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A não tão discreta campanha dos EUA para pressionar o Itamaraty

Reportagem do Financial Times sobre “ajuda” dos EUA para impedir golpe no Brasil é parte de campanha de pressão para que Lula adote outra política externa.
Reportagem do Financial Times sobre “ajuda” dos EUA para impedir golpe no Brasil é parte de campanha de pressão para que Lula adote outra política externa. Por Pedro Marin | Revista Opera
10.02.2023 – Presidente da República do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, durante reunião com o Presidente dos Estados Unidos da América, Joe Biden. Casa Branca, Washington (EUA). (Foto: Ricardo Stuckert/PR)

O respeitado jornal londrino Financial Times saiu com a seguinte manchete na semana passada: “A discreta campanha dos EUA para defender as eleições no Brasil”. A reportagem, escrita por Michael Stott, Michael Pooler e Bryan Harris, trata de uma “campanha de pressão” realizada por autoridades estadunidenses ao longo do ano de 2022, no sentido de impedir que a tese de fraude nas eleições brasileiras daquele ano se desdobrasse em um golpe de Estado.

Traduzida e publicada na Folha de S. Paulo sob o título “EUA fizeram campanha para defender Brasil de possível golpe de Bolsonaro”, a matéria do Financial Times cita uma série de fontes do governo estadunidense que concordaram em falar das movimentações realizadas. A não ser pelas declarações de algumas das fontes, a reportagem não traz fatos novos, apenas os compila – embora essa campanha não tenha sido “amplamente noticiada”, como afirma o Financial Times, a ida de movimentos sociais a Washington antes das eleições foi reportada, e os meandros de algumas dessas movimentações já haviam sido revelados na Revista Piauí em abril. O que é grave é que esta matéria, sobre a ajuda dos EUA para “salvar a democracia” no Brasil, deturpe e confunda os fatos, incorra em mentiras e, ao fim e ao cabo, constitua ela mesma uma peça de “campanha de pressão” – neste caso não contra o golpismo, mas a favor dos interesses do governo dos Estados Unidos na política externa brasileira. Ironicamente, a defesa de Bolsonaro aparentemente considerou usar a publicação da reportagem como argumento para impedir a inelegibilidade do ex-presidente.

A primeira deturpação da reportagem consiste em apontar Bolsonaro como a fonte singular do golpismo – algo que está de acordo com a interpretação banal daqueles que, aqui no Brasil, às custas de buscar a justa punição ao ex-presidente, absolvem de antemão todo o seu entorno golpista, em especial aquele trajado de verde-oliva, bem como as suas bases entre o empresariado, particularmente no agronegócio.

“Alguns generais ficaram incomodados com as tentativas de Bolsonaro de politizar uma instituição que procurava se manter alheia à política desde que devolvera o poder aos civis, em 1985, e estavam preocupados com os riscos de os militares violarem a Constituição”, diz a matéria em um trecho, que afirma, logo após: “O vice de Bolsonaro, Hamilton Mourão, era um deles.” Mourão, aquele que ameaçara no passado com “aproximações sucessivas”; Mourão, aquele que defendia o golpe de 1964 como uma forma de impedir que “a pátria fosse comunizada”; Mourão, aquele que se opunha radicalmente à Comissão da Verdade; Mourão, aquele que, na ativa, considerava que Dilma Rousseff colaborava com a “incompetência, má gestão e corrupção”; Mourão, aquele que fazia homenagens a Brilhante Ustra em quartéis; Mourão, aquele que considerava que as eleições de 2018 “poderiam não ocorrer” se Lula fosse candidato – este era o Mourão, o vice-presidente de Bolsonaro, que, dentre alguns outros generais, estava “preocupado” com a democracia no Brasil. A evidência na qual se assenta a afirmação do Financial Times? Uma curta frase que o atual senador teria dito num elevador: “[o ex-embaixador dos EUA no Brasil Thomas] Shannon se recorda de uma visita de Mourão a Nova York para um almoço privado com investidores em julho do ano passado, momento em que as tensões eram grandes. Depois de evitar responder a perguntas sobre os riscos de um golpe, reiterando confiança nas Forças Armadas e em seu compromisso com a democracia, Mourão entrou em um elevador para ir embora, e o ex-embaixador o acompanhou. ‘Quando a porta estava se fechando, disse: ‘O senhor sabe que sua visita aqui é muito importante. Ouviu os receios dos presentes à mesa. Eu compartilho esses receios, e, francamente, estou muito preocupado.’ Mourão olhou para mim e disse: ‘Também estou’.”

A matéria reconhece que, apesar da campanha de pressão de funcionários norte-americanos, e apesar de um alto funcionário ter tido “a impressão de que as pessoas em torno de Bolsonaro o estavam encorajando a fazer a coisa certa”, “o perigo não havia passado”. Neste trecho, os jornalistas não incorrem só em deturpação, mas na mentira: “No dia 8 de janeiro, milhares de bolsonaristas lançaram uma insurreição em Brasília, invadindo o Congresso, o STF e o palácio presidencial, reivindicando uma intervenção militar. Os militares intervieram em questão de horas, mas para reprimir os protestos. Mais de mil manifestantes foram detidos.” Os militares não intervieram no dia 8 de janeiro, a não ser na frente do Quartel General de Brasília – não para reprimir os protestos (coisa que o Batalhão da Guarda Presidencial deveria ter feito e não fez), mas para dar guarida aos golpistas – como as Forças Armadas vinham fazendo desde novembro – e para impedir que eles fossem presos pelas tropas da Polícia Militar do Distrito Federal.

Por que o Financial Times, na semana em que o tema do golpismo no Brasil voltou à discussão em virtude das revelações da Revista Veja sobre os planos e conversas de Mauro Cid com outros militares, traz uma manchete tão estrondosa para uma matéria que de novo pouco revela, que deturpa a história recente do País e que, em ao menos um caso, mente? A resposta não exige teorias conspiratórias; está ao final da própria matéria: “Para o governo Biden, as relações com o Brasil melhoraram, mas ainda assim têm ocorrido atritos com o novo governo. Lula demonstrou pouco reconhecimento público da campanha dos EUA para proteger a eleição.[…] Em abril, ele levou uma grande delegação à China para uma visita de três dias, passando por duas cidades. Nessa visita, rejeitou as sanções impostas pelos EUA à empresa de tecnologia chinesa Huawei, criticou o apoio militar do Ocidente à Ucrânia e endossou a campanha de Pequim por alternativas ao dólar. […] ‘As pessoas aqui entendem que haverá divergências políticas’, diz [Thomas] Shannon. ‘Mas há um tom de raiva e ressentimento subjacente a tudo isso que realmente pegou as pessoas de surpresa… É como se ele [Lula] não soubesse ou não quisesse reconhecer o que fizemos’.”

 Leia também – O problema não é um general 

Em resumo, a matéria ruidosa do jornal, baseada em declarações de autoridades estadunidenses e republicada nos meios nativos, consiste em uma cobrança do governo dos EUA de que o governo Lula tomasse mais em conta suas movimentações do ano passado em defesa das eleições quando planejasse sua política externa. Mas quem transaciona o “apoio à democracia”, por ele esperando recompensa, não revela, precisamente, sua natureza essencialmente antidemocrática?

Maquiavel tem sido exaustivamente lembrado nestes dias, no contexto do motim do Grupo Wagner na Rússia, por suas clássicas lições sobre o uso de mercenários. Convém também lembrar as palavras do florentino sobre determinados tipos de “aliados”: “Essas armas podem ser úteis e boas para si mesmas, mas, para quem as chama, são quase sempre danosas; pois, quando perdem, és derrotado com elas e, quando vencem, aprisionam-te.”

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