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De Mahan a Zheng He: a queda dos Estados Unidos nos mares

Os mares foram fundamentais a todos os impérios. Enquanto a China hoje avança seu poder naval, os EUA enfrentam seu estancamento produtivo.
Os mares foram fundamentais a todos os impérios. Enquanto a China hoje avança seu poder naval, os EUA enfrentam seu estancamento produtivo. Por William Serafino | Misión Verdad – Tradução de Joana Arete para a Revista Opera
(Foto: PHC Chet King / U.S National Archives)

Os mares, junto com os oceanos, foram os ventres de grandes impérios ao longo da História. A ideia canônica e mais difundida de império, associada ao domínio de uma ampla extensão territorial através de exércitos, rotas de comércio e tributos, sempre encontrou no mar o horizonte do seu desenvolvimento ou a fatalidade do seu declínio.

O teórico do império estadunidense Roberto D. Kaplan, em sua obra A Vingança da Geografia (2012), uma análise extensa sobre os pontos cegos das invasões expedicionárias dos Estados Unidos na época recente, onde também dedica não poucas páginas a um mea culpa por ter apoiado a intervenção militar que derrubou Saddam Hussein no Iraque, disse, em outras palavras, que a geografia é a prequela da história.

O que se entende desta ideia é que, embora os contornos do poder global tenham se modificado nos últimos séculos com a queda de grandes impérios e a ascensão de outros novos, a substância física sobre a qual estas mudanças têm ocorrido continua sendo a mesma, apresentando um poder inigualável de condicionamento prático sobre as maquinações geopolíticas contemporâneas.

Por exemplo, os estreitos de alto valor estratégico (Malaca e Ormuz) e os oceanos em sua vasta amplitude continuam sendo um terreno de disputa fundamental para o equilíbrio de poder mundial, pela simples razão de que não podem ser facilmente alterados pelo trabalho do homem.

Teorias imperiais

O império romano chamava o Mediterrâneo de Mare nostrum, conceito com o qual reivindicava sua propriedade exclusiva sobre um amplo mar que conectava suas possessões desde o norte da África e o sul da Península Ibérica até a Ásia Menor através do controle do comércio. O cordão umbilical que une o domínio dos mares com a própria existência do império tem sua expressão distintiva na era de esplendor dos romanos e continuará após o seu declínio.

Depois, o oceano, em particular o Atlântico, adquiriu uma importância transcendental que chega até os dias atuais. Em 1492, a travessia de Cristóbal Colón, que na verdade buscava um caminho alternativo para chegar à Índia após a conquista de Constantinopla pelas mãos dos turcos, acabou com uma travessia oceânica que lançaria as bases para a configuração do sistema-mundo capitalista que hoje define nossa existência coletiva.

Durante anos, o império espanhol expandiu o paradigma do Mare clausum com o interesse de dominar, com caráter exclusivo, as rotas de navegação entre a América e a península por onde transitavam os metais preciosos e os escravos transportados da África. A história de pirataria e contrabando protagonizada pelos britânicos e holandeses contra o Mare clausum ibérico é bem conhecida.

Em 1609, o advogado Hugo Grocio das Províncias Unidas (Países Baixos), “o pai da lei do mar”, como ficou conhecido posteriormente, lançou a doutrina do Mare liberum, baseada nos princípios de livre navegação das potências europeias da época.

O paradigma representava uma justificativa jurídica para legitimar a expansão ultramarina do império holandês, então em conflito com o império português no atualmente aquecido Mar da China Meridional. A contestação aberta à autoridade dos ibéricos sobre os mares era um assunto bélico com sua respectiva tradução ideológica.

A navegação oceânica foi a chave do Império Britânico em sua etapa inicial de companhias comerciais, com as quais alcançou a extremidade oriental da Ásia e as costas do sudeste da África no começo do século XVII. O mar foi a base do poder britânico como império talassocrático de primeira ordem e o corredor principal de sua expansão comercial e de suas agressivas conquistas militares, sustentadas ininterruptamente por mais de dois séculos.

O fator fundamental que garantiu a expansão britânica consistiu em um incomparável poder de guerra nos mares que, embora seguisse o rastro das experiências imperiais passadas, colocava maior ênfase na destruição do oposto mesmo em tempos de paz. O comércio e a poderosa marinha de guerra, a conhecida Royal Navy, se retroalimentaram mutuamente, onde a segunda era a condição de possibilidade do primeiro.

Resumindo, sem o poder de uma marinha de caráter ofensivo, fortemente financiada pela metrópole, a rede de operações econômicas globais do Império Britânico, que em seu momento de maior esplendor abraçou os cinco continentes, não poderia ter existido por um período tão prolongado e de uma maneira tão eficiente.

Isto foi captado, no fim do século XIX, pelo oficial naval estadunidense Alfred Thayer Mahan, um acadêmico e estrategista que influenciou de maneira determinante o presidente Theodore Roosevelt, protagonista da fase de amadurecimento definitivo do Império Estadunidense no princípio do século XX, através de sua política do Big Stick.

Como destaca Francis P. Sampa na revista The Diplomat, “Mahan imaginou os Estados Unidos como o sucessor geopolítico do Império Britânico”, já que promoveu a ideia de que um poder naval militarizado, implementado com força, salvaguardaria os interesses de segurança da potência norte-americana e ampliaria seu alcance geoestratégico em zonas fundamentais da política mundial. Segundo Sampa, “Mahan compreendeu que os Estados Unidos, como a Grã Bretanha, geopoliticamente eram uma ilha situada em frente à costa da massa continental euro-asiática, cuja segurança poderia ser ameaçada por uma potência hostil ou uma aliança de poderes que conseguisse o controle político efetivo dos centros de poder estratégicos da Eurásia”.

A influência do Poder do Mar na História (1890) é a obra mais conhecida de Mahan, cuja influência mudou para sempre o debate da política exterior estadunidense e impulsionou a construção dos princípios da expansão geopolítica do império. Mahan observava com preocupação a forma com que o equilíbrio de poder na Europa e na Eurásia afetariam as ambições políticas dos Estados Unidos; no entanto, o Mar do Caribe estava presente em suas aproximações com uma importância fundamental.

Em 1890 também publicou um artigo no Atlantic Monthly, “The United States Looking Outward” (Os Estados Unidos olhando para fora, em tradução literal), em que alegava que os Estados Unidos deviam reafirmar seu poder nesta região por sua importância geoestratégica e comercial, o que aumentava os apetites das potências europeias. Para Mahan, os Estados Unidos deviam construir uma poderosa marinha junto com uma rede de estaleiros para alcançar este objetivo, apesar da pouca convicção das elites governantes naquele momento: “Apesar de certa grande superioridade original conferida por nossa proximidade geográfica e imensos recursos – devido, em outras palavras, a nossas vantagens naturais, e não a nossos preparativos inteligentes –, os Estados Unidos lamentavelmente não estão preparados, não só de fato, mas em propósitos, para afirmar no Caribe e na América Central um peso de influência proporcional ao alcance dos seus interesses. Não temos a marinha e, o que é pior, não estamos dispostos a ter a marinha, isso pesará seriamente em qualquer disputa com aquelas nações cujos interesses entrarão em conflito com os nossos”.

A guerra contra o Império Espanhol, apenas oito anos depois da publicação da obra mais famosa de Mahan, foi encerrada com o domínio estadunidense sobre Cuba, Porto Rico e Filipinas, as últimas possessões coloniais dos espanhóis na América e na Ásia, respectivamente. A independência na medida dos interesses estadunidenses do Panamá, e a ocupação da República Dominicana e da Nicarágua em poucos anos, confirmaram que o império tinha apostado efetivamente na teoria de Mahan.

O império começou a construir uma marinha com um poder considerável e de alcance global, constituída por encouraçados, contratorpedeiros e navios de assalto anfíbio, que começava a dar seus frutos como sustento material da projeção geopolítica dos Estados Unidos.

Neste outubro, Alexander Wooley escreveu um interessante artigo de investigação para a revista Foreign Policy, “Como a Marinha dos EUA perdeu a corrida da construção naval” [How the U.S. Navy lost the shipbuilding race, no original], que mostra como os Estados Unidos têm perdido seu poderio naval desde as projeções de Mahan. Os dados apresentados por Wooley mostram uma imagem catastrófica que cobre todos os aspectos da marinha, desafiada por problemas técnicos e orçamentários de distintas ordens. O autor destaca que os problemas atuais têm como fonte principal a “arrogância” derivada do momento unipolar e situa Donald Rumsfeld como um dos artífices do desastre.

Quais são os problemas? Wooley destaca que os planos iniciados em 2001 com Rumsfeld, que buscavam uma “revolução tecnológica” na marinha, fracassaram. Os superporta-aviões classe Gerald R. Ford (sucessor do Nimitz) e os contratorpedeiros Zumwalt, símbolos desta transformação “futurista”, ainda não entraram em funcionamento e se converteram em autênticas dores de cabeça devido aos altos custos, problemas associados às tecnologias e falta de compatibilidade com os sistemas de armas.

De 32 contratorpedeiros Zumwalt orçados, Wooley aponta que só três serão construídos, devido a seu alto custo (7 bilhões de dólares por unidade). Por outro lado, a linha de navios de combate “The Littoral Combat Ship”, em que os Estados Unidos confiam múltiplas operações de provocação no Pacífico Ocidental, tem cada vez mais problemas, o que obrigou à retirada de uma boa quantidade deles dos mares, junto a longas jornadas para manutenção. Parafraseando-o, o autor resume a situação da seguinte forma: os Estados Unidos têm cada vez menos embarcações de combate, as que estão operativas têm problemas e o dinheiro investido (e mal gasto) para manter uma marinha de acordo com os interesses globais do império só tem trazido estancamento e perda de poder.

Citando fontes oficiais, Wooley indica que a China, hoje em dia, tem a maior marinha do mundo, com 360 navios de combate que superam os 297 dos Estados Unidos. Estima-se que o gigante asiático terá 400 embarcações de guerra até 2025, uma cifra que o próprio Pentágono confessa não poder alcançar. A grande diferença está marcada pelos estaleiros: enquanto a China possui dezenas deles, os Estados Unidos só contam com sete, e em um estado de nítido deterioramento pela falta de investimento.

Este aspecto é fundamental para entender a situação, porque parece que os Estados Unidos receberam uma dose do seu próprio remédio neoliberal, como se depreende das conclusões alcançadas por Wooley. A externalização dos custos, a deslocalização industrial ao exterior na era Clinton e a obsessão doentia pela rentabilidade converteram os estaleiros em armadilhas orçamentárias para transferir recursos públicos aos bolsos corporativos do complexo militar industrial.

A abordagem “low cost” [de baixo custo] levada ao âmbito da construção naval gerou uma redução dos investimentos e, consequentemente, um estancamento produtivo sustentado pela artificialidade de um orçamento de defesa cada vez mais volumoso. O ambicioso poder marítimo sonhado por Mahan é incompatível com o carnaval de dívidas e cotações na bolsa da Lockheed Martin, e por esta razão a China, que não submeteu suas capacidades militares ao fundamentalismo de mercado, superou os Estados Unidos.

Kyle Mizokami, na revista The National Interest, destaca que a China avança na construção do seu terceiro porta-aviões. Por sua vez, avança rapidamente em uma linha de navios de combate multipropósito, de distintos tamanhos, que são equiparáveis aos contratorpedeiros estadunidenses da classe Ticonderoga e Wasp.

Mizokami afirma que o auge da construção naval da China mistura a produção massiva com a modernização de suas capacidades, o que supõe a obtenção de uma vantagem militar, não só geopolítica e militar, mas geoeconômica, que converteu a China em “uma grande potência militar na Ásia-Pacífico”.

Nicholas Spykman, considerado um dos clássicos da geopolítica estadunidense, mais influenciado por Mahan do que por Halford Mackinder, apesar do que se acredita, e conhecido por sua teoria do Rimland, qualificou como uma área estratégica o “Mediterrâneo asiático” que existia entre a Ásia e a Austrália, e entre os oceanos Pacífico e Índico.

Essa ampla zona, ao ser um eixo crucial do desenvolvimento marítimo da Iniciativa do Cinturão e Rota, adquiriu o perfil de campo de batalha estratégico para os Estados Unidos em sua tentativa de conter a projeção geopolítica da China e suas associações naturais em seu entorno imediato. A recente aliança AUKUS, focada na pressão naval contra o gigante asiático, e a busca por converter Taiwan em um barril de pólvora com resultados catastróficos, têm estreita relação com o interesse de dominar essa unidade chave definida por Spykman há quase 100 anos.

No entanto, os problemas operativos da marinha estadunidense convertem essa aposta em uma manobra arriscada que, além disso, trouxe como consequência o renascimento da construção naval da China e a melhoria das capacidades de sua marinha, com uma perspectiva de defesa e proteção de sua soberania.

Zheng He no século XXI

Muito antes de Fernão de Magalhães, Pedro Álvares Cabral e Juan Sebastián Elcano ficarem imortalizados nos anais da História por suas viagens transoceânicas, o almirante chinês Zheng He, no começo do século XV, já havia protagonizado várias expedições ao Pacífico Sul, atravessando as ilhas Maldivas, o estreito de Ormuz, o golfo de Adem, até chegar a Mogadíscio e Mombasa pelo Oceano Índico. Zheng He, e seu impressionante legado como navegante e explorador, voltou com força ao cenário político e cultural chinês quando, em 2009, de acordo com Daniel Yergin, uma série de televisão sobre sua figura com ampla difusão foi estreada. Um museu que homenageia o almirante está em Nanjing, inaugurado em 2005, 600 anos depois da sua primeira viagem.

Além de marinheiro, Zheng He foi um diplomata e militar destacado na corte do imperador Zhu Di, o terceiro da dinastia Ming, que reconheceu suas capacidades, deu-lhe o sobrenome pelo qual é conhecido hoje (Zheng) e apoiou suas expedições visando a ampliação da rede de comércio marítimo da rota da seda, conectando, a partir da China, o sudeste asiático com a península arábica e a costa oriental da África.

O mítico almirante não foi um conquistador, mas um homem do comércio e da diplomacia, a cargo de uma frota que superava a europeia daquela época em quantidade de navios, qualidade de construção e alcance geográfico. As embarcações da dinastia Ming, além de serem superiores em termos técnicos em relação à Europa medieval, estavam a serviço de um universo de intercâmbio cultural e econômico cuja estabilidade e harmonia, embora imperfeita, foi profundamente perturbada pelos conquistadores ocidentais.

O atual retorno à figura de Zheng He representa o alicerce espiritual do notável crescimento da marinha chinesa, e também um sinal de como a disputa geopolítica e civilizatória atual ocorre no terreno das escalas de valores colocadas à disposição e que cada país deverá escolher, de acordo com seus próprios atributos e dilemas, se deseja preservar o próprio, em um contexto mundial de deriva rumo ao abismo.

Se a Geografia, nas palavras de Kaplan, é a prequela da História, então o presente continua sendo sua câmara de eco, um lembrete das questões pendentes e não resolvidas. E nesse sentido, é altamente revelador que a coalizão de poderes ocidentais contra a China no Mar da China Meridional tenha suas raízes na doutrina jurídica de Grocio no século XVII.

Se a aventura marítima de Mahan foi a base geopolítica para o amadurecimento definitivo do império estadunidense, é lógico pensar que a deterioração do poder naval que teorizou também é um fator essencial do seu desmoronamento.

Enquanto isso, a política mundial se reconstrói através das mesmas rotas que Zheng He desenhou, no sentido oposto de Mahan, geográfica, política e culturalmente.

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