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Ilan Pappé: “Não esperava esse nível de indiferença europeia em relação à Palestina”

Um dos mais respeitados historiadores israelenses, Ilan Pappé fala do genocídio em Gaza, depois de ter tido de deixar Israel pelas ameaças que sofreu
Ignasi Franch
O historiador israelense Ilan Pappé, autor de "A limpeza étnica na Palestina". (Foto: Hossam el-Hamalawy / Flickr)
O historiador israelense Ilan Pappé, autor de “A limpeza étnica na Palestina”. (Foto: Hossam el-Hamalawy / Flickr)

O historiador israelense Ilan Pappé (Haifa, Israel, 1954) é conhecido por suas críticas ao sionismo e aos terríveis efeitos da ocupação da Palestina, temas aos quais dedicou o livro A Maior prisão da Terra (2017, sem edição brasileira). Pappé também afirma que o movimento palestino não é terrorista, mas anticolonial. Os obstáculos para expressar livremente suas teses em seu estado natal, juntamente com as ameaças de morte que recebeu, levaram-no a se mudar para o Reino Unido. Lá ele leciona e continua a escrever livros como o recém-lançado Uma breve história do conflito israelense-palestino (2025, sem edição brasileira).

O tamanho de “Uma breve história do conflito israelense-palestino” é uma aposta política? Você estava procurando aproximar o conteúdo do maior número possível de leitores?

Sim, esse é o principal motivo [para um livro curto]. Acho que as pessoas não estão satisfeitas com a extrema brevidade das matérias de jornal, com sua falta de contexto, mas, ao mesmo tempo, também não querem ler livros muito longos. Talvez elas estejam procurando algo intermediário e eu pensei em um formato que fornecesse mais conteúdo, sem forçá-las a ler quinhentas páginas.

No início do livro, você fala sobre a discriminação do Império Britânico em relação a uma Palestina que não apenas sofreu a interferência geopolítica usual, mas também teve sua soberania negada na descolonização. Seria isso uma espécie de pecado original que impulsiona todo esse conflito?

Em geral, sim, mas é preciso lembrar que essa não foi apenas uma decisão britânica, mas europeia. Não permitir que os palestinos tivessem um futuro, afirmando que seu país não lhes pertencia mais, foi visto como a melhor maneira de resolver séculos de antissemitismo: criar um Estado judeu europeu fora da Europa. Essa era uma ideia imoral, porque impunha um Estado europeu ao povo nativo, e era uma ideia impraticável, porque claramente só poderia ser alcançada e mantida pela força. Depois de mais de cem anos, os palestinos ainda não aceitam que seu país não lhes pertence. Muitas pessoas no mundo árabe também não acreditam que isso seja correto, moral ou justo. E parece que cada vez mais pessoas em todo o mundo estão começando a entender a magnitude do problema. Eu acrescentaria que também se tratava de um projeto ilegal, mas naquela época não havia lei internacional.

Você fala de interlocutores hipócritas nas negociações de paz, os Estados Unidos e a União Europeia, que permitiram que a colonização prosseguisse por meio de uma política de fait accompli (fatos consumados). O deslocamento geográfico e a eliminação física sempre fizeram parte do projeto israelense?

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Acho que isso é algo que se desenvolveu com o tempo. A primeira ideia de transformar a Palestina em um estado judeu veio de setores extremistas do cristianismo evangélico que acreditavam que o retorno dos judeus à Palestina precipitaria o retorno de Jesus Cristo, o retorno dos mortos e o fim dos tempos. Esse primeiro impulso era teológico, mas se encaixava perfeitamente nos interesses imperiais. No século 19, a Europa queria expandir seus territórios e sua influência, então usaram essa ideia cristã para justificar a tomada de controle do território pertencente ao Império Otomano. Quando surgiram judeus que queriam ir para a Palestina, isso pareceu perfeito para a Europa, pois serviu para expandir o poder colonial. Após a Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos assumiram o lugar do Império Britânico.

Supunha-se que entraríamos em um novo mundo com as Nações Unidas.

Sim, um mundo em que o colonialismo e a limpeza étnica eram inaceitáveis. Mesmo assim, os Estados Unidos apoiaram esse projeto. Foram muito desonestos em seu apoio, mas não é o único lugar em que esse governo cometeu atos terríveis em nome da democracia: Indonésia, Malásia, Filipinas, Vietnã, América Central… Não há nada de novo nessa hipocrisia de defender um projeto porque ele é supostamente democrático e representa os valores americanos, quando não é, e responde apenas a interesses econômicos.

 Leia também – Um arqueólogo quis provar que o Sul do Líbano era israelense: morto pelo Hezbollah, não encontrou evidências 

Uma das coisas que chama a atenção neste século de desenvolvimento da colonização da Palestina é a aparente ausência de inflexões. Passamos por períodos de hegemonia social-democrata e neoliberal, contextos diferentes que não parecem ter tido muita influência sobre os acontecimentos na Palestina. Qual é o motivo dessa aparente inexorabilidade?

Antes desse último livro, escrevi Lobbying for Zionism on both sides of the Atlantic (“O lobby do sionismo dos dois lados do Atlântico”, em tradução livre), que, infelizmente, é um livro muito longo. Ele é tão longo porque eu queria explicar por que o projeto sionista tem sido bem-sucedido há tanto tempo.

O sionismo exerceu muita pressão no Reino Unido e nos EUA. Ele também exerceu pressão no restante da Europa, mas isso é menos importante. Quando comecei o livro, entendi que é difícil fazer com que um grupo de lobby funcione bem. Depois de um século, no entanto, ele pode funcionar perfeitamente bem. É impressionante como qualquer político americano ou britânico que tenha o poder de mudar as coisas em Israel ou na Palestina foi impedido de fazê-lo por medo de que o lobby sionista acabasse com sua carreira. Essas organizações deixam claro para cada político, desde o início de sua carreira, que se ele não tomar as posições que elas defendem, elas apoiarão seu rival. Elas se aproveitam do sistema democrático que obriga o político a ser constantemente reeleito.

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Muito antes do famoso AIPAC (American Israel Public Affairs Committee), o poderoso lobby americano, as mesmas táticas eram usadas. Eles formam um lobby muito poderoso, mas um lobby só é eficaz quando trabalha em um terreno fértil. O Ocidente é islamofóbico, orientalista e também antissemita em alguns pontos. Portanto, foi fácil conseguir uma posição contra uma sociedade que é composta em sua maioria por muçulmanos e faz parte do mundo árabe. Era um alvo fácil: o que você prefere, os judeus ocidentais que são leais ao Ocidente ou os árabes e muçulmanos sobre os quais você já não tem uma opinião muito boa?

Os grupos lobistas não só foram eficazes em garantir a fidelidade política, mas também em cultivar um clima de opinião pública que castiga duramente a dissidência. O senhor mesmo teve de deixar seu país.

Sim, é verdade: parte do que entidades desse tipo fazem é intimidar, aterrorizar, para garantir que você e outros como você não ousem discordar. A AIPAC às vezes intervém mesmo quando Israel não pede. Ela não faz isso com nenhum objetivo específico, apenas para demonstrar seu poder.

Muitas vezes há uma tendência de normalizar o passado, como se o que aconteceu fosse a única coisa que poderia ter acontecido, mas em seu livro você fala sobre momentos que talvez pudessem ter mudado as coisas. Por exemplo, o Império Britânico redigiu um livro branco de contenção ao colonialismo sionista em 1930, mas houve uma retração posterior após um trabalho de lobby….

A história está repleta de pontos de inflexão, momentos em que as coisas poderiam ter acontecido de outra forma. Geralmente, essas oportunidades surgiram porque havia pessoas que pensavam de forma diferente. Quando esses pontos de virada não se concretizam, isso significa que as pessoas que pensavam de forma diferente não tinham poder suficiente na época. Esperemos que da próxima vez elas tenham. De certa forma, a situação na Palestina estará alinhada com a saúde democrática do mundo. Se houver mais democracia no mundo, a situação será melhor para a Palestina. E se houver menos democracia, os palestinos sofrerão muito.

Em seu livro, você explica sua ideia de que há dois Estados paralelos operando em Israel, que você chamou de Estado de Israel e Estado da Judeia. Você poderia explicar brevemente essa dualidade?

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Sim, o estado da Judeia foi formado em torno de assentamentos de colonos e tem uma visão teocêntrica do país. Décadas atrás, ele ocupava uma posição marginal, mas nos últimos vinte anos cresceu em poder, em parte graças a alianças com governantes como Benjamin Netanyahu, que tem seu próprio projeto. Além disso, esse Estado judaico conseguiu ganhar cada vez mais peso no exército, na polícia, nos serviços de inteligência… Aparentemente, a única coisa que resiste a ele é o aparato judicial, mas pode acabar controlando-o também. O Estado de Israel é a antiga Israel trabalhista, secular, que garante certas liberdades a seus cidadãos judeus.

O ponto em comum entre eles é a rejeição do povo palestino?

Basicamente, sim, mas isso não é suficiente para unir posições com tantas diferenças. Muitas pessoas pensaram que os ataques do Hamas e a guerra aumentariam o senso de unidade nacional, mas não foi o que aconteceu.

O genocídio subsequente tampouco parece ter despertado muitos protestos…

Não, porque não há debate sobre a colonização. Ambos os grupos estão comprometidos com ela. Lembre-se de um momento recente de conflito em Israel: as manifestações contra a reforma do judiciário. Os participantes foram orientados a não levar faixas alusivas à Palestina. Não há debate sobre colonização em Israel. Os conflitos entre o Estado de Israel e o Estado da Judeia são internos.

Filósofos como Éric Sadin acreditam que a forma como a digitalização foi realizada contribuiu para eliminar a experiência de um mundo comum que nunca existiu plenamente, mas que parece cada vez mais distante. A magnitude do genocídio palestino poderia ter sido algo que uniria a rejeição para além das fronteiras e das circunstâncias da vida, mas isso não está acontecendo…

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Para isso, é preciso muita gente nas ruas. Estou pensando nos acampamentos nas universidades americanas, por exemplo. Telefones celulares e computadores também são úteis, mas eles realmente funcionam quando há pessoas nas ruas se manifestando.

E como sua percepção evoluiu durante esse ano e meio de violência extrema? Você achava que algo mais aconteceria, que haveria respostas mais determinadas ao genocídio?

Infelizmente, não fiquei surpreso com a violência cometida pelo Hamas em outubro de 2023. Tampouco fiquei surpreso com a reação de Israel. E não esperava muito do governo dos EUA. Mas tenho de admitir que não esperava essa magnitude de indiferença europeia em relação ao que está acontecendo na Palestina. A indiferença dos governos europeus, da mídia europeia… Sei que há protestos, que há solidariedade, mas parece que as mobilizações estão longe de influenciar aqueles que implementam as políticas. Por enquanto.

Outro dia entrevistei um documentarista palestino, Kamal Aljafari, e ele declarou que a situação na Palestina é o ponto principal da situação no mundo. Isso me parece estar em sintonia com o que você disse anteriormente: que a situação na Palestina estaria relacionada à saúde da democracia no mundo.

É isso mesmo. A situação na Palestina está relacionada ao que está acontecendo. E o que está acontecendo também cria uma lacuna de confiança do Sul global com relação ao Norte global. As pessoas do Sul percebem que não podem confiar que a legalidade internacional será mantida se é permitido que algo assim ocorra.

Já houve outros momentos importantes de corrosão da confiança na comunidade internacional. A morte de Lumumba no Congo pós-independência e outros exemplos de interferência geopolítica extrema do neocolonialismo, ou a “guerra preventiva” contra o Iraque. Estamos vivendo um momento histórico de deterioração?

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Sim, mas ao mesmo tempo sou otimista. Em minha análise, vejo sinais de uma mudança de ciclo. Não é algo que acontecerá rapidamente, pode levar alguns anos. E é terrível explicar algo assim para pessoas que estão sofrendo tanto em campo, como na Palestina, que não podem esperar, que precisam de soluções imediatas.

Sua dose de otimismo triste pode ser uma surpresa diante da proliferação de governantes abertamente sociopatas como Trump ou Duterte. Também podemos pensar que estamos diante de um futuro em que a remoção da humanidade de um povo inteiro poderia ser reproduzida em outro lugar….

É importante pensar que a história não é linear, não fica cada vez pior, cada vez pior, cada vez pior. Há ciclos. Agora estamos vendo o sucesso de políticos populistas, mas acho que são políticos que não têm competência. Eles não só não estão preparados para lidar com os grandes problemas do mundo que exigem soluções internacionais, como o aquecimento global ou a migração, mas também não estão preparados para lidar com as questões internas de seus países e suas economias. Acredito que a mudança de ciclo de que estou falando pode estar próxima.

El Salto El Salto é um meio de comunicação social autogerido, horizontal e associativo espanhol.

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