O Mural do Leitor é um espaço dedicado a nossos leitores. Para participar com uma contribuição, entre em contato pelo e-mail: mural.revistaopera@gmail.com
***
“Cantando e me expressando na verdade, concreta realidade
Se foi e os que se vão com certeza na terra deixarão saudades
Passou é passado tudo bem, mas era amigo de verdade
Que Deus abençoe todas as idades, tá legal, tá maneiro é simplicidade
Cantando com amor, Saudade!”
(Duda do Marapé)
O ano era 1994, já transitando para 1995. Tive contato pela primeira vez com o funk: o amplamente conhecido Rap da Felicidade. De alguma forma aquela batida e “as ideia” mandadas no funk estremeceram minhas estruturas e, desde então, tenho uma relação muito intensa e contraditória com esse ritmo musical.
Como música e cultura própria da periferia, carrega todas as contradições existentes destes territórios. Mais que música e cultura, o funk surge como movimento, como grito daqueles que eram massacrados cotidianamente nas periferias, neste caso as do Rio de Janeiro e da Baixada Santista. Como diria o conhecido Rap do Silva, “o funk não é modismo, é uma necessidade, é pra calar os gemidos que existem nessa cidade”, ou o Rap do Rio de Janeiro, “o movimento funk aqui no Rio de Janeiro…”.
Só quem viveu os anos 90 nas periferias da Baixada Santista (e em outros locais do Brasil) sabe o grau de violência a que as populações destes territórios estavam submetidas. Antes de surgir o PCC, monopolizando a atividade criminal em SP como um todo e, portanto, impondo uma regra e uma lei própria para esses territórios, era comum ver os corpos estendidos pelas ruas. O sucesso da música Fórmula Mágica da Paz, dos Racionais, descreve genialmente essa realidade.
Quantas não foram as vidas ceifadas por nada? Adolescentes morrendo por causa de uma pipa. Como diria um funk proibidão, “desde pivete 157 consciente”: quantos meninos e meninas passando fome e sem condições de estabelecer um projeto de vida, visto que as perspectivas de vida são quase zero? A invenção e reinvenção das pessoas na periferia exige enorme esforço para conseguir uma mínima estrutura que possa permitir alguma perspectiva de futuro. Componentes que formam “uma mistura de ódio, frustração e dor” e, neste barril de pólvora, uma faísca de uma palavra mal colocada pode gerar explosões sangrentas.
O período “das guerra”, como foi conhecida a década de 1990, foi duro para quem morava nas periferias da baixada. Não é fácil lidar com uma montanha de cadáveres! Eu mesmo já vivenciei tiroteios, enquadros policiais muitas vezes ameaçadores, conflitos de rua que, por pouco, não tiveram um desenrolar trágico.
Como se não bastasse tudo isso, eram muito comuns mortes por acidentes fúteis que poderiam ser evitados. Pais que tinham de trabalhar e não podiam buscar seus filhos na escola, deixando as crianças expostas a situações de risco. Foi assim com meu melhor amigo de infância. Quando eu tinha por volta de sete anos, ele morreu atropelado por um ônibus, por ter que atravessar a avenida sozinho enquanto seus pais trabalhavam. Foi também o que aconteceu com uma amiguinha que morreu em um incêndio causado por um curto-circuito no ventilador. A precariedade das condições de vida são marcas indeléveis na periferia.
Nas classes média e burguesa, os jardins são regados com água de primeira qualidade, as crianças e adolescentes têm garantias de boa alimentação, acesso a uma ampla diversidade cultural, educação de qualidade, viagens, etc. Mas nas periferias do Brasil os jardins que florescem são regados por sangue! Desde cedo, o que marca é o abandono, a ausência de uma cidadania mínima, em muitos casos de pais, de futuro, etc. Em suma, a marca é a ausência, não a presença; a violência em suas múltiplas expressões e não a paz, a tranquilidade! E foi exatamente por isso que o funk, aos poucos, assumiu o lugar de expressão cultural nas periferias, ou nas palavras dos MC’s, de porta-voz das quebradas.
Como conta Paulo César Pinheiro no recente documentário “Letra e Alma”, ao perguntar ao seu avô como ele compunha suas músicas, ele respondeu que “é o mar que compõe, eu só canto”. Com o funk não é diferente: não é o Mc que compõe, mas é a realidade que grita desafinadamente a sua tragédia cotidiana. Certa vez o poeta Pedro Tierra, em um poema sobre o nascimento do Partido dos Trabalhadores, escreveu: “Somos a anti-sinfonia / que estorna da estreita pauta da melodia. / Não cabemos dentro da moldura…”. A fantástica fábrica de cadáver, como bem descreveu o MC de rap Eduardo, não pode caber dentro da moldura, ela já nasce como anti-sinfonia, pois a sinfonia lhe foi negada.
O reduto de boa parte da classe trabalhadora, onde tradicionalmente a esquerda contribuia para a construção e apropriação de diversas manifestações culturais, está marcado, em grande medida, pelo abandono, pois nem mesmo essa esquerda se faz presente mais. Assim, a forma cultural que poderia expressar melhor o cotidiano dessa realidade era o funk e o rap, pois estes são os que compartilham do cotidiano e dos dilemas da população periférica.
Com o tempo, o funk foi assumindo o lugar que o rap ocupava nas periferias. Conquistou corações e mentes, visto que, em um território onde as relações perpassam necessariamente pela mediação do monopólio do crime, pela tensão cotidiana da entrada da polícia em seus territórios e pela predominância das igrejas evangélicas, o funk tem em suas batidas muito peculiares a vibração necessária para dar força para enfrentar o cotidiano difícil. Não entrarei em mérito de musicalidade, pois não entendo nada disso. Chamo atenção para o caráter de enfrentamento da batida. A batida do funk é quase uma convocação para o combate. E é exatamente por isso que o funk passa a ser o som das quebradas. Afinal, a vida da população da periferia é um combate diário! Qualquer semelhança com os ritmos africanos e afro-brasileiros não é mera coincidência.
A trajetória dos bailes funks expressam essa dinâmica de enfrentamento. Em seus primórdios se caracterizavam como bailes de corredor, ou seja, quebradas que formavam o Lado A e o Lado B se enfrentavam nos bailes, situação que gerava muita violência e mortes. Vários foram os funks pedindo a paz nos bailes. Um deles é o Funk da Verdade, dos pioneiros do funk da baixada santista, Jorginho e Daniel: “ôôô paz e união / e para acabar com a briga e com a desunião / ôôô vamos zoar / acabar com a violência vamos todos despertar.” Ou como o funk carioca do Mc Neném: “A Rocinha diz que a briga tem que acabar / O baile foi feito pra curtir e pra dançar / Mas a Rocinha diz que a briga tem que acabar / Viver desse jeito, assim não dá”. Portanto, nesse primeiro momento o funk acompanhou a tragédia da periferia, na qual o pobre enfrentava o pobre como descarrego do ódio que a vida lhe impunha.
O som do enfrentamento, na particularidade da baixada santista, foi ganhando outros contornos. Com o monopólio do crime e a imposição de uma lei onde estavam proibidas as mortes sem autorização do comando, esse enfrentamento passou a ser canalizado para outra direção: àqueles que continuavam a chacinar nas quebradas e os que negavam a humanidade dos moradores da periferia – a polícia e os “boy”. A resposta à violência infringida pelos primeiros se expressa pelo som do enfrentamento das batidas empolgantes levantando o moral “da tropa” para não aceitar tais abusos, seja por quais meios forem.
Em resposta à discriminação do segundo, se propaga o ódio aos “boys”. Neste ponto levantarei uma hipótese. Essa discriminação que se expressa no funk traz consigo uma dialética que imbrica o pobre e preto e o preto e pobre: no Brasil, a racialização entrelaça essas duas questões de forma incontornável. Os moradores das favelas, sejam eles de cor branca, negra ou quaisquer outra, aos olhos da pequena burguesia e da classe dominante, são tratados num bloco homogêneo e vistos como negros. Estes territórios, como são locais tradicionalmente ocupados pela população negra e, portanto, reproduzem a cultura negra, carregam um forte marcador negro. Os brancos residentes destes locais acabam por compartilhar símbolos, valores e toda esta cultura que está arraigada com a tradição reproduzida pela população negra. Assim, aos olhos da classe dominante, acabam, na maioria das vezes, vistos como negros.
Entretanto, não se quer dizer com isso que não haja diferenças que se expressem por meio da cor no interior das periferias. Mas aqui, nos importa apenas a forma como o externo, o “asfalto”, olha o interno. Visa-se com isso centrar no determinante, as relações de classe e também o como o setor mais pauperizado da classe trabalhadora é visto e tratado em seu cotidiano. No que tange a essa dinâmica entre externo e interno, a diferença se expressa quando o branco, ao migrar para fora da periferia (caso não esteja compartilhando de aspectos aparentes da cultura negra, como roupa, corte de cabelo etc.), conseguirá passar despercebido e o impacto da discriminação será menor. Já a pessoa de pele preta não conseguirá, pois será sempre considerada uma favelada, carregando todos os estigmas que isso traz. Como diriam os Racionais Mc’s, “você sai do gueto, mas o gueto nunca sai de você”, seja pelas marcas que a vida na periferia deixa naqueles que a viveram, seja com o externo que olha e marca sua identidade e lugar no mundo. Dito isso, o funk direciona também suas energias ao combate, à sua maneira, aos “boys”, olhando-os como inimigos. Assim, o Funk Proibidão, um subgênero do funk, busca exatamente idolatrar aqueles que aparentemente combatem esses dois setores que violentam ou legitimam a violência e o massacre nas periferias.
Vale dizer que em territórios das periferias, com a falta de amplas referências, as possibilidades são estreitas, impondo limites ainda mais restritos a essa população. Digo “referências” no sentido de pessoas e situações que possam apontar perspectivas diferentes da que hoje se aponta. Nesse sentido, muitas vezes, a figura de exemplo e referência de sucesso na vida acaba por ser o dono do morro, como explica Mc Duduzinho: “Já vi neguim falar que é braço e abandonar a missão / Deixar os amigos de lado / Ódio no meu coração / O meu herói não anda de chuteira / Anda trepado com um varetão de luneta / Menor se envolve no sistema deixa eu te falar / Se espelha em nóis nem quer saber do tal de Neymar / Rato de pista agora eu tô na mesma cena…”.
E assim retrata o funk Se Mexer Com Nóis do Mc Careca, que expressa claramente o ódio contra a polícia: “E se mexer com nóis, a bala come / E se mexer com nóis a bala come / O bonde da Capela mete bala até nos homi / O bonde da capela mete bala até nos homi” – ou o funk 157 Consciente dos Mcs Pato e San, que expressa o ódio aos “boys”: “O juiz hoje me solta / não tô mais preso é isso mesmo eu tô de volta. / De volta ativa aí família da batuba / não é um banco o nosso plano agora muda. / Relâmpagos em frente dos caixa eletrônicos / menos de um mês a gente fez uns 12 conto / Compro umas peças e bem depressa eu bolo um plano, / agora é claro um empresário eu só tô registrando”. Esses dois trechos expressam claramente o alvo do funk proibidão. Vale dizer que tais sentimentos não são os únicos vividos e tampouco são todas as pessoas que expressam essa forma de consciência. Isso é restrito a uma parcela da periferia, parcela considerável, é verdade, mas ainda assim, uma parcela.
Desde seus primórdios, o funk não é desprovido de contradição e não é um todo homogêneo. Ele expressa as contradições vividas no cotidiano da periferia. Seus sonhos, desejos, sofrimentos, angústias etc. Nesse sentido, o Proibidão é um dos subgêneros do funk, tal como o Funk Putaria, o Funk ostentação, o Funk Melody, o Funk Montagem e o Funk consciente. Este último subgênero é importante, porque expressa de forma mais ampla as marcas dos dramas vividos pela população da periferia. Traremos aqui quatro trechos para demonstrar isso.
O funk do Mc Pekeno do Saboó, “Sente o Drama”, trata do sofrimento de uma família e de um adolescente que está com medida de restrição de liberdade na Fundação Casa. Diz o seguinte: “Tem uma cadeira vazia na mesa / De uma família firmeza / Tem uma mãe na incerteza / Do dia que o seu filho vai voltar / Uma família firmeza / Oprimida pela dor e a tristeza / Seguimos assim com certezas / Um dia ele vai voltar”.
No caso do funk do Mc Careca, “Se sintonize”, que trata da situação do desemprego: “Eu tô na correria, acordo de manhã cedo / pra manter minha família fui procurar emprego / a mesma ladainha o que sempre escuto / pra trabalhar aqui tem que ter muito estudo / O que dói é ver meu filho me pedir um trocado / e nessas condições eu já nem sei o que faço / confesso já perdi o interesse de viver / o motivo é evidente, fácil de entender…”.
O funk do Mc Duda do Marapé que fala sobre o sofrimento psíquico que leva ao uso de substâncias psicoativas e o racismo: “Forasteiro eu sei que sou / Andando sozinho no bairro com uma péssima expressão / Além do mais que raça negra / Só nos olhares pressinto que não gostam não / Vida de tormento e aborrecimento / Família longe magoado acelerou coração / Para amenizar o tal constrangimento / Eu vou de química profundo nessa solidão / Sol se foi e não mudou nada / Urgentemente preciso achar minha localização / Plantando a química não sabia de nada / Mas não sou daqui qual será minha região…”
Ou o funk do Mc Cidinho General, “A culpa é do filho da puta que atirou”, que retrata os assassinatos das crianças nas periferias por parte do Estado: “Deixa que a missão de beijar ela é da mãe dela / Deixa que o pai dele abraça ele / Hoje à tarde teve um tiroteio na favela / Eu não sei o que aconteceu não conheço culpado / Mas outra criança inocente morreu de novo…”.
Tais exemplos de funks tentam de alguma forma demonstrar as situações contraditórias e os sofrimentos que vive a população das periferias.
Quando, no ano de 2005, estourou a guerra pela liderança do PCC, o funk também expressou tais conflitos. Na Baixada Santista, tal guerra teve contornos cruéis. Neste ano, era muito comum todos os dias ocorrerem assassinatos, sequestros e intensos debates para posicionar as pessoas que tinham relação com o crime. Esta situação ocorreu porque uma das figuras que disputava a liderança do comando era da Baixada Santista. Em resumo, muitos dos que se posicionaram ao lado deste acabaram assassinados.
Nos ataques do PCC, em 2006, e na resposta da polícia que, novamente, atingiu a periferia indiscriminadamente, não foi diferente. Eu mesmo quase morri naqueles dias. Num dia de toque de recolher os “ninja” passaram e ficaram dois minutos na nossa frente. Após esses eternos dois minutos, os dois caras que estavam no carro abriram o vidro e disseram “vocês nasceram de novo, viu!”.
Desses atentados surgiram diversos funks retratando, dois deles marcantes. Um é dos MC’s Claudio e Ratinho, “Partido”: “E o partido falou / as autoridades desacreditou / separou os nossos irmãozinhos / daqui para frente é só cena de terror…”. Em outro funk do Mc Careca, “Toque de Recolher”, o mesmo descreve como a polícia agiu nas periferias nesta ocasião: “Se for um homem de preto não é os ladrão, / homem encapuzado não é os irmão. / Parou o estado inteiro tem que compreender / é perna pra que te quero só resta correr / Guerrilha urbana, estão matando inocente / Como um guerreiro eu luto, sou mais um sobrevivente / O governador diz que está tudo em paz / É toque de recolher e quem estiver na rua vai.”
Ao olhar para o funk é preciso deixar de lado os elitismos característicos de quem olha pelo alto, seja querendo demonstrar uma suposta inferioridade musical do funk ou aqueles que elogiam o funk, mas a partir de um pseudo-lugar de superioridade e culpa pequeno-burguesas. Este último, ao aparentemente reconhecer o funk como ritmo que deve ser aceito pela sociedade, muitas vezes expressa algo muito semelhante àquilo que o professor Deivison Faustino, ao citar Franz Fanon, fala sobre o Petit Nègre: “vocês aí de baixo, continuem em seus lugares, porque se eu não abaixar para falar a língua rústica de vocês, vocês nunca irão me compreender”. É necessário olhar para o funk com todas as contradições que carrega, como contradições próprias de parte das populações das periferias. Não devemos imputar a nenhum ritmo musical todos os males ou virtudes da sociedade. Todos eles trazem em si contradições que devem ser olhadas em sua totalidade. Caso contrário, o resultado é mera discriminação e, geralmente, elitismo de um pseudointelectualismo que reforça um preconceito que mais serve para criminalizar a população da periferia do que qualquer outra coisa.
Me alonguei descrevendo todas essas situações para demonstrar que a criminalização do funk tem claro caráter discriminatório e preconceituoso, visando legitimar a violência contra a população da periferia, contra os negros, contra a parcela mais pauperizada da classe trabalhadora. A desculpa com a qual se persegue o funk, devido à sua apologia ao crime, ignora que o Estado não prende nem executa policiais pela sua violência concreta às populações periféricas. Periferia esta que foi e é expropriada continuamente de bens materiais e culturais. Esta que teve o samba expropriado, o rap expropriado e, mais recentemente, com tentativas de expropriar um subgênero do funk, o funk ostentação, tentando apontá-lo como o único funk.
Além disso, o funk escancara algo que a classe dominante, com toda sua demagogia, busca omitir com o discurso de guerra as drogas. Porém, não combate e não pode combater,
pois o tráfico de drogas ao longo dos anos se tornou parte constitutiva e necessária do modo de produção capitalista. Os grandes monopólios das drogas a classe dominante não tem interesse em destruir, no máximo substituir. Portanto, quando o funk escancara essa relação que a classe dominante impõe para as periferias, ele está fazendo nada mais e nada menos do que demonstrar esse mecanismo – de forma contraditória – para o restante da população de fora da periferia. Ora, são trilhões de dólares gerados pelo tráfico de drogas a nível mundial. Foram muitos os golpes de Estado financiados com esse dinheiro. Muito desse dinheiro é lavado em empresas e bancos, como demonstra o escândalo do HSBC, que lavava dinheiro do narcotráfico internacional. Portanto, os discursos dos funks proibidão e consciente geram curtos-circuitos na ordem. Não porque o crime ou o funk são antissistêmicos, mas porque de algum modo desmontam esse discurso demagógico e hipócrita. Como diz o Mc Orelha: “Quem pode acabar com a guerra / Não quer que a guerra acabe”.
Essa desculpa de que o funk é apologia ao crime só justifica as perseguições, prisões e assassinatos de MC’s. O que a Rede Record chamou de “Abril Trágico” na Baixada Santista, sugerindo uma tragédia, não violência premeditada, nada mais é do que o Abril Fúnebre. O fúnebre não é acaso: são assassinatos pelos quais até hoje não se encontraram culpados (ou se protegem envolvidos?). O abril fúnebre nada mais é do que o resultado de um longo processo de tentativa de criminalização do funk, mas que nunca se conseguiu nada concreto e se partiu para assassinatos.
Em algum grau, o Estado produziu este Abril Fúnebre. Nos tirou o Felipe Boladão, menino de apenas 20 anos, nos tirou o Dj Felipe, outro menino de apenas 20 anos. Nos tirou o Mc Duda do Marapé,de apenas 26 anos. Nos tirou o Mc Primo, de 27 anos. E nos tirou o Mc Careca, de 33 anos. Todos jovens! Todos ainda com toda a vida para viver, com sonhos, com família e filhos para cuidar. Quanta indignação não geraria um assassinato de cantores da pequena-burguesia e da classe dominante. Um Estado que diz em sua letra constitucional não ter pena de morte, porém nada faz para acabar com os grupos de extermínio, é responsável direto pelo genocídio nas periferias. Um Estado que abandona as periferias e descarta essa população como bem entende – basta ver as chacinas em SP, as operações policiais no RJ e em outros estados – deixa nítido que a pena de morte foi instaurada para a população periférica. O Estado é parte orgânica do massacre dessas populações.
Para mim, os assassinatos dos MC’s abriram uma ferida e me permitiram refletir sobre o meu passado. Me permitiram refletir e desnaturalizar as mortes de tantos amigos, colegas e conhecidos. A naturalização é um dos mecanismos psíquicos que a população periférica utiliza para manter a sanidade mental numa realidade insana. O Abril Fúnebre sempre me faz lembrar de Rodriguinho, Gugu, Ricardinho, Tcheco, Sasá, Fabinho, Alexandre, Pedro Bala, Gordo, Ricardo Cucão, Elder, Marlon, Magrizan e tantos outros.
O funk é um movimento que não pode e não deve ser criminalizado. O crime é produto de relações sociais mercantis e fetichizadas que colocam uma imensa maioria da população na miséria. O funk expressa contradições sociais, nas quais existe também o crime. O funk é criminalizado por ser a expressão do que a classe dominante odeia: o negro, o pobre, o delito dos “subalternos”, e tudo aquilo que a classe dominante produz para se manter no poder e aumentar sua riqueza, mas rejeita e quer esconder: como diria os Racionais MC’s, “efeito colateral que seu sistema fez”.
Romper com os elitismos em relação ao funk não é diminuir a cultura geral dos trabalhadores, mas, pelo contrário, significa adicionar um tempero a mais nas lutas contra essa ordem que jorra e cheira a sangue. Entender as determinações e contradições que produzem o funk significa, em parte, entender as condições materiais e a consciência da parcela mais pauperizada da classe trabalhadora são construídas. Como reflexo dessas contradições, o funk pode refletir esta realidade e contribuir para o avanço da consciência e para o estímulo ao enfrentamento nas lutas por uma sociedade socialista, a fim de acabar com essa barbárie que impera no país.
Por fim, em homenagem aos MC’s e tantos outros que morreram nessa carnificina nas periferias do Brasil, cito Felipe Boladão e Careca: eles estarão “Constantemente em nossos pensamentos / eternamente em nossos corações”. Todos vocês “tá na memória”.
D.R. – Diadema