No Cairo, representantes do Hamas realizaram negociações indiretas com Israel para um cessar-fogo. O principal ponto de atrito em várias rodadas de discussão foi a ordem dos acontecimentos. Israel queria que os reféns fossem libertados antes de interromper os bombardeios, enquanto o Hamas dizia que os bombardeios deveriam parar imediatamente. Israel exigiu o desarmamento e o desmantelamento do Hamas, o que é uma exigência maximalista que provavelmente não será atendida. Enquanto isso, o Hamas gostaria não apenas de um cessar-fogo, mas também do fim da guerra. Os dois lados se culpam mutuamente, o que dificulta a tarefa dos negociadores egípcios e do Catar.
O melhor resultado possível das negociações do Cairo é o fim da atual guerra genocida contra os palestinos em Gaza. As negociações para acabar com a guerra ganharam um senso de urgência adicional quando Israel bombardeou a fronteira de Rafah, a única cidade de Gaza ainda não dizimada por Israel. Sem ter para onde fugir, os civis palestinos em Rafah não podem ser protegidos de nenhum ataque, mesmo que não seja tão violento quanto o realizado pelo exército israelense contra a Cidade de Gaza e Khan Younis. Esses ataques criaram 37 milhões de toneladas de escombros, que estão cheios de contaminantes e um número imenso de bombas não detonadas (que levarão 14 anos para serem desarmadas). Israel acredita que os últimos membros remanescentes do Hamas estejam em Rafah e que terá ou de bombardear os milhões de pessoas que vivem lá ou que a organização terá de concordar em se destruir por meio das negociações. Ambas as opções são inaceitáveis para os palestinos, que não querem mais mortes de civis nem o desmembramento de um dos mais ferozes defensores do direito dos palestinos à autodeterminação.
Apesar do Hamas ter concordado com a proposta de cessar-fogo, Israel deflagrou ataques violentos em Rafah e assumiu o controle da passagem de Rafah para o Egito (cortando, assim, a principal rota de acesso de suprimentos para Gaza). As negociações continuam, mas Israel simplesmente não está disposto a levá-las a sério.
Unidade palestina
A desconsideração de Israel pelas negociações e o nível de sua violência podem ser medidos com base em duas realidades políticas. O país não leva a sério as negociações com os palestinos e sente que pode bombardear com impunidade. Isso acontece porque, em primeiro lugar, Israel é totalmente apoiado pelos Estados do Norte Global (principalmente os Estados Unidos e a Europa) e, em segundo lugar, porque não considera as opiniões políticas palestinas como fundamentais, já que conseguiu romper a unidade política entre os palestinos e desorientar politicamente as várias facções com a prisão de seus principais líderes. Isso não se aplica totalmente ao Hamas, cuja liderança conseguiu estabelecer operações em Damasco e, posteriormente, em Doha, no Catar. Embora seja impossível imaginar uma inflexão rápida por parte dos países do Norte Global, ficou totalmente claro para as facções palestinas que, sem sua unidade, não haverá como obrigar Israel a encerrar sua guerra genocida e, é claro, sua ocupação das terras palestinas, combinada com suas políticas de apartheid dentro de Israel.
No final de abril de 2023, o Hamas se reuniu com o Fatah, a outra grande força política palestina, na China, como parte de um longo processo para criar um campo de consenso entre eles. As relações entre esses dois grandes partidos políticos foram rompidas em 2006-2007, quando o Hamas venceu as eleições parlamentares em Gaza e o Fatah – responsável pela Autoridade Palestina – contestou esses resultados; na verdade, as duas facções lutaram militarmente entre si em Gaza antes do Fatah retirar-se para a Cisjordânia. Durante a guerra genocida de Israel, tanto o Fatah quanto o Hamas procuraram superar as diferenças e não permitir que suas divergências possibilitassem a expulsão dos palestinos de Gaza e a derrota dos objetivos políticos palestinos em geral. Altos representantes desses dois partidos se reuniram em Moscou no início deste ano e novamente na China em maio.
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Para essa reunião na China, o Fatah enviou seus líderes de alto escalão, incluindo Azzam al-Ahmad (que faz parte do comitê central e lidera sua equipe de reconciliação palestina), enquanto o Hamas enviou líderes igualmente importantes, incluindo Mousa Abu Marzouk (membro do Bureau Político do partido e seu ministro das Relações Exteriores de facto). As negociações não resultaram em um acordo final, mas – como parte de um longo processo – aprofundaram o diálogo e a vontade política entre as duas partes no sentido de trabalharem juntas contra a guerra genocida israelense e a ocupação. Outras reuniões de alto nível estão sendo planejadas, com uma declaração conjunta a ser feita posteriormente sobre um apelo – incentivado pelo presidente chinês Xi Jinping – por uma conferência internacional de paz para acabar com a guerra e uma plataforma palestina conjunta sobre o caminho a seguir.
Lacunas
O Fatah, a âncora da Organização para a Libertação da Palestina (OLP), foi fundado em 1959 por três homens, dois deles oriundos da Irmandade Muçulmana (Khalil al-Wazir e Salah Khalaf) e um deles oriundo da União Geral dos Estudantes Palestinos, que acabaria se tornando o principal líder (Yasser Arafat). A OLP se estabeleceu como o núcleo da luta palestina contra a catástrofe de 1948, que os fez perder suas terras, tornando os palestinos cidadãos de segunda classe dentro de Israel e enviando centenas de milhares de palestinos para décadas de exílio. A influência da Irmandade Muçulmana não se formou dentro da OLP, que assumiu um caráter de libertação nacional que foi reforçado pelas várias facções de esquerda, como a Frente Popular para a Libertação da Palestina (PFLP, formada em 1967) e a Frente Democrática para a Libertação da Palestina (DFLP, formada em 1968).
A OLP tornou-se hegemônica na luta palestina, coordenando o trabalho político nos campos de exilados e a luta armada dos fedayeen (combatentes). As facções da OLP enfrentaram um ataque conjunto de Israel, que invadiu o Líbano para exilar a liderança e seu núcleo na Tunísia. Com a queda da URSS, a OLP começou a negociar seriamente com os israelenses e os Estados Unidos, que impuseram uma forma de rendição aos palestinos chamada de Acordos de Oslo de 1993. O Fatah assumiu o comando da Autoridade Palestina, que funcionou parcialmente para manter a ocupação israelense de Jerusalém Oriental, Gaza e Cisjordânia.
Irritadas com o que parecia ser uma rendição palestina em Oslo, oito facções formaram a Aliança das Facções Palestinas em 1993. Dentro dessa Aliança, os maiores grupos pertenciam à tradição da Irmandade Muçulmana. Eles incluíam a Jihad Islâmica Palestina (formada em 1981) e o Hamas (formado em 1987). A PFLP e a DFLP inicialmente se juntaram a essa aliança, mas saíram em 1998 devido a diferenças com os partidos islâmicos. Os partidos islâmicos venceram as eleições parlamentares em Gaza com uma margem pequena (44% do Hamas contra 41% do Fatah), um resultado que enfureceu Israel e os países do Norte Global, que tentaram solapá-los.
Como o caminho para o poder político por meio das urnas lhes foi negado e, depois, tiveram de enfrentar o sufocamento e o bombardeio israelense em Gaza, tanto o Hamas quanto a Jihad Islâmica fortaleceram seus braços armados e se defenderam contra a humilhação e o ataque. Toda tentativa de protesto pacífico – inclusive a Longa Marcha do Retorno em 2018 e 2019 – foi recebida com violência israelense. Nunca houve um momento em que o povo de Gaza tenha vivido um ano de paz desde 2007. O bombardeio atual, no entanto, está em uma escala diferente até mesmo do pior dos ataques anteriores de Israel em 2008 e 2014.
As principais divergências políticas entre as facções incluem suas diferentes interpretações dos Acordos de Oslo, suas respectivas ambições de controle político e suas distintas aspirações para a sociedade palestina. O fato de seus líderes políticos terem sido presos por décadas e impedidos de realizar atividades políticas normais e democráticas (como manter suas estruturas políticas e fazer campanha para a população) os impediu de dirimir suas diferenças. Entretanto, na prisão, as lideranças mantiveram diálogos contínuos sobre essas questões. Logo após as eleições parlamentares em Gaza, os líderes das cinco principais facções presas na prisão israelense de Hadarim redigiram um Documento Nacional de Conciliação dos Prisioneiros. Marwan Barghouti, do Fatah, Abdel Raheem Malluh, da PFLP, Mustafa Badarneh, da DFLP, Abdel Khaleq al-Natsh, do Hamas, e Bassam al-Saadi, da Jihad Islâmica.
O Documento dos Prisioneiros, que foi amplamente divulgado e discutido, pedia a unidade palestina e o fim de “todas as formas de divisão que poderiam levar a conflitos internos”. O texto não definia uma nova agenda política palestina, mas pedia que as várias facções “formulassem um plano palestino voltado para uma ação política ampla”. O desenvolvimento desse plano agora, quase 20 anos depois, é um dos principais objetivos das conversas entre as várias organizações políticas palestinas.
Há um consenso de que a primeira tarefa é evitar o ataque a Rafah e acabar com a guerra genocida contra os palestinos. No entanto, logo em seguida, a sensação é de que o mal-estar político que se apoderou do povo palestino deve ser superado e um novo projeto político deve ser usado para motivar uma nova atmosfera política entre os palestinos dentro das fronteiras de Israel, nos Territórios Palestinos Ocupados de Jerusalém Oriental, Gaza e Cisjordânia, nos campos de refugiados no Líbano, Jordânia e Síria e na diáspora palestina, formada por 6 milhões de pessoas.
(*) Tradução de Raul Chiliani