Apesar de assinar o acordo de paz de 2016 que levou ao fim uma guerra que se arrastava por mais de 50 anos com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC), o establishment colombiano, incluindo o governo de direita, se recusou a implementar os termos do acordo.
Ao invés disso, o Estado e a comunidade empresarial viram a paz como uma oportunidade econômica: com a maior ameaça à acumulação capitalista fora do jogo, os territórios até então controlados pelas FARC se tornaram as veias pelas quais as corporações multinacionais tem tentado se expandir, através de indústrias que têm um grande impacto sobre as terras – agora desprotegidas – e aqueles que vivem delas.
Mineração, exploração madeireira, indústria petrolífera, extração de óleo de palma, privatização de fontes de água, caça e narcotráfico têm devastado antigos redutos das FARC, expulsando milhões de camponeses de suas casas para as favelas da Colômbia, onde poucos empregos e pouca ou nenhuma segurança social os aguardam.
Ao mesmo tempo, mais de 1200 líderes de movimentos sociais, especialmente sindicalistas e ex-combatentes das FARC, foram mortos por paramilitares desde 2016. As cortes colombianas seguiram com a prática dos tempos de guerra de processar insurgentes de esquerda enquanto ignoram os atores estatais.
As grandes esperanças das FARC, que anunciaram sua reforma como um partido político legal sob o mesmo acrônimo – a Força Alternativa Revolucionária Comum, antes de se renomearem Comunes (Comuns) – até agora foram frustradas, pois não conseguiram garantir nenhuma reforma política ou agrária séria conforme acordado e, agora desarmados, enfrentam o nível pré-existente de violência paraestatal.
De forma que talvez não cause espanto, portanto, no dia 29 de agosto de 2019 dezenas de importantes líderes históricos das FARC, alguns dos quais súbita e dramaticamente desapareceram da vida pública, deixaram o partido político legal, reagruparam-se militarmente, e anunciaram o reestabelecimento de um partido que combinaria a luta política legal nos movimentos sociais e sindicatos com a luta armada em espaços rurais e urbanos.
Em seu manifesto político, essa fração – mais especificamente conhecida como FARC (Segunda Marquetalia) para distinguir-se de sua predecessora e de outros ex-combatentes das FARC que escolheram continuar na luta pela implementação do acordo de forma pacífica, como parte dos Comunes – declarou que foi um erro estratégico entregar as armas antes da implementação do acordo de paz, concluindo que essa seria a única forma de garantir o acordo em um país que tem sido há muito tempo o mais repressivo da América Latina.
Os Comunes, que são liderados por Rodrigo Londoño, comandante de mais alto escalão das FARC quando o acordo de paz de 2016 foi assinado, argumentam que é imperativo que os ex-combatentes das FARC continuem a defender o acordo de paz como parte de um processo para estabelecer a reconciliação nacional e para a legitimidade política da esquerda.
Porém, embora uma clara maioria dos ex-combatentes históricos das FARC continuem legalmente ativos como Comunes, a Segunda Marquetalia representa uma cisão significativa.
Para entender a situação política e a perspectiva das forças da Segunda Marquetalia, eu viajei à região rural de Catatumbo, na Colômbia, para observar o grupo refundado à medida que ele regenera sua luta político-militar, e para entrevistar uma de suas lideranças, o comandante Villa Vázquez, responsável pelo Comando Danilo García e membro do equivalente ao Comitê Central da Segunda Marquetalia, conhecido como Diretório Nacional.
Quando adolescente, Vázquez se filiou à Liga Juvenil Comunista da Colômbia, um grupo diretamente associado ao Partido Comunista legal. Quando mais de 5000 militantes de esquerda desarmados, principalmente do partido União Patriótica, que emergiu das negociações de paz de La Uribe, foram massacrados por esquadrões da morte em meados dos anos 80, ele se levantou em armas e, desde então, tem sido um membro das FARC.
Muitos desses mortos foram massacrados sob os métodos mais macabros imagináveis – muitas vezes trabalhando com os militares, uma tática favorita dos paramilitares é cortar os membros dos socialistas usando motosserras e facões antes de despejar os corpos em um rio ou deixá-los apodrecer nas aldeias e cidades como um aviso.
E a matança continua: em dezembro de 2020, Rosa Mendoza, uma ex-combatente das FARC, foi assassinada com cinco membros de sua família, incluindo sua filha de poucos meses de idade. Em 13 de fevereiro, Leonel Restrepo, de 23 anos, se tornou o 258º ex-combatente das FARC a ser assassinado durante o processo de “paz”. Desde então, o número chegou a 259, com a morte de José Paiva Virguez em 19 de fevereiro.
Vázquez insistiu que, apesar do fato de os signatários das FARC terem aderido ao acordo de paz e cumprido sua parte da barganha, o Estado colombiano renegou o acordo, continuou a assassinar militantes das FARC e outros ativistas e, conseqüentemente, “cometeu traição às custas do povo colombiano, da comunidade internacional e dos ex-combatentes das FARC.”
O comandante argumentou que as FARC e o povo colombiano têm o direito de se rebelar e renovar a luta armada porque a “Segunda Marquetalia é o resultado da quebra dos acordos de paz de 2016 pelo governo e pela oligarquia colombiana”.
Apontando para um aumento no lugar da diminuição dos assassinatos paramilitares, Vázquez concluiu que “todas as nossas esperanças estavam no acordo, mas o acordo foi traído pelo governo e outras forças da classe dominante. É por isso que tivemos de retornar às armas. Mas não são as FARC que voltaram às armas – é o próprio povo. Hoje, podemos dizer que 60% dos lutadores [da Segunda Marquetalia] são novos, não são ex-membros”.
Em resposta ao establishment colombiano, que classificou a Segunda Marquetalia como uma entidade criminosa apolítica, Vázquez descreveu a estratégia do grupo para mim em detalhes, desenhando um diagrama no meu bloco de notas. A Segunda Marquetalia combina três estruturas organizacionais chave como parte de sua estratégia geral: forças guerrilheiras armadas, unidades de milícia armadas e desarmadas e um completamente desarmado Partido Comunista Clandestino da Colômbia.
As forças guerrilheiras são primariamente, mas não exclusivamente, responsáveis pelas operações armadas ofensivas contra o Estado e a classe dominante; as milícias são principalmente usadas para promover os objetivos do grupo em territórios específicos, como vilarejos e cidades – especialmente aquelas zonas que foram tomadas pelos guerrilheiros; e o Partido Comunista Clandestino atua sem armas – como partidos comunistas convencionais, ele trabalha com os sindicatos, movimentos sociais, universidades e comunidades locais, mas se mantém clandestino em função de seu alinhamento com a Segunda Marquetalia.
Insistindo que a Segunda Marquetalia é principalmente um partido político, não um grupo armado, Vázquez diz que “as armas são parte da combinação das linhas de luta e são uma guarda das ideias” e “não é que vamos tomar o poder por meio de um movimento armado – a luta armada acontece porque não há garantias para manifestar ideias”.
Vázquez hesitou na caracterização do grupo como uma rebelião camponesa. Os três componentes organizacionais – guerrilha, milícia e partido comunista –, disse ele, refletem as peculiares condições históricas da luta de classes na Colômbia.
“Onde a luta revolucionária se desenvolve?”, ele me perguntou. “Ela é desenvolvida onde o povo está, não no isolamento da selva, mas onde as massas do povo estão – e a maior parte do povo hoje está nas cidades, e é lá que a luta revolucionária e guerrilheira se desenvolverá”.
Ao levar adiante funções chave do Estado nas suas bases e redutos – taxação, segurança e manutenção de infraestrutura –, a liderança proclama a sua organização como uma forma legítima de governo, sustentada por um programa político abrangente e um contrato social.
Apesar do grupo só ter se reestabelecido em 29 de agosto de 2019, a Segunda Marquetalia já tem uma base significativa de apoio civil nas comunidades que visitei. Eu observei suas tropas passando por vilarejos sem impedimento e vi seus membros trabalhando abertamente, interagindo com civis nas ruas e até realizando reuniões públicas, claramente sem medo de que sua presença pudesse ser reportada ao exército colombiano.
Uma local que vive em uma fazenda dentro de um reduto das FARC, que não se identificava como socialista ou militante política, me disse que “a comunidade aqui prefere as FARC [Segunda Marquetalia] à polícia ou os militares”.
“Eles sempre estão por aí para ajudar imediatamente quando são solicitados. Eles são parte de nós e nos ajudam com as necessidades básicas quando estamos em situações difíceis. Eles também ajudam a organizar a comunidade aqui.”
No entanto, são claramente incorretas as alegações recentemente feitas pela Semana, a maior revista da Colômbia, de que a Segunda Marquetalia tem 5 mil combatentes e é apoiada por Caracas, que permite aos guerrilheiros usar o território venezuelano.
Embora possa parecer contraproducente para a mídia pró-Estado exagerar o sucesso de seus inimigos, isso serve para justificar o aumento da já extensa ajuda militar que a Colômbia recebe – além de dar aos Estados Unidos um pretexto para uma ação contra a Venezuela.
Na realidade, a Segunda Marquetalia é um grupo formado recentemente que, apesar de assegurar algum apoio civil em algumas comunidades, como uma fração recentemente desenvolvida, tem um número de combatentes significativamente menor do que as FARC que assinaram o acordo de paz.
Ainda assim, novos militantes estão engrossando as fileiras e se comprometendo com a organização, servindo sob uma liderança política altamente experiente e com décadas de luta nas costas.
Quanto ao governo, esta é uma situação criada por ele mesmo. Ao não querer ou ser incapaz de garantir a segurança dos combatentes desmobilizados ou das figuras dos movimentos sociais que não participaram da guerra civil, ele provocou exatamente essa reação.
Os negociadores hesitarão em confiar nos representantes do Estado colombiano em futuras negociações de paz – e a Segunda Marquetalia tem muito a negociar. A tributação das empresas multinacionais e das indústrias extrativas que exploram os recursos naturais, bem como o mercado negro, permite-lhes alimentar os combatentes com três refeições por dia, vesti-los e muni-los de armamento moderno e transporte.
Eles têm o dinheiro e os recursos para permitir que seus membros se dediquem à causa 24 horas por dia, 365 dias por ano.
E é para lá que vai o dinheiro; a vida de um membro das FARC de qualquer categoria sempre foi simples – um fato para todos os movimentos guerrilheiros colombianos de esquerda que estudei nos últimos dez anos que passei no campo.
Caminhei com Vázquez por uma pequena fazenda onde os guerrilheiros cultivavam sua própria comida e criavam gado; a cada dia, eles se revezam para administrar as plantações e alimentar os animais, um método de autossuficiência do qual Vázquez se orgulhava.
Embora, disse ele, “os gastos sejam significativos para uma organização como a nossa, como revolucionários cultivamos, inventamos coisas como criar coletivos agrícolas com a população, desenvolvemos atividades econômicas, inclusive produzindo nossos próprios alimentos”.
Quando terminei minha entrevista com Vázquez e observei a Segunda Marquetalia em seu território durante uma semana, estava claro para mim que o movimento refundado já estava criando raízes profundas.
A falha em implementar reformas estruturais que tratem dos superlucros dos setores extrativistas, grandes proprietários de terra e outros capitalistas, e a simultânea recusa em impedir o deslocamento forçado de camponeses – uma das grandes demandas do acordo de 2016 – só garantem que a organização irá gradualmente se expandir.
A abordagem pérfida do Estado colombiano ao processo de paz como forma de desarmar e desmobilizar a ameaça mais urgente ao capitalismo foi simplesmente a guerra por outros meios – e agora a Segunda Marquetalia estava respondendo da mesma maneira. Um espectro mais uma vez assombra a Colômbia: é o espectro das FARC.