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Guatemala: tensões sociais com horizonte de mudança?

A reedição dos protestos de 2015 na Guatemala levará a mudanças? A pandemia, os furacões e o Pacto de Corruptos farão diferença?
A reedição dos protestos de 2015 na Guatemala levará a mudanças? A pandemia, os furacões e o Pacto de Corruptos farão diferença? – Por Mariela Pinza e Nery Chaves García | CELAG – Tradução de Rebeca Ávila para a Revista Opera
(Foto: Surizar)

A pandemia de Covid-19 e a passagem dos furacões Eta e Iota não impediram a população guatemalteca nas denúncias e mobilizações contra o Orçamento 2021 aprovado pelo Congresso. Além disso, esta demanda se aglutina à exigência pela renúncia do presidente Alejandro Giammattei e a saída do Pacto de Corruptos do Congresso, um ordenamento político instaurado pelo ex-presidente Jimmy Morales após a renúncia do presidente Otto Pérez Molina em 2015. 

O clamor contra a corrupção, a expropriação e abandono das complexas situações socioeconômicas que a população enfrenta cotidianamente lembram as imagens de 2015. Será, porém, que esta é uma crise de legitimidade ou poderá levar à destituição de Giammattei e outros funcionários? E, em um cenário de destituições, algo mudará na Guatemala? Este texto trata das recentes tensões políticas na Guatemala. 

O conflito: o falido Orçamento 2021

A expropriação estrutural que a população tem enfrentado resulta em um terreno fértil para o descontentamento com o orçamento aprovado pelo Congresso para 2021. Em 2019, a vulnerabilidade da população na Guatemala já era dolorosa: a pobreza chegava a 48,6% e 65,3% da população pertencia ao setor informal da economia. Da mesma forma, de acordo com o Instituto Nacional de Estatística (INE), a cesta básica em fevereiro chegava a colossais 3543 quetzales (460 dólares), valor superior ao salário mínimo, que nas atividades não agrícolas é de 400 dólares, nas agrícolas é de 390 dólares e nas exportadoras e maquiladoras é de 370 dólares. Segundo o Banco Interamericano de Desenvolvimento, a Guatemala tem a sexta taxa mais alta de desnutrição crônica no mundo e a mais alta na América Latina.

Todas estas condições se agravaram com o surto pandêmico de Covid-19; estima-se que em 2020 a pobreza chegue a 50,9%. Em 27 de novembro, a Guatemala tinha 121.132 casos confirmados acumulados de Covid-19 e 4.141 pessoas falecidas registradas, com uma taxa de mortalidade de 24,6. A gestão da pandemia veio acompanhada de denúncias de corrupção, desvio de fundos e, sobretudo, improvisação por parte do governo. Além disso, a passagem dos furacões Eta e Lota afetou 350.000 pessoas.

O neoliberalismo vigente que lança a população que habita na Guatemala à migração forçada ou à sobrevivência – junto com a alta insegurança – é um terreno fértil para o descontentamento provocado por um orçamento claramente antipopular que foi aprovado pelo Congresso. Na madrugada de 18 de novembro, 115 de 160 legisladores e legisladoras aprovaram o orçamento que que regerá o próximo ano. Algumas das estipulações que estimularam o descontentamento foram: 1) uma importante alocação para o serviço da dívida; 2) os Conselhos Departamentais de Desenvolvimento, pela primeira vez, lidarão com um orçamento duas vezes maior que o dos anos anteriores*; 3) ausência de mecanismos de controle da alocação discricionária de recursos do Estado a entidades sem fins lucrativos; 4) falta de transparência na alocação e distribuição dos fundos de resgate Covid-19 aprovados pelo Congresso; 5) desfinanciamento de programas sociais: para a luta contra a desnutrição infantil, saúde, educação etc.; 6) aumento do orçamento ao Parlamento Centro-Americano; e 7) aumento do orçamento do Congresso.

Diante do descontentamento social, o vice-presidente Guillermo Castillo pediu que Giammattei vetasse o orçamento e renunciasse junto a todos aqueles funcionários que faltassem às suas tarefas. A distância entre Castillo e Giammattei tem estado presente desde as eleições em 2019; no governo, Castillo tem estado em desacordo com as tensões geradas com o Poder Judicial e a condução sobre a pandemia. 

Apesar dessas críticas, o vice-presidente Castillo não está fora das elites governantes da Guatemala. Ele forma parte de um dos setores empresariais do Comitê Coordenador de Associações Agrícolas, Comerciais, Industriais e Financeiras (CACIF). Nesse sentido, as fraturas internas do governo poderiam se estender ao setor empresarial e corresponderiam a conflitos dentro da direita.

Para pressionar, foram convocadas mobilizações em distintos setores do país no dia 21 de novembro. Na capital, Ciudad de Guatemala, ocorreram enfrentamentos com a polícia após a suposta queima do Congresso: foi encontrado material inflamável dentro do edifício exatamente nos lugares que foram queimados, o que gera suspeitas em relação aos verdadeiros responsáveis pelo ato. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) rechaçou a repressão, e o vice-presidente Castillo pediu uma investigação sobre as responsabilidades do governo: 37 pessoas foram presas, entre elas documentaristas e jornalistas. O procurador de Direitos Humanos, Jordán Rodas, também se uniu às denúncias e exigiu a destituição do ministro do Interior, Gendry Reyes.

Por sua parte, Giammattei convocou a Carta Democrática da OEA e anunciou o início de um processo de diálogo com o beneplácito de Luis Almagro. Na noite de 25 de novembro, após uma sessão de muita tensão e com 121 votos a favor, 24 contra e 15 ausentes, o Congresso aprovou o arquivamento do Orçamento 2021 e os empréstimos com o Fundo Monetário Internacional que os financiava (594 milhões de dólares). O Executivo deve formular uma nova proposta que deveria ser aprovada antes do dia 30 de novembro, caso contrário o orçamento de 2020, que aumentou pela pandemia, prevaleceria.

Apesar da retirada do orçamento, as mobilizações continuam. As demandas pela renúncia de Giammattei seguem de pé e setores mobilizados mais radicais demandam um processo constituinte que emane da pluriculturalidade que existe na Guatemala. Enquanto isso, Giammattei se refugia na repressão e no Pacto de Corruptos.

Concentração, expropriação, o Pacto de Corruptos e o fastio

As mobilizações sociais têm sido a expressão de tensões e conflitos em uma Guatemala cooptada por amplas redes de poder e máfias conhecidas popularmente como o Pacto de Corruptos. O Pacto corresponde ao ordenamento político gerado através da figura do ex-presidente, Jimmy Morales, um outsider que conseguiu chegar ao Executivo após a renúncia do binômio presidencial Pérez Molina-Baldetti, em 2015.

A renúncia de Pérez Molina e Baldetti ocorreu através de importantes mobilizações sociais que a reivindicam após conhecer as redes de poder e os altos níveis de corrupção que governavam o país. Toda essa trama veio à tona graças às investigações judiciais a cargo do Ministério Público, encabeçadas por Thelma Aldana e com contribuição da Comissão Internacional contra a Impunidade na Guatemala (CICIG).

Nesse sentido, o Pacto de Corruptos se converteria em uma estratégia de blindagem frente ao Poder Judicial e a CIG, que resultou muito benéfica para o governo e as máfias. Consequentemente, Morales perseguiu politicamente a CICIG até conseguir sua expulsão antes do fim do seu mandato, e tudo isso com a aprovação do Exército guatemalteco.

A procuradora-geral também foi perseguida, chegando ao ponto de ficar fora das eleições de 2019 e ser encaminhada ao exílio. Jimmy Morales, reconhecido como um dos presidentes mais impopulares, ainda está impune: desde janeiro ocupa uma cadeira no Parlamento Centro-Americano.

Nesse mesmo mês, Alejandro Giammattei, do Partido Vamos, assumiu a Presidência da Guatemala. No segundo turno das eleições obteve apoio de 57,95% da população, frente a uma abstenção de 61,41%. O abstencionismo foi o vencedor claro desta corrida eleitoral e o mais alto na história do país.

Já no governo, Giammattei negociou com as bancadas do Pacto e conseguiu posicionar Allan Rodríguez, do partido oficialista, na Presidência do Congresso por dois anos consecutivos. Mesmo assim, ainda não cooptaram completamente o Poder Judicial, confrontação que tem estado na vanguarda do governo de Giammattei: o Congresso vem dificultando as eleições de magistrados da Corte Suprema de Justiça (CSJ), Corte de Apelações e outros tribunais da mesma categoria desde 2019. No mês de outubro o atraso completou um ano.

De todos os atrasos, o que tem recebido especial atenção e disputa é o da Corte de Constitucionalidade (CC). O mandato da CC expirou em 2019, e em 2020 a Corte se deparou com a falta de três magistrados: Consuelo Porras foi nomeada procuradora por Jimmy Morales, o magistrado Bonerge Mejía faleceu, e Neftaly Aldana adoeceu. Diante da suposta preocupação de que a CC poderia não funcionar, Alejandro Giammattei, a Câmara de Indústria da Guatemala, a Câmara do Agro e o Comitê Coordenador de Associações Agrícolas, Comerciais, Industriais e Financeiras (CACIF) pressionaram a CSJ para nomear magistrados.

Após a pressão, a CSJ nomeou Roberto Molina Barreto como magistrado e Jorge Rosales como suplente da CC. Molina Barreto foi magistrado da CC em duas ocasiões anteriores: foi quem decidiu a favor do ditador Efraín Ríos Montt no julgamento por genocídio e foi candidato à vice-presidência junto a Zury Ríos, filha do ditador, em 2019. A candidatura foi barrada, porque pessoas ligadas ao passado ditatorial são consideradas ilegais na Guatemala. Devido ao seu longo histórico, distintas entidades apresentaram recursos para reverter a eleição de Molina Barreto. As resoluções ainda não ocorreram.

Paralelamente à eleição de Molina Barreto, o Congresso quis que Gloria Porras (presidente da CC) e o magistrado Francisco de Mata Vela fossem levados a julgamento por outorgar um recurso para barrar um julgamento anterior. Este processo foi interrompido pelo procurador dos Direitos Humanos, Jordán Rodas, que tramitou um outro recurso. Ambas instâncias representam uma quebra, não muito profunda, na cooptação estatal do Pacto de Corruptos.

Os cenários para uma mudança real na Guatemala são complexos, quase impossíveis ao considerar a instalação do Pacto de Corruptos no Estado, que abarca o plano legislativo, executivo, militar e, em menor medida, o judicial. A oposição é minoria e ainda não há uma liderança clara que canalize o profundo descontentamento com a gestão de Giammattei, cuja administração chega muito desgastada ao fim do seu primeiro ano de governo.

Ainda não é possível dimensionar o alcance do descontentamento, e as mobilizações continuam; no entanto, não é claro se as mobilizações conseguirão alcançar um contexto parecido ao de 2015. A pergunta sobre se esta crise política corresponde a uma crise de legitimidade ou de hegemonia permanece em aberto.

* – Medida controversa, já que estas instâncias têm servido como porto para acordos entre Conselhos e Deputados.

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