perde”. A vitória ocorreu apesar do Poder Judiciário, da mídia e do poder econômico contra AMLO. Nada disso foi capaz de superar as convicções, as ideias, a gestão e a coragem. Tampouco as redes sociais.

O caso da Colômbia também é interessante: após décadas de governos conservadores, a vitória de Petro representa uma notável mudança ideológica em um enclave geopolítico fundamental para o Norte. O conjunto de reformas contra-neoliberais que estão em andamento (saúde, terra, educação, trabalho, impostos e pensões) foi discutido desde a campanha e uma grande maioria da população as endossou.

Se calcularmos o índice de quantos governos estão nas mãos da esquerda, a América Latina estará indo contra a maré do que está acontecendo em outras partes do mundo. 58% correspondem a presidentes que ganharam graças à proposição de ideias abertamente de esquerda, revolucionárias, progressistas, social-democratas ou nacional-populares. Em suma, todos eles são projetos originalmente não neoliberais, mesmo que alguns deles, na prática, tenham flertado demais com as ideias dos seus adversários (veja o exemplo peruano: o fujimorismo perdeu nas urnas e agora governa).

Também podemos analisar esse índice em termos de população. E o número é ainda mais impressionante: 79% dos cidadãos latino-americanos estão nas mãos de governos de esquerda (ou pelo menos votaram nessas ideias).

Essa característica latino-americana está fora da tendência atlântica (um termo usado com frequência nos textos do Conselho do Atlântico).

Por exemplo, nos Estados Unidos, o pêndulo está balançando há anos: antes era a vez dos democratas e agora é a vez dos republicanos. Trump venceu, e o fez com suas ideias e abordagens extremas, e também com suas formas extremas. Mas na América Latina, apenas Milei e, até certo ponto, Bukele, têm esse perfil. Bolsonaro também tem, mas é preciso lembrar que ele não conseguiu revalidar seu mandato no Brasil nas últimas eleições (e, a propósito, não se deve esquecer que ele ganhou quando Lula estava injustamente preso).

Essa característica latino-americana também não tem lugar na Europa. A balança da vitória está invertida: apenas 22% dos países são governados por ideias social-democratas. O restante é de direita e extrema-direita, com exceção das raras coligações em que há espaço para tudo.

Esses dados objetivos fazem com que seja aconselhável não cair na armadilha usual do “copiar e colar”. Em outras palavras, não é correto considerar que o que acontece na Europa e nos Estados Unidos é o mesmo que acontece na América Latina. Nunca caia na tentação de importar “marcos”.

O “mantra” que a extrema-direita está promovendo não é verdadeiro na América Latina.

Não é verdadeiro em termos eleitorais, mas também não é verdadeiro em termos político-ideológicos.

Se analisarmos com rigor a matriz dos sentimentos comuns na região, veremos que o neoliberalismo não é dominante. A relevância do setor público nos direitos básicos (educação, saúde) ainda é vigente. As ofertas privatizadoras em setores estratégicos também não são bem-vindas. A ideia de “igualdade de oportunidades” é quase sempre preferida à doutrina individualista do “cada um por si”. Alguns agentes privados, como os bancos e a mídia, têm uma imagem altamente negativa. O feminismo é cada vez mais visto como uma forma legítima de luta pela igualdade. As políticas sociais são vistas como necessárias para garantir uma vida digna para aqueles que têm menos. As políticas fiscais que tributam os mais ricos são amplamente apoiadas.

Isso significa que atualmente não há disputa com outras ideias abertamente conservadoras? De forma alguma. Tudo está em disputa. Há uma luta constante para impor as matrizes ideológicas e o senso comum. Mas, nessa batalha, presumir que a direita já ganhou o jogo na América Latina, o que não é o caso no momento, é só um primeiro passo para uma derrota futura.

(*) Tradução de Raul Chiliani

CELAG Centro Estratégico Latinoamericano de Geopolítica

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